segunda-feira, 17 de janeiro de 2022

Dica Netflix - A Bruxa

    Um filme que exala malignidade



Por Rafael Morais

Mergulhado em uma atmosfera macabra - ajudada pela fotografia sombria através da paleta dessaturada - o longa narra a via crucis de uma família cristã, em meados do século XVII, que busca um novo lar após ser expulsa, sem maiores explicações, da colônia onde residia. Com isso, a nova morada escolhida fica à margem de uma tenebrosa floresta que se torna ainda mais assustadora com o repentino sumiço do caçula, o bebê Samuel.

A tensão se instaura de forma crescente e o mal é quase palpável, tudo retratado por sugestivos enquadramentos que valorizam a floresta, quase como uma entidade, dando vida ao cenário por meio de ameaçadores arbustos uivantes. No que pese o primeiro ato ser um pouco arrastado, o mesmo acaba funcionando como preparação para o espectador se ambientar, paulatinamente, à intensidade dos demais atos.

Não menos espetacular, o elenco demonstra toda a sua força em atuações marcantes, capazes de conferir complexidade e tridimensionalidade durante o estudo de personagens. Assim, temas como religiosidade e fé são postos à prova, refletindo em cada membro da família de maneira distinta, mas não menos intensa. Se o patriarca William (Ralph Ineson) é um fiel fervoroso, fundamentalista, não demora a ser tentado dentro de suas fraquezas. E nessa toada, Thomasin (a espetacular Taylor-Joy), a filha adolescente (mais velha) do casal é quem sofre as maiores tentações, uma vez que é acusada de bruxaria pelos seus próprios pares, por atitudes inerentes à sua idade que remete à descoberta da sexualidade e do mundo novo.

Ajudando a criar os seus irmãos menores: os sinistros gêmeos, bem como o pré-adolescente Caleb (o formidável Harvey Scrimshaw, que rouba a cena), Thomasin surge como uma moça, quase mulher, repreendida pelos seus genitores que a enxergam apenas como doméstica. Ainda sobre a prole, Caleb guarda carisma e reserva uma das melhores sequências do filme, entregando uma performance impressionante.

Tecnicamente primoroso, o longa é permeado por uma instigante trilha sonora de Mark Korven, capaz de acentuar o ambiente nefasto diante de acordes dissonantes, variando entre cordas graves e agudas, auxiliando na construção do clímax. Neste quesito, Korven também é consciente no emprego do silêncio ao se abdicar da trilha, nos momentos adequados, por vezes se utilizando de sons diegéticos para compor uma cena, sobretudo as mais tensas, evitando, assim, "mastigar" o que está sendo visto.

Igualmente exuberante, o design de produção capricha na composição do universo macabro mediante figurinos minuciosamente costurados a mão, que retratam bem os costumes da época, especialmente na figura da mulher oprimida. Repare, por exemplo, a catarse da jovem protagonista no ápice final, em que a vestimenta se torna peça essencial na linguagem narrativa. As vestes caídas, que simbolizam as “amarras”, personificam a “liberdade” diante da nova realidade imposta.

Escrito e dirigido com maestria pelo estreante Robert Eggers, "A Bruxa" pode ser interpretado como uma fábula de terror, bebendo na fonte de referências clássicas de contos infantis como: "Chapeuzinho Vermelho" (citações a lobos e capuzes encarnados pipocam na tela); "João e Maria" (aquele casebre com uma chaminé fumegante e a inversão na tentação: se antes era o doce que seduzia as crianças, aqui a sexualidade vence o garoto, em vias da puberdade, hipnotizado por um decote de encher os olhos); passando por "Alice no país das maravilhas", quando deturpa a figura do coelho como iniciador do universo maligno que está por vir.

Recheado de simbolismos, como a maçã expelida por Caleb, podendo ser encarada tanto como uma ligação bíblica, alegoria do pecado; quanto à outra história infantil: como não se lembrar da bruxa que envenenou a princesa através desta fruta? Sim, o filme é um misto acertado de alusões desconstruídas em prol da sugestão do medo, ao invés de explicitá-lo, que foge às convenções do gênero, principalmente daquele terror de blockbuster, apostando num público alvo que flerta mais com o psicológico do que propriamente com o gore. Por isso, não espere sustos gratuitos ou clichês enlatados, pois estamos falando de uma obra que se não valorizada agora, será um clássico cultuado em um futuro próximo.

*Avaliação: 5 pipocas + 5 rapaduras = nota 10

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