segunda-feira, 18 de dezembro de 2017

NOS CINEMAS - Star Wars: Os Últimos Jedi

Por Rafael Morais
18 de dezembro de 2017

Enquanto Rey tenta retirar Luke Skywalker de sua autoclausura, a resistência, comandada pela General Leia Organa, batalha contra as investidas da Primeira Ordem do supremo Líder Snoke. Esta premissa, bastante simples, ganha complexidade e camadas graças ao magnífico roteiro do também diretor Rian Johnson. Dos personagens "menores" aos mais significativos, todos ganham arcos bem delineados nas mãos de Johnson, conferindo importância e coprotagonismo.

E aqui, o hábil cineasta subverte a expectativa do público, bem como os principais conceitos da jornada do herói ou do vilão. Genial e arriscada, a proposta de "Os Últimos Jedi" foge do lugar comum, ganhando status filosófico/existencial em suas escolhas. Referenciar o velho (sabedoria, doutrina) sem esquecer o novo (impetuosidade, virtuosismo) é uma missão árdua, mas que essa nova trilogia abraçou com maturidade, entregando um resultado louvável.

Perceba que o maniqueísmo passou longe da ideia central do filme. O lado cinza das personas se destaca no lugar dos arquétipos. Ninguém é de todo mal ou bem, o que já difere em 90% dos blockbuster’s por aí afora. O diferencial em Star Wars, entre tantas coisas, é abordar a intrínseca relação de família, seja ela disfuncional ou não, culminando com os ensinamentos pragmáticos das gerações passadas deixados para as vindouras. Todo o respeito e carga dramática pesam no momento da decisão, uma vez que o caminho a ser seguido, seja ele o da luz ou da escuridão, vai depender de cada um, muito embora durante o percurso as tentações aconteçam (e sempre vão acontecer) para ambos os lados.

Neste sentido, é admirável, e atualmente necessário, que em meio a tantos discursos de ódio e violência em que vivemos uma produção do tamanho da franquia Star Wars ofereça uma mensagem que vai justamente na contramão disso tudo: o fracasso é a maior de todas as lições. Lembra um pouco a proposta da animação “Divertidamente”, também da Disney/Pixar, que explora a tristeza de uma criança como um sentimento tão importante quanto qualquer outro e fundamental para a sua evolução. Aliás, neste capítulo há um notório progresso dos personagens, onde todos terminam bem diferente do que começaram, demonstrando mais um grande acerto por não entregar apenas mais “um filme de meio/filler”, isto é, não é algo que está somente posicionado entre o início e o desfecho da novel trilogia.  

Emocionante, sem ser manipulador, este episódio VIII me fez ir às lágrimas diversas vezes - camufladas pelos enormes óculos IMAX - vindo à tona lembranças de “Uma Nova Esperança”, por meio de um enquadramento inspirador que faz uma rima visual com os dois sóis de Tatooine no início da jornada de Luke; quando percebi a disseminação da “Força” e a fagulha deixada pelos Rebeldes; na Millenium Falcon, órfã de Han Solo, rasgando os ares ao som da icônica e nostálgica música-tema do mestre John Williams; entre outras tomadas que não posso descrever aqui para evitar spoiler’s.

O fato é que o longa é tecnicamente impecável! Johnson pintou uma aquarela em cada frame da película com a ajuda do diretor de fotografia Steve Yedlin. A dupla esbanja conhecimento de linguagem cinematográfica quando utiliza o jogo de sombras em diálogos, como também nas frenéticas batalhas aéreas de deixar qualquer um boquiaberto (efeitos visuais incríveis!), ou nos instantes que antecedem um embate. A propósito, o frame que capta grandes máquinas de um lado e de outro “o exército de um homem só” é de arrepiar e bater palmas. E foi isso que aconteceu comigo neste instante. O que foi aquela guerra final no deserto de sal?! WTF! O chão parecia sangrar a cada riscada das naves no solo, a cada vida perdida na “arena”. 

No entanto, o sucesso deste episódio não seria possível sem o seu elenco energizante. Rey (Daisy Ridley) é definitivamente a “menina dos olhos” da nova trilogia, guardando um carisma inigualável; Finn (John Boyega) continua empolgado com a ideia de combater o Império, deixando aflorar, mais do que nunca, seu lado altruísta; já o piloto Poe Dameron (Oscar Isaac) ganha um belo arco de aprendizado, conquistando um coprotagonismo já esperado; os irmãos Skywalker, Leia (a saudosa Carrie Fisher) e Luke (Mark Hammil) reservam grandes emoções e entregam atuações memoráveis; o Kylo Ren vivido pelo talentoso Adam Driver extrai todo o potencial do ator e explora, ao máximo, o inteligente roteiro; enfim, todos estão à altura do filme, até os novatos que se juntaram à história também correspondem: a asiática Kelly Marie Tran/Rose (que só reforça a ideia de inclusão e representatividade tocada num sci-fi compromissado como é Star Wars) e Benicio Del Toro como um divertido decodificador cheio de maneirismos.   

A verdade é que o filme me conquistou, realmente. Não consigo ver grandes problemas nas suas duas horas e meia de duração (o episódio mais longo dos oito), nem nas missões secundárias em que Finn e Rose se meteram naquele Cassino, servindo para expandir ainda mais o universo, além de reservar uma ótima sequência de aventura. Claro que o primeiro ato aparenta ser um pouco arrastado, mas se faz necessário e prepara para um terceiro ato irretocável! As escolhas de Johnson para a continuação são surpreendentemente positivas e não senti falta de explicações sobre árvores genealógicas, muito menos a necessidade de “sangue azul” para conferir importância a alguém.

Só me resta agora, como fã que cresceu assistindo “Guerra nas Estrelas” nas sessões da tarde, e orgulhoso dos caminhos que a saga vem trilhando, esperar ansiosamente pela próxima aventura.

E que a Força esteja com você!  

*Avaliação: 5,0 pipocas + 5,0 rapaduras = nota 10,0.

quinta-feira, 14 de dezembro de 2017

NOS CINEMAS - Os Parças

Por Rafael Morais
14 de dezembro de 2017

A nova comédia dirigida pelo cineasta Halder Gomes entrega o que prometia nas prévias: piadas esculachadas inseridas em situações inusitadas e muita galhofa! Contudo, o roteiro é todo pautado no acaso, ao ponto de os principais acontecimentos serem aleatórios, como uma típica sitcom de televisão. “Os Parças”, do título, se conhecem muito por acaso, durante uma confusão na 25 de Março - SP, expondo as suas motivações e conflitos ao nível da superficialidade, tão rasos quanto uma tainha numa poça d'agua. Tirullipa e Whindersson Nunes são parceiros de enroladas na vinte e cinco, enquanto Tom Cavalcante vive um radialista de loja, daqueles que atraem os clientes com um microfone na mão. Hilário, o experiente humorista, de longe, é o mais solto entre todos. Para tanto, basta notar a falta de timing cômico de Bruno de Luca, perdido entre "os cobras" do humor.

