domingo, 24 de setembro de 2017

EM CARTAZ: Mãe!

Por Rafael Morais
24 de setembro de 2017

Um escritor (Javier Bardem) se refugia com a sua mulher (Jennifer Lawrence) no intuito de recomeçar a vida após um incêndio que teria acabado com a sua residência. Paralelo a isso, o sujeito também busca inspiração para escrever o seu novo trabalho, sofrendo um bloqueio criativo depois dessa tragédia. Com o passar do tempo, visitantes “inesperados”, mas, necessários (Ed Harris e Michelle Pfeiffer) surgem para visitar o casal, acabando com a rotina de paz e marasmo.

Baseado nesta premissa, que parece simples, o cineasta e roteirista Darren Aronofsky aborda as intempéries do processo criativo de um artista através de metáforas do início ao fim. De antemão, aviso que mais à frente entrarei com spoiler’s (avisarei), visto que é uma tarefa árdua falar sobre esse filme sem adentrar nos seus meandros. E essa dificuldade ocorre justamente pelo fato de cada personagem ou objeto de cena significar algo ou alguma coisa, sem jamais oferecer interpretações diversas, ou terceiras leituras, sob pena de se perder a principal mensagem que o filme quer passar.

Neste sentido, o marketing peca em vender um produto de drama envolto num universo fantástico sombrio, com toques de suspense, é bem verdade. Campanha de divulgação desonesta, pautada num terror/horror, comparando até com “O Bebê de Rosemary”, esta referência não se coaduna com a obra, com exceção do figurino preto dos visitantes, bem como os olhares bizarros, ansiosos e contemplativos, tudo ao mesmo tempo, em volta da figura da esposa e o que ela pode gerar. De resto, este novo filme de Aronofsky flerta mais com David Lynch em Império e/ou Cidade dos Sonhos, por exemplo, do que propriamente com Polanski.

Deste modo, escolhendo seguir a personagem de Lawrence (sim, quase todas as personas não são batizadas por nomes, mas, sim pelo que estão representando) desde o seu despertar até o desfecho, a câmera de Aronofsky é fixada no ombro da mulher e a persegue por todos os caminhos. Assim, o uso de steadcam auxilia na captação dos passos da coprotagonista, além da utilização de movimentos de travelling para dar a falsa sensação de que tudo gira em torno daquela mulher. O que não deixa de ser verdade, em partes. É ela, a musa inspiradora do artista, que move o longa pra frente, sendo constantemente abordada fisicamente na figura de uma mulher idealizada em poucas roupas, corpo esbelto, curvas acentuadas, pele macia e busto farto, tal qual uma imagem sacra, no estilo barroco. Sempre disposta a ajudar o seu marido, quase incapaz de lhe dar um não como resposta, temos uma figura resiliente e necessariamente catártica.

----------------------------------------- SPOILER ALERT!  ------------------------------------------------

“Eu Sou o que Sou” (Êxodo 3:13-14), diz Deus a Moisés. E o escritor, lá pelas tantas, quando perguntado quem ele era, solta a mesma frase. Na verdade, Aronofsky empresta a “Mãe!” um tom alegórico, permeado por signos, guardando interpretações e referências bíblicas para estruturar uma comparação com as diversas formas de criação. Se por um lado, temos um artista passando por uma crise de falta de criatividade, de outro, depois de superado um carrossel de emoções - uma ode à loucura introspectiva na cabeça de um autor - vimos o ápice da sua criação, sua masterpiece: revelando-se uma obra perfeita e acabada que mudará a vida daqueles que a consumirem, literalmente. Assim, o bebê “devorado” pelo público se desponta como um símbolo da obra finalizada e ligeiramente consumida, como um sacrifício de um homem que entrega o seu filho para a humanidade. E isso não lembra a história de Jesus, enquanto cordeiro imolado?! Portanto, não à toa, o plano faz menção ao corpo e sangue entregue aos sedentos.

Desta forma, há uma personificação literal do encontro/relação entre o artista que encontra sua musa inspiradora e concebe um filho com ela, a obra deixada para posteridade. Um livro, filme, música ou quadro (obra de arte qualquer) depois de publicada não passa mais a ser de quem a criou, mas do povo. Quem nunca ouviu aquela expressão: “isso foi um parto”, após um trabalho árduo?! Tudo isso em "Mãe!" é elevado à enésima potência.

