segunda-feira, 19 de fevereiro de 2018

NOS CINEMAS - Pantera Negra

Por Rafael Morais
19 de fevereiro de 2018.

A importância de um filme solo do “Pantera Negra” para o UCM (Universo Compartilhado da Marvel) reside mais nas questões políticas/sociais/culturais abordadas, do que propriamente para amarrar a linha cronológica com as outras produções. O que é uma ótima notícia! Portanto, posso afirmar que estamos diante da obra mais emblemática do Marvel Studios no quesito temática, porém, menos impactante visualmente. E tudo começou com a contratação do excelente diretor e roteirista Ryan Coogler (“Fruitvale Station” e “Creed – Nascido para Lutar”), demonstrando que o estúdio queria algo diferente da famigerada fórmula. E conseguiu.

Assim, para contar a trajetória de T’Challa (Chadwick Boseman) após os acontecimentos de “Capitão América: Guerra Civil”, a história nos leva à misteriosa e rica Wakanda, terra do herói do título, o El Dorado da alta tecnologia banhada por vibranium: o metal mais precioso e cobiçado do mundo fictício (ou seria o adamantium do Wolverine?). Por este motivo, tentando conciliar a morte do seu pai, o rei T’Chaka (John Kani), o nosso herói da vez enfrenta as ameaças do Garra Sônica/Ulysses Klaue (Andy Serkis, fantástico como sempre) que se alia a Erikl/Killmonger (Michael B. Jordan, parceiro habitual de Coogler), cada qual com as suas intenções malignas.

Destaco também as referências cinematográficas que captei com olho de cinéfilo, pois, lembrei-me de “O Rei Leão” no momento em que toca uma canção parecida com a abertura da animação, e afinal estamos na África onde um príncipe tem que assumir o lugar do pai/Rei que faleceu, enfim; e de “007”, no instante em que T’Challa testa armas e acessórios inusitados, antes de sair para uma arriscada missão, projetadas pela excêntrica engenheira Shuri (Letitia Wright), quase igual James Bond fazia com a icônica figura do engenhoso “Q”.

Mas para não dizer que tudo são flores, a película apresenta um ritmo arrastado no primeiro ato – sem esquecer que a duração total é de longas duas horas e quinze minutos - sobretudo nas conversas espirituais enfadonhas com o seu pai (com exceção do belo e significativo take da árvore repleta de panteras ancestrais), o protagonista parece perdido na narrativa e demora a tomar as iniciativas, o que acaba se refletindo numa montagem pouco inspiradora. Mas “para nossa alegria” (e não me refiro ao hit do Youtube), tal problema some nos demais atos do longa, sendo tomado por um ritmo crescente das viradas e reviravoltas no roteiro (twist e plot twist) e na resolução do conflito pelo herói, agora centrado no que deve ser feito.    

Tecnicamente, a composição do rapper Kendrick Lamar casa com a proposta narrativa, entregando uma música-tema empolgante, que por sua vez se harmoniza com a trilha sonora anacrônica de Ludwig Goransson, capaz de misturar batidas de sons tribais africanos antigos com um hip hop remix hightech. E ficou explosivo o resultado!

Pena que não posso dizer o mesmo do CGI (computação gráfica). Mal resolvido visualmente, os efeitos especiais não enchem os olhos do espectador, sendo ressaltado nas últimas cenas de combate, além dos momentos em que o Pantera tem que saltar ou se movimentar, parecendo mais um boneco emborrachado mal renderizado, soando nada verossímil. Neste quesito, a ambientação ao admirável mundo novo de Wakanda também é inventivamente limitada, uma vez que se resume a apenas uma cena de rua (aquela em que uma espécie de ônibus/coletivo passa entre os transeuntes), falhando ao imergir o público naquele remoto país.

No entanto, felizmente, há mais pontos positivos do que negativos. O vilão, por exemplo, é, de longe, o mais complexo do UCM. O Killmonger de B. Jordan é presentado com diálogos fortes e motivações convincentes. O fato é que um bom roteiro, atuações excelentes e a marca da alma/identidade num filme, são uma das fórmulas para o sucesso. E isso “Pantera Negra” tem de sobra!

Reservando ainda um embate de postura política, muito mais do que de músculos, o duelo do protagonista e antagonista remete àqueles pregados com intensidade por Martin Luther King e Malcom X, respectivamente, quando o primeiro acreditava numa convivência pacífica entre negros e brancos e o outro acreditava na segregação total destas raças. Por fim, esta obra cinematográfica representa, desde o seu título (leia sobre o Partido dos Panteras Negras, movimento social americano da década de 60) até o último frame, uma ode à diversidade, ao altruísmo, à multicultura e à representatividade. E isso só comprova a genialidade de Stan Lee e Jack Kirby que conceberam esse e tantos heróis numa época em que eram chamados de desocupados por gostar de “revistinhas”...