A trama, por sua vez, une os quatro "amigos", por conveniência, obrigando-os a organizar um casamento, de última hora, da filha (a linda Paloma Bernardi) de um mafioso (Taumaturgo Ferreira). Neste sentido, o trambiqueiro na pele de Oscar Magrini surge natural e entrega as sidequests necessárias à trupe de fuleragens. Os principais acertos ficam por conta da interação entre os protagonistas, e mesmo as piadas requentadas de sucesso do humorista Tom ainda consegue arrancar boas gargalhadas. A direção de Halder (que dessa vez apenas auxiliou no roteiro, mas não o assina) demonstra segurança na condução da história e na linguagem escolhida. Cortes rápidos durante um monólogo, enquanto um personagem narra uma situação engraçada, apontam para uma narrativa voltada ao público da “geração y”. Assim, o Youtube é homenageado no universo da película, tanto que a escolha de Whindersson dialoga com esta proposta atual. Na molecagem, destaque para a participação do Bolachinha - parceiro habitual de Halder - pense numa comédia!

Ainda no aspecto técnico, o uso de slow motion, característico de títulos como a saga “Se Beber Não Case”, por exemplo, é utilizado em exaustão pelo diretor, rendendo ótimas, mas, previsíveis sequências. E as referências cinematográficas não param por aí. Perceba a câmera colocada num bagageiro de um carro captando a reação dos personagens ao abri-lo, fazendo alusão direta a Tarantino. Tudo não passa de uma grande brincadeira em forma de paródia. O liquidificador foi ligado com um mix de cultura pop pra ninguém botar defeito.

Carismático, colorido, despretensioso e gaiato por excelência, “Os Parças” - Cines Holliúdys e Shaolins à parte, pois estão em outro patamar - significa mais um projeto de sucesso, reforçado pela bilheteria estrondosa que o filme vem conquistando em poucos dias de lançado.

*Avaliação: 4,0 pipocas + 3,5 rapaduras = 7,5.

quinta-feira, 7 de dezembro de 2017

TEATRO - A Bela e a Fera

Por Rafael Morais
07 de dezembro de 2017

Quando a Disney anunciou que iria realizar um remake do clássico "A Bela e a Fera" em live action (atores reais no lugar do desenho), enquanto cinéfilo, tive duas curiosidades: quanto sairia este orçamento, que chegaria a casa dos milhões de dólares; e se iriam retalhar/modificar demais o original ao ponto de perder a essência. Já quando o Colégio Dom Quintino resolveu montar o mesmo tema para o Festival de Dança deste ano, só tive uma preocupação: quando vou assistir a este espetáculo?! Digo isso porque sei do zelo, esmero e dedicação dos profissionais que cercam este evento. Ano a ano, o Colégio entrega uma verdadeira obra de arte que transcende o tradicional teatrinho para agradar e emocionar os pais de alunos. Vai muito além! Tanto que diversas pessoas, assim como eu, acompanha todo ano o espetáculo sem ter um filho participando, "apenas" por absorvê-lo como pura arte.

Adaptar "A Bela e a Fera" é um grande desafio, tendo em vista que o Cinema trouxe sua visão da literatura francesa (Gabrielle-Suzanne Barbot, 1740), originalmente, já fazendo o favor de incutir em nossos cérebros imagens e personagens icônicos deste universo fantástico, através de efeitos especiais de última geração. Mas onde tem criatividade e imaginação, não precisa de computação. Vixe, até rimou! A direção de arte demonstrou inteligência na condução do espetáculo, se saindo de “armadilhas” com maestria. A começar pela escolha do charmoso Cineteatro São Luiz. Dono de uma aura histórica, situado em frente à bucólica praça do Ferreira, no centro da nossa cidade alencarina, não poderia haver lugar melhor para uma adaptação de um conto épico. O Teatro é uma atração à parte, quase um personagem diegético da peça. A sua imponência, desde a entrada até as dependências, imerge ainda mais o público naquela história. Ou você não reparou nos lustres e nas suntuosas estruturas do espaço se imaginando dentro do castelo da Fera? Experiência única!  

Desta forma, mesclar cenário prático com digital (o telão em HD proporcionou ótimos enquadramentos) vem sendo uma saída cada vez mais interessante encontrada pelos idealizadores. A Companhia de Dança do DQ - que transita seja pelo ballet, jazz ou qualquer estilo com uma naturalidade incrível - se sentiu à vontade no enorme palco, deitando e rolando, literalmente, fazendo valer cada hora de ensaio, que não deve ter sido pouco. Em cada ato da peça - desta vez se arriscaram pelo estilo musical – os alunos/atores/dançarinos entravam com uma segurança invejável. As coreografias, harmônicas e perfeitamente sincronizadas, embalaram a apresentação. Vale ressaltar, por oportuno, que assisti na parte de cima do teatro e pude ter uma vista panorâmica, por outra perspectiva. Tudo estava encaixadinho: fala/texto, coreografia, sonoplastia, música e ritmo. Contudo, como o teatro é gigante em suas dimensões, faltou uma acústica mais apropriada, podendo ter sido reforçada, se possível, pela utilização de caixas de som também na parte superior, nas laterais.

Ainda quanto ao elenco, destaco o casal de protagonistas, carismáticos e performáticos, bem como o antagonismo na figura de Gaston. O cara simplesmente transformou um dos piores (no sentido de mal aproveitado) vilões da Disney num sujeito canastrão tridimensional, fugindo do preto no branco, em que pese o seu egocentrismo/narcisismo nas alturas, revelando uma faceta alegre e extremamente divertida, tão carismática quanto o casal, sendo responsável por um dos principais momentos do musical: o bar. A sequência da taberna teve um toque especial quando os refletores se voltaram para o público, já entregue pela magia do show, e a interação aconteceu. As palmas saíram espontâneas enquanto os atores - àquela altura já não sabíamos quem era aluno e quem era de Hollywood rsrsrs - sapateavam e distribuíam atuações memoráveis.

Não menos engenhoso, o figurino estava deslumbrante, como sempre, sendo capaz de vestir e dar vida inclusive a objetos essencialmente “inanimados” como um bule, uma xícara, um candelabro ou um relógio. A referência à animação da Disney, de 1991, estava ali para fã radical nenhum botar defeito. O que nos remete também à assertiva maquiagem. A verossimilhança na máscara da “Beast”, por sinal, é outro acerto na caracterização! Tudo tecnicamente impecável, só não fizeram nevar... ops, fizeram sim!

Enfim, como citei na introdução, agora só me resta um pensamento: quando vou assistir ao próximo espetáculo e qual será o tema? Aguardo os spoiler’s...  

*Avaliação: 5,0 pipocas + 5,0 rapaduras = nota 10,0.              

terça-feira, 5 de dezembro de 2017

EM CARTAZ - Assassinato no Expresso do Oriente

Por Rafael Morais
05 de dezembro de 2017

Releitura da aclamada obra de Agatha Christie chega aos cinemas sob o comando do diretor e ator Kenneth Branagh, após longos 43 anos desde a adaptação de Sidney Lumet. “Assassinato no Expresso do Oriente” envelheceu bem, tendo em vista a sua abordagem sobre temas como ética e justiça, tudo inserido em um pano de fundo social microcósmico: um trem e os seus tripulantes.      