Crítica, público, indústria (a editora chamada Herald vivida por Kristen Wiig – sim, esta tem um nome) e artista vivem constantemente esse embate pela publicação e aceitação das novas obras, do lançamento. O consumismo é invasivo e isso é bem representado em tela, como na sequência em que os fãs caminham pela pastagem verde, todos de preto, alienados, se dirigindo até a casa do seu ídolo para cobrar o produto (um poema, neste caso) e venerar o resultado final, traçando uma analogia imediata, na cabeça de um cinéfilo, com “A Noite dos Mortos-Vivos”, do saudoso George Romero.

O sacro e o humano se fundem em tela, evidenciando que aqueles personagens são frutos da criação do “poeta”. Perceba pela justaposição de imagens e o jogo de posicionamento de câmera, que o “fã” vivido por Ed Harris senta ao lado de seu “ídolo”, e num enquadramento magistral, o cineasta capta o corpo de Harris saindo do perfil de Bardem, como se o concebesse. Genial! 

Não menos espetacular, a simbologia do diamante bruto dando vida à casa (local das ideias do artista, seu cérebro inquietante) torna a imagem reveladora de tudo o que estar por vir. Ainda na busca por significados, temos a representação da primeira família que viveu no paraíso (termo utilizado pela esposa se referindo ao lar) nas personas de Harris e Pfeiffer como Adão e Eva, e os seus filhos Brian Gleeson, o caçula, sendo assassinado pelo irmão mais velhoDomhnall Gleeson, após travarem uma luta, uma espécie de Cain e Abel.

Com um pé na “Divina Comédia” de Dante Alighieri, quando retrata o Inferno em fases, o ciclo da criação é completado com a jornada daquela musa se desfazendo aos poucos, queimando lentamente, para dar lugar a um novel período de descobertas e inventividades, onde outra criatura inspiradora, com corpo e rosto diverso, mas não menos idealizado, chegará para impulsionar a vida de seu criador.

*Avaliação: 4,5 pipocas + 5,0 rapaduras = nota 9,5.


segunda-feira, 18 de setembro de 2017

NOS CINEMAS - Atômica

Por Rafael Morais
18 de setembro de 2017

Charlize Theron está cada vez mais furiosa, diz o cartaz. E isso não é só uma referência direta à sua personagem em “Mad Max: Estrada da Fúria”, uma vez que a atriz vem escolhendo papeis cada vez mais badass. E aqui em “Atômica” não é diferente. A parceria com o diretor David Leitch (corresponsável pelo excelente John Wick) rendeu uma ótima obra de ação, podendo decepcionar quem estiver esperando um filme de espionagem puro. A trama é bem simples: perto da queda do muro de Berlim, EUA, Inglaterra, França e União Soviética disputam informações privilegiadas quando um agente da MI6 é assassinado e tem uma importante lista roubada.

Assim, Lorraine Broughton, a agente especial vivida por Theron tem uma missão principal e uma side quest bem delineada:  resgatar a lista e identificar o agente duplo de nome Satchel é o seu mister. Neste sentido, a película tem um primeiro ato sofrível quanto ao ritmo da narrativa, vindo a melhorar drasticamente nos seus demais atos. Banhado por uma fotografia dessaturada, guardando na utilização de néons com cores quentes e vivas, fazendo assim uma quebra do tom cinza, gélido e azulado que impera, sobretudo, na Alemanha Ocidental, Atômica acerta em cheio na ambientação diferenciando com precisão ambos os lados do muro. Especialista em coreografia de lutas, Leitch consegue aprimorar a fórmula de "De Volta ao Jogo", como no impressionante plano-sequência que se inicia durante uma pancadaria na escadaria, finalizando com uma alucinante perseguição de carro. Sem cortes aparentes, este plano longo lembra aquele que vimos no magistral “Filhos da Esperança” de Alfonso Cuarón, por exemplo, tamanha a complexidade da continuidade da ação, ininterrupta, de quase uns 20 minutos.

