quinta-feira, 26 de maio de 2022

15 anos de DESEJO E REPARAÇÃO

Por Rafael Morais

Quem nunca foi tomado por um sentimento de culpa, por algo que fez ou deixou de fazer? Todo ser humano já passou por isso em algum momento, mas para Brioni Tallis, as consequências dos seus atos e seus desdobramentos influenciaram, catastroficamente, a vida e o destino das pessoas que ela amava: sua irmã Cecilia Tallis e Robbie Turner, filho de uma das empregadas da família. Trocando em miúdos, essa é a premissa central de Desejo e Reparação (Atonement, 2007), adaptação do romance do famoso escritor inglês Ian McEwan.

Joe Wright, diretor do filme, monta uma adaptação que beira a perfeição, seja pelos cortes e takes elegantes, seja por extrair do elenco o que eles podem oferecer de melhor. Os prêmios que o filme arrebatou pelos festivais não me deixam mentir (Globo de Ouro, Bafta, Oscar....). Méritos de um cineasta que tem em mãos uma obra literária tão complexa quanto delicada e consegue extrair o seu supra sumo sem perder a originalidade. 

Como esquecer a impregnante trilha sonora original, que vez ou outra se confundia com o soar da máquina de escrever da geniosa Brioni?! O teclar dava o ritmo da história. Orgânico e preciso. Cinema! 

A fotografia dualista, brilhantemente escolhida, diz, por si só, onde estamos e para onde vamos, basta ver e sentir. A luminosidade nas épocas áureas; os prados, montanhas, arvoredos, o verão enche os nossos olhos. Por outro lado, quando somos arremessados à guerra, temos uma foto turva, sem aquele brilho, o destino já havia alterado e ninguém poderia reverter. 

Não menos espetacular são os figurinos, os cenários e as locações escolhidas. As vestimentas impecáveis situam o espectador em um ambiente de época, ao tempo em que nos deixam a par das intenções dos personagens, como na cena da biblioteca em que Cecila Tallis (Keira Knightley) usa um luxuoso vestido verde, simbolizando a cor da esperança mais do que nunca

A montagem, por sua vez, é perspicaz ao ponto de não deixar a nossa atenção se esvair, nem por um minuto. As principais cenas são mostradas sob duas perspectivas: a de Brioni (imaginativa e cheia de dúvidas); e a visão real, dos fatos. E por falar em Brioni, a história centra-se, basicamente, na trajetória da menina-moça até a terceira idade. A interpretação passa pela trinca das talentosas atrizes Saorsi RonanRomola Garai Vanessa Redgrave. Cada uma delas empresta à personagem uma emoção correspondente aos momentos decisivos e tocantes, os quais não são poucos.

E quando somos apresentados, abruptamente, a versão de Brioni de 1935, vimos uma menina um tanto arrogante e mimada. Até na maneira de andar temos uma criança em transição para adolescência, diferente das demais, rápida e objetiva, sem perder tempo. Nas tardes livres e intermináveis de uma Inglaterra em tempos de pré-guerra, a cabeça de uma garota ociosa era uma fábrica de sonhos, histórias e imaginações, porque não dizer: “uma oficina do diabo”. A menina passava o tempo livre escrevendo livros e peças, e isso ela fazia bem. Era um talento nato. A paixão secreta e platônica por Robbie (James Macvoy) é infrutífera e só cresce na pequena escritora, até porque o rapaz é mais velho e só tem olhos para Cecilia, irmã de Brioni, por quem está perdidamente apaixonado.

Sem revelar mais detalhes da fantástica história, apenas posso dizer que a emoção, durante a sessão, me tomou de assalto em vários momentos, quando fui percebendo a imersão dada a cada personagem, a densa dramaticidade que crescia exponencialmente, que o sentimento de remorso daquela garota se tornara uma ferida maior do que qualquer bomba poderia causar.

Confesso que a lágrima escorreu no canto do olho em uma das cenas mais primorosas do longa: Robbie acompanha os dois amigos na praia de Dunkirk constatando o caos e a devastação que a guerra deixara. Um plano-sequência persegue os amigos que caminham pela praia, atordoados, contemplativos, sobreviventes.

*Avaliação: 5,0 Pipocas + 5,0 Rapaduras = 10.

segunda-feira, 23 de maio de 2022

Nos Cinemas -TOP GUN: MAVERICK


Por Rafael Morais

Após 36 anos, a continuação de um dos clássicos das sessões da tarde, enfim, ganhou vida depois de vários adiamentos e incertezas. Mas não poderia chegar em uma hora melhor: a tal volta do Cinema, após o período mais grave da pandemia, se tornou algo emblemático e esperado por muitos.