*Avaliação: 4,5 pipocas + 4,5 rapaduras = nota 9,0.

segunda-feira, 5 de fevereiro de 2018

NOS CINEMAS - A Forma da Água

Por Rafael Morais
05 de fevereiro de 2018

Desde “A Espinha do Diabo”, passando por “O Labirinto do Fauno”, até chegar nesse “A Forma da Água”, Guilhermo Del Toro não só vem abordando a mesma, e fascinante, temática de “monstros” (alegoria que representa, entre outros aspectos, identificação com uma minoria desprivilegiada), como também aprimorou a sua técnica enquanto diretor e roteirista.

O filme da vez, apesar de ter uma trama aparentemente simples, guarda no seu subtexto a riqueza de um questionamento vigoroso, aqui acolá contemplativo, acerca da aceitação e do preconceito. Assim, em meio aos grandes conflitos políticos e transformações sociais dos Estados Unidos, em plena Guerra Fria, a muda Elisa (Sally Hawkins), zeladora em um laboratório experimental secreto do governo, se afeiçoa a uma criatura fantástica (Doug Jones, parceiro habitual de Del Toro, que também fez um ser subaquático de aparência semelhante em Hellboy 2) mantida presa e maltratada no local. Para executar um arriscado e apaixonado resgate ela recorre ao melhor amigo Giles (Richard Jenkins – coadjuvante de peso que conta com o seu próprio arco delineado) e à colega de turno Zelda (Octavia Spencer – o alívio cômico).  

Neste contexto, Sally Hawkins abraça sua Elisa com muito carisma e paixão, entregando uma atuação digna de premiações, uma vez que carrega nas expressões faciais e corporais o trunfo para transmitir os sentimentos de uma personagem que não consegue se comunicar pela fala. E se o filme dialoga sobre a importância da empatia entre os seres vivos, seja ele humano ou não, a protagonista, em um determinado trecho, arremata o argumento central quando compara a sua limitação com a do monstro, no aspecto de ambos não falarem (além de outras similaridades sociais), muito embora se entenderem, coexistindo em total harmonia. Não à toa, a improvável heroína é rodeada por personas que, de uma maneira ou de outra, sofrem com os prejulgamentos: um gay, uma negra e a sua própria função de auxiliar de limpeza só reforçam o contexto em que ela está inserida, reforçando a mensagem que a película quer comunicar.

Fabuloso, literalmente, o longa é permeado por metáforas e simbolismos comuns ao gênero, devendo ser sentido, mais do que entendido. E quando me referi ao gênero “filmes de monstros”, aqui Del Toro subverte o clichê colocando como uma anomalia não o ser anfíbio, mas sim o vilão vivido por Michael Shannon: uma verdadeira encarnação do mal! Enquanto o obcecado Richard (chefe de segurança do laboratório), de Shannon, faz de tudo para dissecar a criatura, sem medir esforços - passando por todas as fases de transformação física e psicológica possíveis de sua vilania unidimensional - a trupe de Elisa vai tentar salvá-la, o que acaba trazendo igualmente uma montagem dinâmica capaz de prender a atenção do público.

Deste modo, repare na construção do antagonista e o fato dele aparecer, quase sempre, banhado por sombras e com a expressão fechada. Inclusive a paleta dark de cores do universo vilanesco destoa, acertadamente, dos demais núcleos do filme, todos imersos no verde. Neste sentido, interessante observar as diversas menções trazidas em trechos sobre a cor verde em questão, sendo abordada como “a cor do futuro”, fazendo clara alusão não só aos planos de Elisa (mergulhada nesse tom tanto no uniforme, quando na sua residência, bem como quase tudo que a cerca), assim como atinge, sutilmente, um texto implícito sobre a preservação do meio ambiente, uma vez que a forma (como eles chamam o “homem-anfíbio”) foi capturada na Amazônia. Tal ideia de contraponto à ambientação esperançosa, traz uma ótima cena em que Richard renega a possibilidade da cor do seu carro ser verde, teimando em dizer que é azul petróleo, demonstrando o seu caráter distorcido.

Não menos fantástico, o figurino utilizado merece elogio, pois foi capaz de realizar lindas rimas visuais com a paleta escolhida. Perceba, por exemplo, os detalhes que surgem em vermelho intenso num laço na cabeça da protagonista, nos seus sapatos e até no batom - após o seu envolvimento com a criatura se intensificar - todos evidenciando a sua paixão e deixando transparecer o sentimento adormecido. Neste quesito, destaque também para a cuidadosa direção de arte. A propósito, o vermelho aqui não aparece apenas para externalizar o romance, mas o sangue quando tem que jorrar, nas mãos de Del Toro, jorra em profusão. O gore está lá, na medida, e faz parte das características do cineasta mexicano. 

Enfim, com um desfecho romântico e poético, lembrando “Splah – Uma Sereia em Minha Vida”, guardadas as proporções, “A Forma da Água” merece todas as indicações que recebeu, bem como os elogios que vem amealhando. Del Toro chegou lá e, como fã dos seus trabalhos, me orgulho disso!

*Avaliação: 4,5 pipocas + 5,0 rapaduras = nota 9,5.