Outro show à parte é a excepcional trilha sonora que casa com a época. Os anos 80/90 são representados por bandas que vão de New Order a Queen (Under Pressure oferece uma catarse sonora) e as músicas equalizam as cenas ao passo que marcam o ritmo das ações. Sem oferecer glamour à figura do espião, a maquiagem soa orgânica ao auxiliar na desconstrução da "heroína", expondo os hematomas, as feridas e as marcas deixadas a cada embate. Demonstrando ter uma boa base cinematográfica, Leitch referencia o diretor russo Andrei Tarkovski, diretamente, através dos cartazes do filme “Stalker” espalhados pelo cinema quando Lorraine enfrenta os seus inimigos. Se em Stalker a queda de um meteorito cria um local onde os sonhos se realizam, porém, ambientes este restrito apenas a alguns (chamado de Zona e quarto), aqui em “Atômica” a metáfora é emprestada com a queda do muro e as consequências político-sociais.

Visualmente impecável e explorando a violência gráfica, o longa reserva cenas de ação clássica como aquela em que Lorraine enfrenta um russo em contraluz, por detrás da tela de um cinema. Não menos interessante, o elenco entrega interpretações convincentes, sobretudo o David Percival do performático James McAvoy. Sujeito estranho, camaleônico e complexo, o agente conhece os lados opostos de Berlim, como a palma da sua mão, tornando-se um típico produto do meio. No mais, apesar de um roteiro raso, desprovido de mistério, “Atômica” funciona enquanto filme de ação e ratifica ainda mais o posto de Charlize como uma atriz versátil e ícone “Girl Power” da nova geração.

*Avaliação: 4,0 pipocas + 3,5 rapaduras = nota 7,5

sábado, 9 de setembro de 2017

NOS CINEMAS - It: A Coisa

Por Rafael Morais
09 de setembro de 2017

Um grupo de jovens é atormentado por uma entidade maligna, representada por diversas formas, guardando na figura do palhaço dançarino Pennywise a sua principal representação. Ancorado nesta premissa, este remake de "Uma obra-prima do medo", de 1990, se revela necessário tanto pelas questões técnicas (efeitos visuais aperfeiçoados, maquiagem caprichada e direção de arte impecável) quanto pelo valioso subtexto abordado, tão em voga atualmente: o bullying sofrido pelos heróis e a representatividade das minorias, através das diferentes raças, credos e culturas do clube dos "perdedores".

Na verdade, o roteiro escrito por Gary DaubermanChase Palmer e Cary Fukunaga conseguiu captar o espírito do livro de Stephen King ao  estabelecer uma química entre os membros do grupo ao passo que expõe, gradualmente, as limitações e problemáticas de cada um. Repleto de alegorias sobre a difícil fase “mutante” que é a adolescência, o filme, de maneira proposital, desfoca a visão do adulto como um ser implacável com as suas crianças, além de alienados ao que está acontecendo à sua volta. E aqui, o cinema sob o ponto de vista freudiano pesa a mão nas relações pais e filhos. O universo em "It - A Coisa" é focado exclusivamente sob a perspectiva do universo infanto-juvenil, em que pese a atmosfera de terror que toma a película.

Assim, o diretor Andy Muschietti captura cenas icônicas de uma juventude em constante transformação por meio de tomadas que evocam a amizade, os desafios e a maturidade precoce. Lembrando "Conta Comigo", também de King, neste aspecto - quando caminham pela floresta, andam de bicicleta pelas ruas e tramam planos mirabolantes - o cineasta tem ótimas e certeiras referências. E "A Hora do Pesadelo" de Wes Craven também é uma delas. Perceba o tom onírico das sequências de assombração que remetem àquelas situações em que Freddy Krueger escolhia sua presa, sempre solitária e indefesa. Contudo, se lá soava orgânico o fato da vítima estar dormindo, e, portanto, havia uma lógica para o pesadelo ser um evento individual e descolado da realidade; aqui em "It" cada sequência de terror parece um videoclipe à parte, o que não ajuda na construção do todo, na misancene, podendo transparecer um viés episódico ao longa, coisa que o cinema evita a todo custo.