O detetive Hercule Poirot (Kenneth Branagh), diante de um imprevisto, embarca no trem Expresso do Oriente, graças à amizade que possui com Bouc (Tom Bateman), sujeito responsável pela coordenação da viagem. Já a bordo, ele conhece os demais passageiros e não aceita a proposta do estranho e mal-encarado Edward Ratchett (Johnny Depp), que desejava contratá-lo para ser seu segurança particular. Na noite seguinte, Ratchett é morto em seu vagão. Com a viagem momentaneamente interrompida devido a uma nevasca, que fez com que o trem descarrilhasse, Bouc convence Poirot para que use suas habilidades dedutivas de forma a desvendar o crime cometido.

Baseado nesta premissa, temos uma elegante e inspiradora direção de Branagh que se utiliza de lindos, e não menos eficientes, planos-sequência, capazes de situar o espectador no imenso trem, bem como apresentar “en passant” os misteriosos tripulantes. A câmera passeia com leveza por fora e por dentro do trem captando os personagens e revelando um ar de suspeição pairando em cada um. Todos são suspeitos em potencial. Sensacional!

Assim, repare na forma com que o cineasta segue a movimentação do lendário detetive Poirot, caminhando por cada compartimento, durante a investigação: ângulos altos, panorâmicas e a utilização de lentes grande angular, em momentos pontuais, só auxiliam na linguagem cinematográfica proposta. A locomotiva ganha vida e o mistério paira sobre os seus vagões, o que também é perceptível pelo público na escolha da paleta de cores escuras durante a noite do assassinato, e o jogo de sombras, confrontando a gama de cores mais claras na resolução, o que é justificado pelo próprio texto libertador que Poirot recita ao final.

O elenco, por sua vez, é estelar e contribui para o sucesso do longa. Desde o próprio Branagh como o excêntrico e bigodudo Poirot (dizem que a escritora Agatha Christie quando assistiu ao filme de Lumet na década de 70 não gostou do “discreto” mustache do protagonista – penso que agora ela não teria motivos para reclamar); passando pela recém-queridinha de Hollywood, Daisy Ridley, até os experientes William Dafoe e Michelle Pfeiffer, todos sustentam os seus papeis e entregam atuações fora do piloto automático. Cada personagem, desde o protagonista até os coadjuvantes (sim, no plural), tem a sua importância na trama e o tempo de tela é bem controlado, não há excessos ou faltas.

Para não dizer que a obra é redondinha, o desvendar do crime, no momento em que Poirot liga as pontas soltas e raciocina logicamente o que aconteceu na fatídica noite, merecia uma representação mais cinematográfica, do ponto de vista estético, ficando limitado a um cambaleante preto e branco para demonstrar um fato passado, nem tão pretérito assim, faltando emoção e mais apuro visual (suspense gráfico). Vale salientar, no entanto, que esse probleminha não tira o charme do filme, muito menos diminui o seu debate bastante atual sobre o “se fazer justiça”. Mérito de uma autora genial que escreveu o livro na década de 30, mas que continua dialogando harmonicamente com o nosso mundo de hoje.  

*4,5 pipoca + 4,5 rapadura = nota 9,0. 

domingo, 26 de novembro de 2017

NOS CINEMAS - Liga da Justiça



Por Rafael Morais
26 de novembro de 2017

Depois dos eventos de "BvS - Batman Vs Superman", Bruce Wayne (Ben Affleck) decide reunir um grupo de meta-humanos capaz de conter uma ameaça intergalática que pretende aniquilar a vida na Terra e se apoderar do planeta. Baseado nesta premissa, o roteiro, transbordado de clichês, de Chris Terrio e Zack Snyder é tão óbvio e infantil ao ponto de nos depararmos com aquelas famosas frases de efeito: "vamos salvar o mundo" ou "o mundo precisa de nós"! Mas os problemas do filme não ficam somente aí. A pressa com que a DC/Warner tem em apresentar seu universo estendido e cinematográfico de seu vasto plantel de heróis é visível no desespero em introduzí-los nas telonas. Tudo é arremessado por meio de explicações didáticas (faltou só um datashow) embutidas em pen drives (BvS), tolhendo todo o charme mítico daquelas figuras. 

Acompanhar o mercado aquecido de heróis que invadem as salas de cinema é fácil, o difícil é fazer isso com qualidade. Perceba que até o tom mitigado entre o divertido e sombrio conquistado na trilogia Dark Knight, de Christopher Nolan, foi totalmente descartado aqui. Na verdade, devido a pressão advinda do público e da crítica, o filme não tem um tom definido, seja no humor ou na paleta de cores. Não há uma identidade visual própria, tornando a produção genérica. Aliás, percebemos facilmente o desleixo através de tomadas pouco inspiradoras (para não dizer horríveis) como aquela em que os heróis saltam de um trem, um de cada vez, em meio a um túnel escuro. É perceptível o cenário montado, sem vida, bem como a luz artificial, indireta, projetada na misancene. Muito tosco! Nesta mesma sequência, ainda notamos que o uniforme do Batman (cada vez mais parrudo) não passa de um amontoado de plásticos emborrachados, dando a impressão que a sua movimentação é anatomicamente impossível. Seria moleza derrotar um cara todo emplastificado, até nas juntas, porém, graças ao CGI, o milagre acontece e o morcegão consegue se mexer fluidamente para derrotar seus inimigos. 

Esteticamente feio e dono de uma montagem nada inspiradora, "Liga da Justiça" tinha todo potencial para ser espetacular. Talvez a troca de diretor no apagar das luzes (pós-produção), sai Snyder entra Joss Whedon, tenha auxiliado na formação do Frankenstein que é esse longa. Os remendos na película são notórios. Piadas de humor sem o mínimo timing cômico são arremessadas no público na tentativa de segurá-los. Mas como se prender a um filme que volta a lidar com a temática já experimentada no terrível ''Lanterna Verde'', onde o vilão fareja o medo. Sério isso? O medo, de novo?! Como se não bastasse errar uma vez, a DC permanece no erro ao não manter sua identidade dos quadrinhos (dizem os especialistas que a pegada é mais densa por lá) e regressa com falhas já catalogadas na sua oscilante cinematografia, se entregando ao fan service fake quando tenta mimetizar a concorrente Marvel até mesmo incluindo duas cenas pós-créditos. 

O elenco, por sua vez, se esforça para agradar, mas acaba se resumindo a isto: o Flash de Ezra Miller é aborrecedor e aparece sempre com a mesma expressão de assustado. Não convenceu. O Ciborgue de Ray Fisher lembra os dilemas do Robocop, mas não é bem explorado. Já o Aquaman de Jason Momoa pode render um filme solo legal, tendo em vista o carisma do ator. O vilão, Lobo da Estepe, é um desastre completo, uma vez que  é todo trabalhado no digital, sem expressão alguma, sendo mais um boneco metido a assustador com um baita vozeirão grave modificado na mesa de som. Enquanto isso, a chamada Trindade, formada por Mulher-Maravilha (Gal Gadot MARAVILHOSA como sempre, com o perdão do trocadilho), Batman e Superman (Henry Cavill e sua barbearia digital) tenta segurar todo o filme nas costas, e que embora sejam largas, não aguentam. 

