sexta-feira, 21 de janeiro de 2022

ANIVERSARIANTES MEMORÁVEIS - 10 anos de DJANGO LIVRE

                      Uma catarse à base de suor e sangue.

Por Rafael Morais

A filmografia de Quentin Tarantino fala por ele. E mesmo depois de já ter revisto todas as suas obras, já ciente do estilo e das referências desse cineasta, confesso que o cara conseguiu de novo me surpreender positivamente. 

Em Kill Bill Vol. 1 e 2Quentin mostrou todo o seu conhecimento e admiração aos antigos filmes de artes marciais, inserindo na figura de Pai Mei e na personagem vivida por Uma Thurman uma homenagem àquelas fitas de Kung-Fu, lembrando Bruce Lee em O Jogo da Morte, dentre outras produções;  em À Prova de Morte demonstrou o seu amor pelo cinema B sploitation no projeto Grindhouse com o seu parceiro Robert Rodriguez; em Bastardos Inglórios, por sua vez, ele "simplesmente" alterou o curso da história para prestar uma modesta reverência aos filmes de guerra, além de oferecer a tão sonhada vingança que muitos desejavam: matar, ou melhor, metralhar e trucidar Adolf Hitler

Diante dessa escalada ao topo do sucesso, festejado e aclamado pela crítica e por boa parte do público mundo afora, o cineasta chega a Django Livre trazendo uma expectativa gigantesca em torno da nova produção. Mais uma vez alguns críticos notoriamente invejosos ou com sangue de barata - aqueles que não conseguem elogiar mesmo e não dão o braço a torcer - assim classificaram o filme: "não foi dessa vez que Tarantino fez um filme ruim". Por que não dizer que o filme é bom?! Ou melhor: que o filme é excelente! Para alguns, opinar sintetizando o pior de uma obra é sempre mais fácil do que elogiar.

Essas colocações são oportunas para contextualizar o infeliz e ignorante comentário do diretor Spike Lee (Malcom X), à época, quando disse que o filme é desrespeitoso mesmo sem ter assistido; e o pior, declarou ainda que nem tem a intenção de vê-lo. Jamie Foxx, que saiu em defesa do diretor, afirmou que esse tipo de declaração é irresponsável e desrespeitosa, pois falar que algo não presta sem ter conhecimento é o mais puro preconceito.

Contudo, polêmicas à parte, seja pela facilidade em escrever diálogos e roteiros tão afiados quanto inteligentes; seja pela forma que o diretor conduz os seus filmes, tornando cada cena importante à trama, impulsionando a narrativa sempre para frente e, assim, eficientemente orgânico, Tarantino é um dos poucos cineastas vivos que consegue me prender na cadeira com tanta intensidade e vibração. Quando tudo induz e conduz o espectador para se deixar levar por um possível plano "razoável" apresentado pelos personagens; quando tudo parece lógico e natural, aí vem o tempero "tarantinesco" e mostra que nem tudo é o que aparenta. O acaso, o improviso e a vingança são temáticas-irmãs que dialogam fortemente nos roteiros do idealizador. 

Na verdade, o cineasta continua mantendo o humor e as suas gags como válvula de escape em algumas determinadas sequências, sem esquecer do peso, seriedade e sobriedade nos momentos dramáticos e violentos. O polêmico sadismo só aparece quando ele bem quer e na hora exata de acontecer.    

Mas é em Django Livre, sua obra com uma estrutura narrativa mais linear até agora, que revisitamos o velho-oeste, gênero pelo qual o cineasta é aficionado desde criança. A trama traz Django (Jamie Foxx) como um escravo libertado pelo alemão Dr. Schultz (Christoph Waltz, soberbo), um ex-dentista eloquente e malandro que se tornou caçador de recompensas. Schultz precisa de Django para um propósito: localizar três criminosos procurados pela Justiça. Em troca, ele terá sua liberdade.

Contudo, o objetivo final de Django, após cumprir este trato, é resgatar a esposa Broomhilda (Kerry Washington) das garras do presunçoso Calvin Candie (Leonardo DiCaprio), proprietário de Candieland, uma fazenda algodoeira onde escravos são treinados para participar de lutas ferozes conhecidas como Mandingo – uma espécie de MMA ultra-violento.