A sétima arte estaria destinada a ser consumida em qualquer tela, a qualquer hora e mesmo que dividida em trechos (entre uma pausa para olhar o celular e outra)?! Conheço alguns que para concluir um longa de 90 minutos, por exemplo, o “parcelam” em 3x de 30 minutos, “sem entrada e sem juros”, assistindo pelo celular enquanto aguarda uma consulta. Mas tá tudo certo também. O problema é perder a magia, o costume, a tradição e o encanto.

Será que esse “Top Gun: Maverick” é o filme capaz de arrebatar o público e tirá-lo da zona de conforto formada pelo combo: "sofá de casa + streaming"?! Será que, finalmente, as pessoas vão comprar o ingresso, deixar os seus lares e se deslocarem para uma sala que fará a projeção em um horário já especificado?!  Penso que sim, chegou a hora. O próprio Tom Cruise acredita no poder das telonas, na experiência coletivamente catártica e mágica, inigualável, proporcionada ao apagar das luzes de uma sala de cinema. Afinal, lugar de blockbuster é na maior tela e com o melhor som possível.

E todo esse introito tem a ver com o simbolismo por trás do argumento de "Top Gun: Maverick". Os homens resistirão às máquinas, mesmo que a automação seja inevitável. Um dia, os drones tomarão o seu lugar afastando os pilotos de carne e osso. Mas o que o astro de Hollywood propõe é: "pode até ser, mas hoje não!". Resistir a algo que nos ameaça tornar obsoletos faz parte da sobrevivência.

E quando Maverick (Cruise) é convocado para retornar à academia dos melhores pilotos do mundo para treinar uma nova turma visando uma missão suicida, praticamente impossível (e isso me lembrou outra franquia do mesmo cara), temos o script ideal sobre a superação humana diante da tecnologia. Os limites estarão à prova e o protagonista não está disposto a abrir um centímetro ao admirável mundo novo, uma vez que a Marinha caminha para apostar o futuro nos aviões não tripulados.

Fica fácil perceber essa proposta de pensar a sétima arte de forma menos automatizada possível. Quanto menos chroma key - e que seja minimamente perceptível - mais autêntico. O coração de uma obra está atrelado ao quanto os artistas envolvidos deixam sua marca, expressão e entrega no set. O piloto automático, com o perdão do trocadilho, não é suficiente aqui.

Melhorando em tudo o que o filme de 86 fez, temos uma sequência com jeitão de remake, mas que desta vez acerta na construção dos arcos dos personagens principais, sobretudo quando se trata do protagonista e do coadjuvante Rooster (Miles Teller muito bem, por sinal!).

A construção do clímax é muito delineada para que no momento certo a emoção tome conta. Os conflitos interpessoais ultrapassam a fuselagem de um caça F-18 chegando ao drama interior bem construído. Temas como remorso, autoestima, coragem e lealdade acrescentam à carga dramática sem jamais cair na pieguice.

Quanto à ação, os combates aéreos são de tirar o fôlego. A colocação de câmeras grudadas tanto no cockpit, quanto no lado externo das aeronaves faz o público embarcar nas alucinantes perseguições em alta velocidade. E os últimos 45 minutos, então, são espetaculares! Garanto que você não vai ficar quieto na cadeira.

Na verdade, não senti nenhum ato inchado ou com "barrigada". As 2 horas e 17 minutos passaram voando...literalmente. Ponto para a primorosa direção de Joseph Kosinsk (“Oblivion” e “Tron: O Legado”). Mas não se preocupe, Tony Scott estará sempre na memória do cinéfilo e tem o seu lugar merecido na dedicatória.

Não menos incrível é a trilha sonora assinada por Lady Gaga, Hans Zimmer, Harold FaltermeyerLorne Balfe. A linda canção “Hold my Hand” traz algo novo sabendo referenciar e pontuar a hora certa de entrar. Diferente de “Take My Breath Away” do original que mais parecia um tema de novela sendo banalizada à exaustão bastando o casal se entreolhar para tocar. Era um filme dentro de outro. Aqui não. Jennifer Connelly empresta seu charme habitual e mostra a excelente atriz que é. O seu texto não é o dos mais ricos, menos aprofundado, e mesmo assim Connelly dribla com bastante talento.

Emocionante e surpreendente, “Top Gun: Maverick” é o melhor blockbuster de 2022 que assisti até agora. Quiçá um dos melhores dos últimos anos. A nostalgia está lá, a homenagem também, mas nada é gratuito. Há um zelo ao tratar a novel audiência. Não se trata apenas de uma carta de amor aberta à aviação, mas sim ao Cinema.

Assim, a troca do theater pelo home theater pode até estar próxima, mas uma coisa é certa: "hoje não!"

*Avaliação: 5,0 Pipocas + 5,0 Rapaduras = 10.

quinta-feira, 19 de maio de 2022

Com Spoilers - MÃE!