Outro desacerto fica por conta da quase trilha sonora. A obra em si é um quase. Poderia se chamar "Quase Liga da Justiça", inclusive. Por que raios não inseriram completamente as icônicas trilhas originais/tema do Batman e do Superman, mas apenas o comecinho, uma palhinha?! MEDO de não ser original? Cuidado com o medo porque se não bicho papão vem e pega. Foi isso que vocês nos ensinaram. A propósito, nem a canção "Come Together" (dos Beattles), que teve uma regravação sensacional por Gary Clark Jr., exclusiva para o filme, foi utilizada durante, mas, apenas depois, nos créditos finais. Anticlímax total! Diferente de Thor Ragnarok, por exemplo, que injetou duas vezes o ''Immigrant Song'' de Led Zeppelin e foi de arrepiar.

Entretanto, depois de tantas mordidas, vale assoprar um pouquinho. Aqui e acolá, algumas cenas podem empolgar os mais suscetíveis, como quando o Detetive de Gotham caça um monstrengo, durante a noite escura de Snyder - e bota escura nisso - nos altos dos prédios de Gotham (ou seria Metropolis ?); num certo diálogo entre Clark e Bruce que referencia o pré-embate entre eles ocorrido em BvS; no instante em que o batmóvel atira projéteis contra bestas, e a famosa câmera lenta do diretor entra em ação para mostrar as cápsulas caindo em primeiríssimo plano; ou até mesmo quando toda a Liga está reunida e vislumbra o horizonte (enquadramento clássico). Mas não foi suficiente, não deu liga DC/Warner...não foi dessa vez.

*Avaliação: 2,5 pipocas + 2,5 rapaduras = nota 5,0. 

terça-feira, 31 de outubro de 2017

NOS CINEMAS - Thor: Ragnarok

Por Rafael Morais
31 de outubro de 2017

Um filme de comédia, que respeita todas as convenções do gênero, pontuado pelo som pauleira de Led Zeppelin (“Immigrant Song” cai como uma luva) nas principais cenas de ação, tudo isso contando com a presença da estonteante Cate Blanchet. Sem querer minimizar a nova produção do Marvel Studios, este resumo retrata bem a película, mas isso não quer dizer que foi uma experiência ruim. Longe disso.

A aventura da vez foca no iminente Ragnarok (apocalipse) de Asgard, enquanto Thor (Chris Hemsworth, cada vez mais à vontade no personagem) está preso do outro lado do universo, no distante planeta Sakar. Assim, o herói precisa correr contra o tempo para voltar à sua terra natal e tentar impedir o pior. Contudo, a tarefa não vai ser fácil, tendo em vista que a incumbência de destruir aquele mundo repousa nas mãos da poderosa e implacável vilã Hela (a linda e talentosa Cate Blanchett).

Baseado nesta premissa simples, o roteiro deita e rola nas piadas, sem se preocupar em aprofundar as relações, muito menos dramatizá-las. Tudo funciona a favor da diversão, embora esteja tratando, simultaneamente, da extinção de um planeta. Mas isso não incomoda, já que o tom da filmografia da Marvel nunca foi sério ou sombrio, com a exceção da trama de espionagem imprimida em “Capitão América 2: O Soldado Invernal”. Desta vez, o público não pode alegar que foi enganado pela campanha de divulgação. Cartazes extremamente coloridos, trailers bem humorados e contratação de Taika Waititi para direção: o resultado não poderia ser outro, foi entregue justamente o que se esperava.

Tecnicamente regular, o CGI (computação gráfica), em alguns momentos, não traz verossimilhança aos cenários, sendo quase palpável o chroma key (tela verde para projeção de efeitos) por detrás dos personagens. O capricho visual ficou mesmo por conta do esperado embate entre Thor e Hulk (Mark Ruffalo) na arena de gladiadores. Impecável! Os monstros gigantes também tiveram atenção especial dos efeitos digitais. A fotografia, por sua vez, parece pouco inspiradora, em que pese o 3D entender bem a profundidade de campo e oferecer perspectivas interessantes, seja na ação ou na própria ambientação, afinal de contas estamos conhecendo o novel universo de Sakar. Destaque para a vasta e saturada paleta de cores explorada, transformando a película em um arco-íris, inspirada nos traços marcantes das HQ’s do aclamado Jack Kirby, segundo especialistas na matéria.

Se “Thor: Ragnarok” acerta na apresentação de novos personagens, como o divertido Korg (expressão corporal captada pelo próprio Waititi); a jornada de redenção da Valquíria interpretada pela ótima Tessa Thompson; o Skurge/Executor de Karl Urban acaba mais interessante do que começou; sem esquecer o divertido Grão-Mestre na pele do experiente Jeff Goldblum. O mesmo não podemos dizer sobre o desenvolvimento daqueles que já conhecemos: o Loki, que já foi vilão dos Vingadores, não oferece mais ameaça alguma; o Thor parece um humorista, sugerindo que talvez possa vir a ser o alívio cômico do supergrupo; Heimdall, como sempre, desperdiça o talento de seu intérprete, Idris Elba. Já o Hulk “chutou o balde” para o seu dilema existencial, restando apenas um gigante bobo dentro do excêntrico cientista Banner. Mas há uma química entre todos eles, isso não se pode negar.

Ao final, Waititi entrega uma típica obra da Disney/Marvel, dentro da zona de conforto, sem jamais se arriscar, mas que promete agradar a todos os níveis de público. E que venha a saga “Guerra Infinita”...

 *Avaliação: 4,5 pipocas + 3,0 rapaduras = nota 7,5.

segunda-feira, 16 de outubro de 2017

NOS CINEMAS - Kingsman: O Círculo Dourado

Por Rafael Morais
16 de outubro de 2017

Se toda continuação, de qualquer blockbuster que se preze, segue a regra da grandiloquência, em que tudo deve ser maior e mais exagerado, então este “Kingsman: O Círculo Dourado” seguiu direitinho a cartilha.

A trama da vez gira em torno do surgimento de uma nova ameaça capaz de eliminar o Kingsman, sobrando “apenas” Eggsy (Taron Egerton) e Merlin (Mark Strong) como remanescentes. Em busca de ajuda, eles partem para os Estados Unidos à procura da Statesman, uma organização secreta de espionagem onde trabalham os agentes Tequila (Channing Tatum), Whiskey (Pedro Pascal), Champagne (Jeff Bridges) e Ginger (Halle Berry). Unidos, eles precisam enfrentar a responsável pelo ataque: Poppy (Julianne Moore), a maior traficante de drogas da atualidade, que elabora um plano mirabolante para sair do anonimato.