Isso também acontece graças ao terror estilosamente gráfico. Esqueça o medo psicológico ou intimista, aqui o gore rola solto e o monstro apresenta suas garras, literalmente. O suspense não andou lado a lado com o terror, aniquilando a preparação para o “sentir medo”. E por falar em medo, como a entidade nefasta se alimenta dele, é curioso notarmos a inventividade da direção de arte em criar lugares e figuras macabras para cada tipo de situação. Esgotos, escolas, quartos e porões fazem parte do imaginário popular, dos contos sombrios, fato não esquecido pelo script, muito menos pelo olhar apurado do diretor. Neste sentido, adaptando-se individualmente a cada tipo de fobia, variando de acordo com o personagem, chove criatividade em tela, como por exemplo: o leproso que assombra uma criança hipocondríaca; os traumas de uma tragédia do passado que voltam à tona no presente; o ciclo menstrual de uma garota entrando na puberdade (e a cena do banheiro é uma das minhas favoritas) que enfrenta o preconceito da sociedade dentro e fora de casa, apenas por ser mulher; e claro, o medo de palhaço. E assim chegamos a Pennywise.

Interpretado com maestria por Bill Skargard, o palhaço é freaky na medida, além de carregar nas expressões corporais e faciais um trunfo para a composição perfeita de um ser macabro. Entregando doçura para atrair uma criança e insanidade para fazê-la sentir medo, no mesmo quadro, como uma entidade sempre prestes a explodir, Pennywise parece estar onipresente tanto fisicamente, quanto em cada ato eivado de maldade. Note o balãozinho vermelho (a cor do perigo) que passeia perto de um personagem que acabara de praticar o mal ou omitir uma ajuda, como na sequência em que uma criança obesa é gravemente agredida por seus perseguidores, fato presenciado por um casal de senhores que passa de carro no momento e nada faz para ajudar a indefesa vítima. Desta forma, o símbolo surge no banco de trás do carro indicando que a figura de um clow é apenas uma das formas de malignidade.

O elenco mirim, por sua vez, é carismático e talentoso ao ponto de Amblin nenhuma botar defeito. E quando me refiro à empresa responsável por um dos melhores filmes de aventura dos anos 80 não é à toa. O filme nos mergulha nesta época, flertando com o jeitão datado de um cine trash ou sessão da tarde (“Os Goonies” estão ali), ocasião em que a nostalgia nos pega de jeito. Spielberg que o diga...

Divertido mais do que aterrorizante, o longa deixa um gostinho de quero mais, muito embora tenha duas horas e quinze minutos de duração. De tal modo, até a fotografia solar explicita o tom aventuresco em detrimento do terror, uma vez que a maioria das cenas se passa à luz do sol, durante o verão, sem se preocupar com a mudança para uma possível paleta mais dark ou ambientes escuros.

Enfim, preparando terreno para a vindoura parte II (e espero que não se passe mais 27 anos, apesar desta data ser uma referência direta aos acontecimentos do filme), o desfecho amarra as pontas soltas, se é que tinha alguma, e cria expectativa para o que pode vir no futuro, uma vez que o medo não é privilégio apenas de crianças, muito pelo contrário. E você, tem medo de quê?

*Avaliação: 5,0 pipocas + 4,0 rapaduras = nota 9,0

domingo, 3 de setembro de 2017

NOS CINEMAS - Bingo: O Rei das Manhãs

Por Rafael Morais
03 de setembro de 2017

Quem viveu os anos 80 entende a definição de politicamente incorreto. Programas “infantis” matinais, extremamente divertidos e nonsense, tomavam as nossas manhãs de assalto, ao passo que concebia uma geração desprovida de “mi mi mi”. E em vários momentos deste “Bingo – O Rei das Manhãs”, o personagem Augusto (Vladimir Brichta), na pele do palhaço homônimo do título do filme, solta diversas frases que corroboram a identidade da minha geração: “essas crianças não são fáceis de enganar”; “o Brasil não é para iniciantes”, entre outras do gênero.

Na verdade, estamos diante da cinebiografia do famoso palhaço Bozo que teve como um de seus primeiros intérpretes o excêntrico Arlindo Barreto. Assim, por questões de ordem jurídica (direitos autorais), nomes de artistas, marcas de empresas e locais foram alterados, mas nem por isso deixamos de identificá-los em tela. A Rede Globo, o próprio protagonista, a cantora Gretchen, passando por Xuxa, bem como o SBT, tudo foi convertido em ficção. Talvez por conter DNA de filme alternativo, fora do mainstream, a “Globo Filmes” não despertou interesse em produzir o longa, em que pese abordar o backstage da cultura pop televisiva.

