Por Rafael Morais
05 de fevereiro de 2018
Desde “A Espinha do Diabo”, passando
por “O Labirinto do Fauno”, até chegar nesse “A Forma da Água”, Guilhermo Del
Toro não só vem abordando a mesma, e fascinante, temática de “monstros” (alegoria
que representa, entre outros aspectos, identificação com uma minoria
desprivilegiada), como também aprimorou a sua técnica enquanto diretor e
roteirista.
O filme da vez, apesar de ter uma
trama aparentemente simples, guarda no seu subtexto a riqueza de um questionamento
vigoroso, aqui acolá contemplativo, acerca da aceitação e do preconceito.
Assim, em meio aos grandes conflitos políticos e
transformações sociais dos Estados Unidos, em plena Guerra Fria, a muda Elisa
(Sally Hawkins), zeladora em um laboratório experimental secreto do governo, se
afeiçoa a uma criatura fantástica (Doug Jones, parceiro habitual de Del Toro,
que também fez um ser subaquático de aparência semelhante em Hellboy 2) mantida
presa e maltratada no local. Para executar um arriscado e apaixonado resgate
ela recorre ao melhor amigo Giles (Richard Jenkins – coadjuvante de peso que
conta com o seu próprio arco delineado) e à colega de turno Zelda (Octavia
Spencer – o alívio cômico).
Neste contexto, Sally Hawkins abraça
sua Elisa com muito carisma e paixão, entregando uma atuação digna de
premiações, uma vez que carrega nas expressões faciais e corporais o trunfo
para transmitir os sentimentos de uma personagem que não consegue se comunicar
pela fala. E se o filme dialoga sobre a importância da empatia entre os seres
vivos, seja ele humano ou não, a protagonista, em um determinado trecho,
arremata o argumento central quando compara a sua limitação com a do monstro,
no aspecto de ambos não falarem (além de outras similaridades sociais), muito
embora se entenderem, coexistindo em total harmonia. Não à toa, a improvável heroína
é rodeada por personas que, de uma maneira ou de outra, sofrem com os
prejulgamentos: um gay, uma negra e a sua própria função de auxiliar de limpeza
só reforçam o contexto em que ela está inserida, reforçando a mensagem que a
película quer comunicar.
Fabuloso, literalmente, o longa é
permeado por metáforas e simbolismos comuns ao gênero, devendo ser sentido,
mais do que entendido. E quando me referi ao gênero “filmes de monstros”, aqui
Del Toro subverte o clichê colocando como uma anomalia não o ser anfíbio, mas
sim o vilão vivido por Michael Shannon: uma verdadeira encarnação do mal!
Enquanto o obcecado Richard (chefe de segurança do laboratório), de Shannon,
faz de tudo para dissecar a criatura, sem medir esforços - passando por todas
as fases de transformação física e psicológica possíveis de sua vilania
unidimensional - a trupe de Elisa vai tentar salvá-la, o que acaba trazendo igualmente
uma montagem dinâmica capaz de prender a atenção do público.
Deste modo, repare na construção do
antagonista e o fato dele aparecer, quase sempre, banhado por sombras e com a
expressão fechada. Inclusive a paleta dark de cores do universo vilanesco
destoa, acertadamente, dos demais núcleos do filme, todos imersos no verde.
Neste sentido, interessante observar as diversas menções trazidas em trechos
sobre a cor verde em questão, sendo abordada como “a cor do futuro”, fazendo
clara alusão não só aos planos de Elisa (mergulhada nesse tom tanto no
uniforme, quando na sua residência, bem como quase tudo que a cerca), assim
como atinge, sutilmente, um texto implícito sobre a preservação do meio
ambiente, uma vez que a forma (como eles chamam o “homem-anfíbio”) foi
capturada na Amazônia. Tal ideia de contraponto à ambientação esperançosa, traz
uma ótima cena em que Richard renega a possibilidade da cor do seu carro ser
verde, teimando em dizer que é azul petróleo, demonstrando o seu caráter
distorcido.
Não menos fantástico, o figurino
utilizado merece elogio, pois foi capaz de realizar lindas rimas visuais com a
paleta escolhida. Perceba, por exemplo, os detalhes que surgem em vermelho
intenso num laço na cabeça da protagonista, nos seus sapatos e até no batom -
após o seu envolvimento com a criatura se intensificar - todos evidenciando a
sua paixão e deixando transparecer o sentimento adormecido. Neste quesito, destaque
também para a cuidadosa direção de arte. A propósito, o vermelho aqui não
aparece apenas para externalizar o romance, mas o sangue quando tem que jorrar,
nas mãos de Del Toro, jorra em profusão. O gore está lá, na medida, e faz parte
das características do cineasta mexicano.
Enfim, com um desfecho romântico e
poético, lembrando “Splah – Uma Sereia em Minha Vida”, guardadas as proporções,
“A Forma da Água” merece todas as indicações que recebeu, bem como os elogios
que vem amealhando. Del Toro chegou lá e, como fã dos seus trabalhos, me
orgulho disso!
*Avaliação: 4,5 pipocas + 5,0
rapaduras = nota 9,5.