A boa notícia é que Matthew Vaughn voltou à direção – após o excelente capítulo antecessor – conseguindo imprimir o seu ritmo alucinante de ação em sequências de tirar o fôlego, ao ponto de a polêmica cena da igreja do primeiro ser apenas um aperitivo para o que estava por vir. Pautado na falta das leis da física, e isso não é nunca foi um problema em si, a ação prende a atenção do público, ao passo que o carisma de seus personagens também nos faz importar com o desfecho de cada um. O agende Galahad de Colin Firth volta, para o bem da franquia, demonstrando toda a força de um ator veterano e talentoso, contracenando ótimos diálogos e situações com o jovem Egerton.

A química experimentada em “Serviço Secreto” está lá, mas isso é o suficiente? Em que pese os efeitos especiais espetaculares, bem como as alucinantes perseguições de carro, o tom de autoparódia, e do uso abusivo de clichês do gênero (filmes de espionagem) podem incomodar. Carros submarinos, mulheres descartáveis que servem somente para o espião descobrir algo, elegância e glamour são apenas algumas das convenções exploradas aqui até não poder mais. Oscilando entre a comédia e a ação, não sabendo se decidir em qual lado ficar, “O Círculo Dourado” peca mesmo é na escala de sua urgência, sempre relegada ao famoso “vou ali salvar o mundo e volto já”. Sem falar no erro de casting ao escalar a doce Juliane Moore como uma vilã maquiavelicamente caricata, não nos convencendo jamais aquela maldade fabricada.

Não, o filme anda longe de ser todo ruim. A trilha sonora é bem escolhida, os enquadramentos de Vaughn são bem realizados e o resultado é uma obra divertidíssima que quase não percebemos passar suas duas horas e pouco de duração. Mas é Pedro Pascal, como o agente Whisky, que salva o longa. O novel personagem da saga confere uma rasteira complexidade à sua persona, acrescentando camadas, embora finas, a um tipo que também estava fadado ao trivial.
Ao final, resta mesmo é aquele cheirinho de produção “caça-níquel” no ar, tanto que um próximo episódio já está vindo por aí. Veremos até quando a criatividade de Hollywood consegue expandir este universo.

*Avaliação: 4,5 pipocas + 2,5 rapaduras = nota 7,0.

domingo, 8 de outubro de 2017

NOS CINEMAS - Blade Runner 2049

Por Rafael Morais
               
30 anos após os acontecimentos do primeiro longa, a Los Angeles distópica do visionário Ridley Scott continua ácida, sombria e repleta de espécimes dos mais diversos tipos. Nesta aguardada sequência do clássico cult, a direção ficou por conta do inspirado, e em ascensão, Dennis Villeneuve, enquanto que Scott cuidou da produção. E o cara não deixou a desejar. Com a difícil missão de mexer no “vespeiro” que é um filme icônico do nostálgico anos 80, Villeneuve sabia que para não cair numa "armadilha" o certo seria respeitar o que já foi realizado, expandir o universo e apresentar novos personagens. E foi exatamente isso que ele fez.

Como o próprio título diz, estamos no ano de 2049 e os replicantes da geração passada são caçados e "aposentados" compulsoriamente para dar espaço aos novos modelos. Neste contexto, conhecemos o policial K/Joe (Ryan Gosling), o novo oficial caçador de androides. Envolto numa trama típica de noir, o agente deve enfrentar uma perigosa investigação em busca da verdade por trás do mistério acerca do surgimento de uma “ossada” reveladora, durante uma side quest logo no prólogo.  

Preocupado em não estragar o mistério que rodeia o inteligente script escrito por Michael Glenn e Hampton Fancher, este texto não esmiuçará o filme, portanto, está livre de spoilers. Deste modo, importante valorizar aqui o minucioso trabalho de fotografia do mestre Roger Deakins, capaz de situar o espectador no tempo e espaço, captar a alma cyberpunk do seu antecessor e reproduzir enquadramentos contemplativos e, simultaneamente, reveladores. E o estilo gráfico de lutas e/ou diálogos em contraluz são um dos meus favoritos. Perceba também a paleta de cores utilizada que se harmoniza com a premissa: a cor laranja para ambientes tomados por radiação, o azul e vermelho neons para a cidade hightech pós-apocalíptica (blecaute, como eles chamam) e o cinza dessaturado para regiões interioranas, não menos devastadas.

E por falar em metrópole, a utilização de planos aéreos, já característica do cineasta - quem já leu algum outro texto que escrevi sobre a filmografia de Villeneuve perceberá a recorrência dessa técnica, ao tempo em que notará que sou um grande fã de suas obras – situa o espectador na atmosfera claustrofóbica de uma cidade suja e sem vida, em todos os sentidos, e refém da tecnologia, quando enclausura seus moradores em blocos de concretos que, vistos de cima, lembram compactações de lixo ou tralhas, mas que servem ali para amealhar vidas. E não é à toa o massivo emprego de holografia, como se a dura realidade não bastasse e o que era bom já passou, agora virtual, o que traz um tom de nostalgia à ambientação.

E o mérito para esse “Blade Runner 2049” funcionar, além de seu roteiro redondo, se deve também à habilidade de Villeneuve em construir o clímax, paulatinamente, sem pressa alguma, utilizando planos detalhes e longos, com poucos cortes (o que era pra tornar entediante, já que foge dos padrões de blockbuster’s hollywoodianos repleto de cortes frenéticos para facilitar o consumo expresso) imergindo o público ao ponto de não nos fazer cansar, muito menos sentir as mais de duas horas de projeção. Assim, a espetacular trilha sonora do genial Hans Zimmer acrescenta à linguagem narrativa proposta quando ganha um crescente de tensão. Notas de suspense nas entrelinhas dos agudos distorcidos; toques monofônicos de uma sociedade refém da tecnologia; distopia em forma de notas musicais graves: assim é a composição de Zimmer.

O elenco, por sua vez, também merece destaque. Harrison Ford, surpreendentemente, apresenta novas camadas ao seu velho e bom Deckard entregando uma de suas melhores performances em tempos. Ryan Gosling (K/Joe) e Ana de Armas (Joi) distribuem carisma e fazem com que nos importemos com o final do casal. Sylvia Hoeks (Luv) como a capanga de Wallace (Jared Leto em uma atuação inesperadamente contida) é performática e expressiva ao ponto de nos passar senso de perigo/urgência durante suas ações.

PENSO, LOGO EXISTO...
Blade Runner 2049 aborda conceitos de inteligência artificial e orgânica, os dois lados da mesma moeda, consegue ser visceral na sua ação, muito mais voltada para o existencialismo filosófico dos seres que se embatem, do que nos conflitos do músculo, das explosões ou da profusão de sangue. Estamos diante de um filme obrigatório não só para os fãs do gênero de ficção científica, mas para quem gosta de cinema. Uma verdadeira experiência cinematográfica que nos faz sair da sala pensando, o que já é um diferencial para a maioria das produções atuais.
*Avaliação: 5 pipocas + 5 rapaduras = nota 10,0.

domingo, 24 de setembro de 2017

EM CARTAZ: Mãe!