Neste contexto, somos apresentados à história de um jovem ator de pornochanchada que resolve enveredar pelo caminho das telenovelas, tentando se provar constantemente enquanto artista e pai, vindo a parar num set de testes para viver o palhaço Bingo (é o Bozo, você já sabe), sucesso e líder de audiência nos EUA há mais de 10 anos. Com esta sinopse relativamente simples, o roteiro consegue explorar todas as possíveis camadas de um artista em ascensão, passando pelo declínio e alcançando a redenção, quesitos obrigatórios em uma cinebiografia. Inteligente, o script explora o talento de Vladimir Brichta (o cara arrebenta!) para entregar diversas nuances de sua dupla persona. E se o protagonista é desenvolvido em tons de cinza (sem maniqueísmo), tal abordagem auxilia na identificação do espectador com os dilemas do herói (ou seria anti-herói?), uma vez que o traço de humanidade surge em momentos de falhas.

“A vida não é fácil”, esbraveja Augusto constantemente. Tentativa e erro são o mantra do protagonista durante a película. Tudo ressaltado pela frustração do artista ao não ser reconhecido nas ruas por sempre estar fantasiado em cena. Reconhecimento do público e da crítica é o que um artista almeja durante a sua carreira, para tanto, temos um belo diálogo entre Augusto e sua mãe Martha Mendes (Ana Lucia Torre), ex-atriz encostada na “geladeira” da emissora Mundial (Globo), sobre a metáfora da necessidade da luz. Enquanto iluminados, eles brilham e fazem a alegria; uma vez apagados, só resta saudade e tristeza. Assim, os objetos de cena dialogam com os atores, como o quadro com a imagem da atriz em tempos áureos, banhado por uma iluminação indireta, que se apaga abruptamente após o desfecho da conversa. Genial!

Mergulhando o set de gravações do programa em cores vivas, alegres, ressaltada na fantasia de seu apresentador, a fotografia brinca com a dualidade sempre que contrapõe com outra paleta dark, fria e densa nos instantes em que o personagem não está na pele de seu alter ego. Ressaltando esta ideia, perceba também o contraste dos figurinos, e o caprichado trabalho da direção de arte, na cena em que Augusto vai jantar com Lúcia (a sempre formidável Leandra Leal), produtora do programa de TV: de um lado temos um sujeito despojado vestindo uma jaqueta preta, bebendo vinho e à sua frente uma sobremesa de chocolate; de outro, temos uma mulher recatada em vestimentas de cores claras - e o verde sempre impera em Lúcia simbolizando a esperança de Augusto - cabelos sempre presos, ingerindo água, condizente com a sua sobremesa de creme e frutas coloridas. Deste modo, a simbologia auxilia harmonicamente à narrativa proposta.

E o que dizer da trilha sonora escolhida? Supla, Titãs, Roupa Nova, Ritchie, entre outros, evocam o período narrado.

Não menos espetacular, a direção do estreante Daniel Rezende (exímio montador responsável pela edição de Cidade de Deus, por exemplo) não deixa o filme cair num dramalhão ou se deixar levar pela saudosa cafonice da época, muito menos se perder na nostalgia. O cineasta sabe da importância do tema, pesando a mão no drama em momentos pontuais, sem esquecer o tom da comédia ácida, certeira, em outros. Neste sentido, é magnífica a sequência em que Bingo entra em cena, ao vivo, após ter consumido bastante cocaína, ocasião em que o seu nariz começa a sangrar e pingar no chão do “picadeiro”. Perceba que a sua vida desordeira culmina no esvaziamento das relações afetivas e profissionais, guardando uma metáfora no derramamento do sangue.  Rezende tem consciência dos elementos narrativos que plantou e sabe a hora de utilizá-los ao seu favor. O nariz do palhaço guarda diversos significados, na medida em que representa um essencial artifício de ligação entre pai e filho, relação tão bem abordada durante os três atos do filme.

Concebendo planos longos e planos-sequência inspiradores, o idealizador carrega o espectador pelo braço viajando pelo túnel do tempo, demonstrando acertos também na escolha do elenco, que conta ainda com uma emocionante participação do ator Domingos Montagner, falecido precocemente em 2016.

Representando tão bem o lema do blog, “Bingo – O Rei das Manhãs” mescla entretenimento com conteúdo (“pipoca para entreter, rapadura para enriquecer”), já se tornando um dos meus filmes favoritos de 2017.

*Avaliação: 5 pipocas + 5 rapaduras = nota 10,0.