03/01/2022
Após passar 10 anos nas mãos de Martin Scorsese, sem avançar no desenvolvimento por falta de tempo do renomado cineasta, os direitos sobre o livro “The Last Duel” foram cair no colo da 20th Century Studios. E a mudança foi bem-vinda, uma vez que o igualmente competente Ridley Scott assumiu a ponta. Experiente e acostumado com os épicos, o diretor não decepciona e entrega o que lhe é esperado: um longa bem filmado, belamente fotografado, que possui a carga dramática no lugar, e com excelentes sequências de batalhas.
O Último Duelo é uma história baseada em fatos e adaptação do romance homônimo de Eric Jager. A trama, ambientada no ano de 1386, narra o embate entre o cavaleiro Jean de Carrouges (Matt Damon) e o escudeiro Jaques Le Gris (Adam Driver), acusado de ter estuprado a Sra. Marguerite de Carrouges (Jodie Comer), esposa do cavaleiro. A luta, decretada por Carlos VI, à época rei da França, marca o emblemático caso de drama, vingança e crime do século XIV.
Assustadoramente contemporânea, a temática acerca de como a sociedade enxerga uma mulher vítima de violação quase não sofreu alteração de lá para cá. E perceba que estamos falando de eventos ocorridos há mais de 630 anos! O preconceito sobre a vítima, colocando-a muitas vezes na posição de culpa - praticamente de caluniadora - revela mais a respeito de quem julga. É angustiante, portanto, presenciar a tristeza, a vergonha e a desolação de um ser humano impotente diante de tantos julgamentos no tocante à sua índole, ainda mais quando se espera o mínimo de empatia da sociedade.
E é aí que Scott destrincha o inteligente roteiro de Nicole Holofcener e Matt Damon quando aborda a história por capítulos. A montagem (apesar de sofrer críticas no sentido de empancar o ritmo da narrativa) transita sob a perspectiva dos principais personagens, convidando o público às revelações minuciosas e intimistas de como cada persona reagiu às mesmas situações apresentadas anteriormente. Exercício de voyeurismo típico da sétima arte.
É estarrecedor acompanhar uma exata passagem sendo narrada novamente, mas por diversas óticas distintas. Os detalhes das atuações e da direção de arte fazem a diferença. De repente, o espectador se vê como o juiz inquisidor daquela lide, porém, com elementos suficientes para julgar o que está diante dos seus olhos.
A força de O Último Duelo está na tríade Damon, Driver e, principalmente, Jodie. Aos poucos Marguerite toma o seu lugar de destaque; e muito se deve à sensacional performance da atriz. Inicialmente tímida e progressivamente fascinante, a atuação vai da vulnerabilidade à autoconfiança em questão de frames. Cenas fortes e diálogos igualmente arrebatadores conferem peso e drama ao arco da também protagonista.
Não menos fantástica, a ambientação do filme nos remete, naturalmente, a Gladiador (2000) quando Ridley Scott apresenta sequências de ação sublimemente coreografadas, onde o sangue jorra com gosto. Violência gráfica a serviço da verossimilhança da época na qual a história se passa. Não há glamour na batalha, muito pelo contrário. O peso e a letalidade dos homens em situação extrema são representados por figurinos robustos, literalmente pesados, e armas brancas afiadas prontas para fazer sangrar.
Assim, toda a violência experimentada (seja sexual, física e/ou psicológica) encontra o seu clímax no terceiro ato. O veterano realizador mostra porque é um dos maiores do Cinema, em atividade, ao reger com maestria a culminação dos acontecimentos. Mesmo aos 83 anos de idade, o diretor nos brinda com um vigor descomunal.
Entretanto, ainda sobre o contexto histórico, observe o despautério de um mundo repulsivamente machista que coloca dois sujeitos num confronto mortal para ver quem tem razão. Tudo referendado por um “deus”, é claro. Neste fanatismo religioso, quem se sair vitorioso terá a completa absolvição do coletivo e do divino, ao passo que o derrotado, em contrapartida, não somente terá a morte como última sentença, como também o seu nome e a “sua alma” restarão maculados pela posteridade.
Curiosamente, o crime de estupro, naquele tempo, apesar de ter como vítima direta a mulher, era “sofrido pelo marido”. Era ele quem figurava no polo passivo da demanda. Pasmem! A honra e o orgulho acima de tudo é o mantra de Jean de Carrouges, aliás. Antimaniqueísta, o argumento do script explora os tons de cinza dos personagens através de abordagens humanas, para não dizer primitivas.
Visceral e devastadora, a obra propõe um olhar claustrofóbico
ao universo feminino que, historicamente, tem a sua autonomia sufocada pelo
patriarcalismo.
NOTA: 4,5 Pipocas + 5,0 Rapaduras = Nota 9,5