Por Rafael Morais
24 de setembro de 2017

Um escritor (Javier Bardem) se refugia com a sua mulher (Jennifer Lawrence) no intuito de recomeçar a vida após um incêndio que teria acabado com a sua residência. Paralelo a isso, o sujeito também busca inspiração para escrever o seu novo trabalho, sofrendo um bloqueio criativo depois dessa tragédia. Com o passar do tempo, visitantes “inesperados”, mas, necessários (Ed Harris e Michelle Pfeiffer) surgem para visitar o casal, acabando com a rotina de paz e marasmo.

Baseado nesta premissa, que parece simples, o cineasta e roteirista Darren Aronofsky aborda as intempéries do processo criativo de um artista através de metáforas do início ao fim. De antemão, aviso que mais à frente entrarei com spoiler’s (avisarei), visto que é uma tarefa árdua falar sobre esse filme sem adentrar nos seus meandros. E essa dificuldade ocorre justamente pelo fato de cada personagem ou objeto de cena significar algo ou alguma coisa, sem jamais oferecer interpretações diversas, ou terceiras leituras, sob pena de se perder a principal mensagem que o filme quer passar.

Neste sentido, o marketing peca em vender um produto de drama envolto num universo fantástico sombrio, com toques de suspense, é bem verdade. Campanha de divulgação desonesta, pautada num terror/horror, comparando até com “O Bebê de Rosemary”, esta referência não se coaduna com a obra, com exceção do figurino preto dos visitantes, bem como os olhares bizarros, ansiosos e contemplativos, tudo ao mesmo tempo, em volta da figura da esposa e o que ela pode gerar. De resto, este novo filme de Aronofsky flerta mais com David Lynch em Império e/ou Cidade dos Sonhos, por exemplo, do que propriamente com Polanski.

Deste modo, escolhendo seguir a personagem de Lawrence (sim, quase todas as personas não são batizadas por nomes, mas, sim pelo que estão representando) desde o seu despertar até o desfecho, a câmera de Aronofsky é fixada no ombro da mulher e a persegue por todos os caminhos. Assim, o uso de steadcam auxilia na captação dos passos da coprotagonista, além da utilização de movimentos de travelling para dar a falsa sensação de que tudo gira em torno daquela mulher. O que não deixa de ser verdade, em partes. É ela, a musa inspiradora do artista, que move o longa pra frente, sendo constantemente abordada fisicamente na figura de uma mulher idealizada em poucas roupas, corpo esbelto, curvas acentuadas, pele macia e busto farto, tal qual uma imagem sacra, no estilo barroco. Sempre disposta a ajudar o seu marido, quase incapaz de lhe dar um não como resposta, temos uma figura resiliente e necessariamente catártica.

----------------------------------------- SPOILER ALERT!  ------------------------------------------------

“Eu Sou o que Sou” (Êxodo 3:13-14), diz Deus a Moisés. E o escritor, lá pelas tantas, quando perguntado quem ele era, solta a mesma frase. Na verdade, Aronofsky empresta a “Mãe!” um tom alegórico, permeado por signos, guardando interpretações e referências bíblicas para estruturar uma comparação com as diversas formas de criação. Se por um lado, temos um artista passando por uma crise de falta de criatividade, de outro, depois de superado um carrossel de emoções - uma ode à loucura introspectiva na cabeça de um autor - vimos o ápice da sua criação, sua masterpiece: revelando-se uma obra perfeita e acabada que mudará a vida daqueles que a consumirem, literalmente. Assim, o bebê “devorado” pelo público se desponta como um símbolo da obra finalizada e ligeiramente consumida, como um sacrifício de um homem que entrega o seu filho para a humanidade. E isso não lembra a história de Jesus, enquanto cordeiro imolado?! Portanto, não à toa, o plano faz menção ao corpo e sangue entregue aos sedentos.

Desta forma, há uma personificação literal do encontro/relação entre o artista que encontra sua musa inspiradora e concebe um filho com ela, a obra deixada para posteridade. Um livro, filme, música ou quadro (obra de arte qualquer) depois de publicada não passa mais a ser de quem a criou, mas do povo. Quem nunca ouviu aquela expressão: “isso foi um parto”, após um trabalho árduo?! Tudo isso em "Mãe!" é elevado à enésima potência.

Crítica, público, indústria (a editora chamada Herald vivida por Kristen Wiig – sim, esta tem um nome) e artista vivem constantemente esse embate pela publicação e aceitação das novas obras, do lançamento. O consumismo é invasivo e isso é bem representado em tela, como na sequência em que os fãs caminham pela pastagem verde, todos de preto, alienados, se dirigindo até a casa do seu ídolo para cobrar o produto (um poema, neste caso) e venerar o resultado final, traçando uma analogia imediata, na cabeça de um cinéfilo, com “A Noite dos Mortos-Vivos”, do saudoso George Romero.

O sacro e o humano se fundem em tela, evidenciando que aqueles personagens são frutos da criação do “poeta”. Perceba pela justaposição de imagens e o jogo de posicionamento de câmera, que o “fã” vivido por Ed Harris senta ao lado de seu “ídolo”, e num enquadramento magistral, o cineasta capta o corpo de Harris saindo do perfil de Bardem, como se o concebesse. Genial! 

Não menos espetacular, a simbologia do diamante bruto dando vida à casa (local das ideias do artista, seu cérebro inquietante) torna a imagem reveladora de tudo o que estar por vir. Ainda na busca por significados, temos a representação da primeira família que viveu no paraíso (termo utilizado pela esposa se referindo ao lar) nas personas de Harris e Pfeiffer como Adão e Eva, e os seus filhos Brian Gleeson, o caçula, sendo assassinado pelo irmão mais velhoDomhnall Gleeson, após travarem uma luta, uma espécie de Cain e Abel.

Com um pé na “Divina Comédia” de Dante Alighieri, quando retrata o Inferno em fases, o ciclo da criação é completado com a jornada daquela musa se desfazendo aos poucos, queimando lentamente, para dar lugar a um novel período de descobertas e inventividades, onde outra criatura inspiradora, com corpo e rosto diverso, mas não menos idealizado, chegará para impulsionar a vida de seu criador.

*Avaliação: 4,5 pipocas + 5,0 rapaduras = nota 9,5.


segunda-feira, 18 de setembro de 2017

NOS CINEMAS - Atômica

Por Rafael Morais
18 de setembro de 2017

Charlize Theron está cada vez mais furiosa, diz o cartaz. E isso não é só uma referência direta à sua personagem em “Mad Max: Estrada da Fúria”, uma vez que a atriz vem escolhendo papeis cada vez mais badass. E aqui em “Atômica” não é diferente. A parceria com o diretor David Leitch (corresponsável pelo excelente John Wick) rendeu uma ótima obra de ação, podendo decepcionar quem estiver esperando um filme de espionagem puro. A trama é bem simples: perto da queda do muro de Berlim, EUA, Inglaterra, França e União Soviética disputam informações privilegiadas quando um agente da MI6 é assassinado e tem uma importante lista roubada.