Aqui, Tarantino não deixa de dar uma cutucada/criticada nesse esporte que, guardada as proporções, tem a mesma conotação dos dias atuais daquela apresentada no filme, ou seja, negociar e patrocinar pessoas como mercadorias. Interpretações à parte, sentindo-se responsável pelo escravo recém-alforriado, Schultz resolve acompanhá-lo nesta perigosa jornada que guarda muitas surpresas para ambos.

Curiosamente, o nome do protagonista foi escolhido em referência a Django, produção italiana dirigida por Sergio Corbucci em 1966 estrelada por Franco Nero, que faz uma pequena, divertida e metalinguística participação no longa. Outras alusões ao faroeste spaghetti estão nos zooms forçados, letreiros com fontes características do gênero e nas deliciosas faixas musicais do grande compositor Ennio Morricone – usual colaborador de Sergio Leone, diretor que difundiu e elevou o (sub)gênero.

Não menos inusitada foi a decisão de Tarantino - que tem um gosto bem peculiar para música - em inserir hip-hops e souls na trilha sonora. A inserção e adaptação dessas levadas black music em um filme de época ficou interessantemente paradoxal. Anacrônico, contextualmente, o estilo musical constata e demonstra ao espectador o progresso, relevância e riqueza da cultura negra, bem como o seu atual status social, bem diferente, diga-se de passagem, dos tempos de outrora. Observe que em dado momento, Django cavalga imponente, com nariz empinado e postura ereta, ao som das batidas de hip hop, comandando alguns escravos, como se dissesse: vocês estão nessas condições também porque se permitem estar.

Vencedor de dois Globos de Ouro (Melhor Roteiro e Melhor Ator Coadjuvante), Django Livre recebeu cinco indicações ao Oscar: Melhor Filme, Roteiro Original, Fotografia, Edição de Som e Ator Coadjuvante (Christoph Waltz). Embora Waltz tenha um desempenho memorável tão intenso quanto o seu Coronel Landa de Bastardos Inglórios (por qual foi premiado), Leonardo DiCaprio também merecia ser lembrado pelo seu odioso e arrogante Calvin Candie.

O vilão transita  de ingênuo e idiota até ganhar peso, magnitude e complexidade, explodindo em atitudes inesperadamente sádicas (detalhe para a sequência da mão cortada, ali DiCaprio se feriu sem querer e preferiu continuar gravando). Samuel L. Jackson no papel do subserviente e ardiloso Stephen também não fica atrás, roubando a cena no epílogo do filme. A Academia, infelizmente, esnobou ambos.

Outro ponto alto da projeção está na inspiradora fotografia que contrasta a bela e alvejante plantação de algodão com a vermelhidão sangrenta borrifada sobre ela. Sem esquecer que os flashbacks trazem paletas um tanto mais sombrias e cinzentas, como lembranças que Django não queria ter guardado na memória, mas que estão encrostadas lá.

Ainda no quesito técnico, o diretor nos surpreende com o uso e abuso de slow motion nas cenas de ação, drama ou quando cria o clima tenso para logo depois quebrá-lo, bem ao seu estilo. O curioso é que o cineasta não tinha essa característica visual no seu repertório.

Dessa forma, Django Livre toca em assuntos delicados, mexe em "feridas", causa polêmica, reflexão e questionamentos. E quem disse que isso é prejudicial? Questionar e refletir faz parte do processo interpretativo-cognitivo de uma arte.

O fato é que no "prensar da rapadura" e no "saltitar da pipoca", o diretor está mais preocupado em fazer o que sabe de melhor: entreter a plateia com uma boa história de vingança recheada da sua já habitual violência gráfica (advinda da sua famosa e vasta cultura pop), bem como no desenvolvimento dos personagens antimaniqueístas, capazes de diálogos tão mordazes quanto divertidos. Tarantino, literalmente, acertou no alvo com precisão, mais uma vez. Doa a quem doer.

Avaliação: 5,0 Pipocas + 5,0 Rapaduras = 10.


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