Assim, Lorraine Broughton, a agente especial vivida por Theron tem uma missão principal e uma side quest bem delineada:  resgatar a lista e identificar o agente duplo de nome Satchel é o seu mister. Neste sentido, a película tem um primeiro ato sofrível quanto ao ritmo da narrativa, vindo a melhorar drasticamente nos seus demais atos. Banhado por uma fotografia dessaturada, guardando na utilização de néons com cores quentes e vivas, fazendo assim uma quebra do tom cinza, gélido e azulado que impera, sobretudo, na Alemanha Ocidental, Atômica acerta em cheio na ambientação diferenciando com precisão ambos os lados do muro. Especialista em coreografia de lutas, Leitch consegue aprimorar a fórmula de "De Volta ao Jogo", como no impressionante plano-sequência que se inicia durante uma pancadaria na escadaria, finalizando com uma alucinante perseguição de carro. Sem cortes aparentes, este plano longo lembra aquele que vimos no magistral “Filhos da Esperança” de Alfonso Cuarón, por exemplo, tamanha a complexidade da continuidade da ação, ininterrupta, de quase uns 20 minutos.

Outro show à parte é a excepcional trilha sonora que casa com a época. Os anos 80/90 são representados por bandas que vão de New Order a Queen (Under Pressure oferece uma catarse sonora) e as músicas equalizam as cenas ao passo que marcam o ritmo das ações. Sem oferecer glamour à figura do espião, a maquiagem soa orgânica ao auxiliar na desconstrução da "heroína", expondo os hematomas, as feridas e as marcas deixadas a cada embate. Demonstrando ter uma boa base cinematográfica, Leitch referencia o diretor russo Andrei Tarkovski, diretamente, através dos cartazes do filme “Stalker” espalhados pelo cinema quando Lorraine enfrenta os seus inimigos. Se em Stalker a queda de um meteorito cria um local onde os sonhos se realizam, porém, ambientes este restrito apenas a alguns (chamado de Zona e quarto), aqui em “Atômica” a metáfora é emprestada com a queda do muro e as consequências político-sociais.

Visualmente impecável e explorando a violência gráfica, o longa reserva cenas de ação clássica como aquela em que Lorraine enfrenta um russo em contraluz, por detrás da tela de um cinema. Não menos interessante, o elenco entrega interpretações convincentes, sobretudo o David Percival do performático James McAvoy. Sujeito estranho, camaleônico e complexo, o agente conhece os lados opostos de Berlim, como a palma da sua mão, tornando-se um típico produto do meio. No mais, apesar de um roteiro raso, desprovido de mistério, “Atômica” funciona enquanto filme de ação e ratifica ainda mais o posto de Charlize como uma atriz versátil e ícone “Girl Power” da nova geração.

*Avaliação: 4,0 pipocas + 3,5 rapaduras = nota 7,5

sábado, 9 de setembro de 2017

NOS CINEMAS - It: A Coisa

Por Rafael Morais
09 de setembro de 2017

Um grupo de jovens é atormentado por uma entidade maligna, representada por diversas formas, guardando na figura do palhaço dançarino Pennywise a sua principal representação. Ancorado nesta premissa, este remake de "Uma obra-prima do medo", de 1990, se revela necessário tanto pelas questões técnicas (efeitos visuais aperfeiçoados, maquiagem caprichada e direção de arte impecável) quanto pelo valioso subtexto abordado, tão em voga atualmente: o bullying sofrido pelos heróis e a representatividade das minorias, através das diferentes raças, credos e culturas do clube dos "perdedores".

Na verdade, o roteiro escrito por Gary DaubermanChase Palmer e Cary Fukunaga conseguiu captar o espírito do livro de Stephen King ao  estabelecer uma química entre os membros do grupo ao passo que expõe, gradualmente, as limitações e problemáticas de cada um. Repleto de alegorias sobre a difícil fase “mutante” que é a adolescência, o filme, de maneira proposital, desfoca a visão do adulto como um ser implacável com as suas crianças, além de alienados ao que está acontecendo à sua volta. E aqui, o cinema sob o ponto de vista freudiano pesa a mão nas relações pais e filhos. O universo em "It - A Coisa" é focado exclusivamente sob a perspectiva do universo infanto-juvenil, em que pese a atmosfera de terror que toma a película.

Assim, o diretor Andy Muschietti captura cenas icônicas de uma juventude em constante transformação por meio de tomadas que evocam a amizade, os desafios e a maturidade precoce. Lembrando "Conta Comigo", também de King, neste aspecto - quando caminham pela floresta, andam de bicicleta pelas ruas e tramam planos mirabolantes - o cineasta tem ótimas e certeiras referências. E "A Hora do Pesadelo" de Wes Craven também é uma delas. Perceba o tom onírico das sequências de assombração que remetem àquelas situações em que Freddy Krueger escolhia sua presa, sempre solitária e indefesa. Contudo, se lá soava orgânico o fato da vítima estar dormindo, e, portanto, havia uma lógica para o pesadelo ser um evento individual e descolado da realidade; aqui em "It" cada sequência de terror parece um videoclipe à parte, o que não ajuda na construção do todo, na misancene, podendo transparecer um viés episódico ao longa, coisa que o cinema evita a todo custo.

Isso também acontece graças ao terror estilosamente gráfico. Esqueça o medo psicológico ou intimista, aqui o gore rola solto e o monstro apresenta suas garras, literalmente. O suspense não andou lado a lado com o terror, aniquilando a preparação para o “sentir medo”. E por falar em medo, como a entidade nefasta se alimenta dele, é curioso notarmos a inventividade da direção de arte em criar lugares e figuras macabras para cada tipo de situação. Esgotos, escolas, quartos e porões fazem parte do imaginário popular, dos contos sombrios, fato não esquecido pelo script, muito menos pelo olhar apurado do diretor. Neste sentido, adaptando-se individualmente a cada tipo de fobia, variando de acordo com o personagem, chove criatividade em tela, como por exemplo: o leproso que assombra uma criança hipocondríaca; os traumas de uma tragédia do passado que voltam à tona no presente; o ciclo menstrual de uma garota entrando na puberdade (e a cena do banheiro é uma das minhas favoritas) que enfrenta o preconceito da sociedade dentro e fora de casa, apenas por ser mulher; e claro, o medo de palhaço. E assim chegamos a Pennywise.

Interpretado com maestria por Bill Skargard, o palhaço é freaky na medida, além de carregar nas expressões corporais e faciais um trunfo para a composição perfeita de um ser macabro. Entregando doçura para atrair uma criança e insanidade para fazê-la sentir medo, no mesmo quadro, como uma entidade sempre prestes a explodir, Pennywise parece estar onipresente tanto fisicamente, quanto em cada ato eivado de maldade. Note o balãozinho vermelho (a cor do perigo) que passeia perto de um personagem que acabara de praticar o mal ou omitir uma ajuda, como na sequência em que uma criança obesa é gravemente agredida por seus perseguidores, fato presenciado por um casal de senhores que passa de carro no momento e nada faz para ajudar a indefesa vítima. Desta forma, o símbolo surge no banco de trás do carro indicando que a figura de um clow é apenas uma das formas de malignidade.

O elenco mirim, por sua vez, é carismático e talentoso ao ponto de Amblin nenhuma botar defeito. E quando me refiro à empresa responsável por um dos melhores filmes de aventura dos anos 80 não é à toa. O filme nos mergulha nesta época, flertando com o jeitão datado de um cine trash ou sessão da tarde (“Os Goonies” estão ali), ocasião em que a nostalgia nos pega de jeito. Spielberg que o diga...

Divertido mais do que aterrorizante, o longa deixa um gostinho de quero mais, muito embora tenha duas horas e quinze minutos de duração. De tal modo, até a fotografia solar explicita o tom aventuresco em detrimento do terror, uma vez que a maioria das cenas se passa à luz do sol, durante o verão, sem se preocupar com a mudança para uma possível paleta mais dark ou ambientes escuros.

Enfim, preparando terreno para a vindoura parte II (e espero que não se passe mais 27 anos, apesar desta data ser uma referência direta aos acontecimentos do filme), o desfecho amarra as pontas soltas, se é que tinha alguma, e cria expectativa para o que pode vir no futuro, uma vez que o medo não é privilégio apenas de crianças, muito pelo contrário. E você, tem medo de quê?

*Avaliação: 5,0 pipocas + 4,0 rapaduras = nota 9,0

domingo, 3 de setembro de 2017

NOS CINEMAS - Bingo: O Rei das Manhãs

Por Rafael Morais
03 de setembro de 2017

Quem viveu os anos 80 entende a definição de politicamente incorreto. Programas “infantis” matinais, extremamente divertidos e nonsense, tomavam as nossas manhãs de assalto, ao passo que concebia uma geração desprovida de “mi mi mi”. E em vários momentos deste “Bingo – O Rei das Manhãs”, o personagem Augusto (Vladimir Brichta), na pele do palhaço homônimo do título do filme, solta diversas frases que corroboram a identidade da minha geração: “essas crianças não são fáceis de enganar”; “o Brasil não é para iniciantes”, entre outras do gênero.

Na verdade, estamos diante da cinebiografia do famoso palhaço Bozo que teve como um de seus primeiros intérpretes o excêntrico Arlindo Barreto. Assim, por questões de ordem jurídica (direitos autorais), nomes de artistas, marcas de empresas e locais foram alterados, mas nem por isso deixamos de identificá-los em tela. A Rede Globo, o próprio protagonista, a cantora Gretchen, passando por Xuxa, bem como o SBT, tudo foi convertido em ficção. Talvez por conter DNA de filme alternativo, fora do mainstream, a “Globo Filmes” não despertou interesse em produzir o longa, em que pese abordar o backstage da cultura pop televisiva.

Neste contexto, somos apresentados à história de um jovem ator de pornochanchada que resolve enveredar pelo caminho das telenovelas, tentando se provar constantemente enquanto artista e pai, vindo a parar num set de testes para viver o palhaço Bingo (é o Bozo, você já sabe), sucesso e líder de audiência nos EUA há mais de 10 anos. Com esta sinopse relativamente simples, o roteiro consegue explorar todas as possíveis camadas de um artista em ascensão, passando pelo declínio e alcançando a redenção, quesitos obrigatórios em uma cinebiografia. Inteligente, o script explora o talento de Vladimir Brichta (o cara arrebenta!) para entregar diversas nuances de sua dupla persona. E se o protagonista é desenvolvido em tons de cinza (sem maniqueísmo), tal abordagem auxilia na identificação do espectador com os dilemas do herói (ou seria anti-herói?), uma vez que o traço de humanidade surge em momentos de falhas.

“A vida não é fácil”, esbraveja Augusto constantemente. Tentativa e erro são o mantra do protagonista durante a película. Tudo ressaltado pela frustração do artista ao não ser reconhecido nas ruas por sempre estar fantasiado em cena. Reconhecimento do público e da crítica é o que um artista almeja durante a sua carreira, para tanto, temos um belo diálogo entre Augusto e sua mãe Martha Mendes (Ana Lucia Torre), ex-atriz encostada na “geladeira” da emissora Mundial (Globo), sobre a metáfora da necessidade da luz. Enquanto iluminados, eles brilham e fazem a alegria; uma vez apagados, só resta saudade e tristeza. Assim, os objetos de cena dialogam com os atores, como o quadro com a imagem da atriz em tempos áureos, banhado por uma iluminação indireta, que se apaga abruptamente após o desfecho da conversa. Genial!

Mergulhando o set de gravações do programa em cores vivas, alegres, ressaltada na fantasia de seu apresentador, a fotografia brinca com a dualidade sempre que contrapõe com outra paleta dark, fria e densa nos instantes em que o personagem não está na pele de seu alter ego. Ressaltando esta ideia, perceba também o contraste dos figurinos, e o caprichado trabalho da direção de arte, na cena em que Augusto vai jantar com Lúcia (a sempre formidável Leandra Leal), produtora do programa de TV: de um lado temos um sujeito despojado vestindo uma jaqueta preta, bebendo vinho e à sua frente uma sobremesa de chocolate; de outro, temos uma mulher recatada em vestimentas de cores claras - e o verde sempre impera em Lúcia simbolizando a esperança de Augusto - cabelos sempre presos, ingerindo água, condizente com a sua sobremesa de creme e frutas coloridas. Deste modo, a simbologia auxilia harmonicamente à narrativa proposta.

E o que dizer da trilha sonora escolhida? Supla, Titãs, Roupa Nova, Ritchie, entre outros, evocam o período narrado.

Não menos espetacular, a direção do estreante Daniel Rezende (exímio montador responsável pela edição de Cidade de Deus, por exemplo) não deixa o filme cair num dramalhão ou se deixar levar pela saudosa cafonice da época, muito menos se perder na nostalgia. O cineasta sabe da importância do tema, pesando a mão no drama em momentos pontuais, sem esquecer o tom da comédia ácida, certeira, em outros. Neste sentido, é magnífica a sequência em que Bingo entra em cena, ao vivo, após ter consumido bastante cocaína, ocasião em que o seu nariz começa a sangrar e pingar no chão do “picadeiro”. Perceba que a sua vida desordeira culmina no esvaziamento das relações afetivas e profissionais, guardando uma metáfora no derramamento do sangue.  Rezende tem consciência dos elementos narrativos que plantou e sabe a hora de utilizá-los ao seu favor. O nariz do palhaço guarda diversos significados, na medida em que representa um essencial artifício de ligação entre pai e filho, relação tão bem abordada durante os três atos do filme.

Concebendo planos longos e planos-sequência inspiradores, o idealizador carrega o espectador pelo braço viajando pelo túnel do tempo, demonstrando acertos também na escolha do elenco, que conta ainda com uma emocionante participação do ator Domingos Montagner, falecido precocemente em 2016.

Representando tão bem o lema do blog, “Bingo – O Rei das Manhãs” mescla entretenimento com conteúdo (“pipoca para entreter, rapadura para enriquecer”), já se tornando um dos meus filmes favoritos de 2017.

*Avaliação: 5 pipocas + 5 rapaduras = nota 10,0.