Por Rafael Morais

*COM SPOILERS

Um escritor (Javier Bardem) se refugia com a sua mulher (Jennifer Lawrence) no intuito de recomeçar a vida após um incêndio que teria acabado com a sua residência. Paralelo a isso, o sujeito também busca inspiração para escrever o seu novo trabalho, sofrendo um bloqueio criativo depois dessa tragédia. Com o passar do tempo, visitantes “inesperados” (Ed Harris e Michelle Pfeiffer) surgem para visitar o casal acabando com a rotina de paz e marasmo.

Baseado nesta premissa, que parece simples, o cineasta e roteirista Darren Aronofsky aborda as intempéries do processo criativo de um artista através de metáforas do início ao fim. Pura semiótica. De antemão, aviso que mais à frente entrarei com spoiler’s (alertarei), visto que é uma tarefa árdua falar sobre esse filme sem adentrar nos seus meandros. E essa dificuldade ocorre justamente pelo fato de cada personagem ou objeto de cena significar algo ou alguma coisa, sem jamais oferecer interpretações diversas, ou terceiras leituras, sob pena de se perder a principal mensagem que o filme quer passar.

Neste sentido, o marketing peca em vender um produto de drama envolto num universo fantástico sombrio, com toques de suspense, é bem verdade. Campanha de divulgação desonesta, pautada num terror/horror, comparando até com “O Bebê de Rosemary”, esta referência não se coaduna com a obra, com exceção do figurino preto dos visitantes, bem como os olhares bizarros, ansiosos e contemplativos, tudo ao mesmo tempo, em volta da figura da esposa e o que ela pode gerar. De resto, este novo filme de Aronofsky flerta mais com David Lynch em “Império” e “Cidade dos Sonhos”, por exemplo, do que propriamente com Polanski.

Deste modo, escolhendo seguir “a mãe”, personagem de Lawrence (sim, quase todas as personas não são batizadas por nomes, mas, sim pelo que estão representando), desde o seu despertar até o desfecho, a câmera de Aronofsky é fixada no ombro da mulher e a persegue por todos os caminhos.

Assim, o uso de steadcam auxilia na captação dos passos da coprotagonista, além da utilização de movimentos de travelling para dar a falsa sensação de que tudo gira em torno daquela mulher. O que não deixa de ser verdade, em partes. É ela, a musa inspiradora do artista, que move o longa pra frente, sendo constantemente abordada fisicamente na figura de uma mulher idealizada em poucas roupas, corpo esbelto, curvas acentuadas, pele macia e busto farto, tal qual uma imagem sacra, no estilo barroco. Sempre disposta a ajudar o seu marido, quase incapaz de lhe dar um não como resposta, temos uma figura resiliente e necessariamente catártica.

-------SPOILER ALERT! ------

“Eu Sou o que Sou” (Êxodo 3:13-14), diz Deus a Moisés. E o escritor, lá pelas tantas, quando perguntado quem ele era, solta a mesma frase. Na verdade, Aronofsky empresta a “Mãe!” um tom alegórico, permeado por signos, guardando interpretações e referências bíblicas para estruturar uma comparação com as diversas formas de criação. Se por um lado, temos um artista passando por uma crise de falta de criatividade, por outro, depois de superado um carrossel de emoções - uma ode à loucura introspectiva na cabeça de um autor - vimos o ápice da sua criação, sua masterpiece: revelando-se uma obra perfeita e acabada que mudará a vida daqueles que a consumirem, literalmente.

Assim, o bebê “devorado” pelo público se desponta como um símbolo da obra finalizada e ligeiramente consumida, como um sacrifício de um homem que entrega o seu filho para a humanidade. E isso não lembra a história de Jesus, enquanto cordeiro imolado?! Portanto, não à toa, o plano faz menção ao corpo e sangue entregue aos sedentos.

Desta forma, há uma personificação literal do encontro/relação entre o artista que encontra sua musa inspiradora e concebe um filho com ela, a obra deixada para posteridade. Um livro, filme, música ou quadro (obra de arte qualquer) depois de publicada não passa mais a ser de quem a criou, mas dos outros. Quem nunca ouviu aquela expressão: “isso foi um parto”, após um trabalho árduo?! Tudo isso aqui é elevado à enésima potência.

Crítica, público, indústria (a editora chamada Herald vivida por Kristen Wiig – sim, esta tem um nome) e artista vivem constantemente esse embate pela publicação e aceitação das novas obras, do lançamento. O consumismo é invasivo e isso é bem representado em tela, como na sequência em que os fãs caminham pela pastagem verde, todos de preto, alienados, se dirigindo até à casa do seu ídolo para cobrar o produto (um poema, neste caso) e venerar o resultado final, traçando uma analogia imediata, na cabeça de um cinéfilo, com “A Noite dos Mortos-Vivos”, do saudoso George Romero.

O sacro e o humano se fundem em tela, evidenciando que aqueles personagens são frutos da criação do “poeta”. Perceba pela justaposição de imagens e o jogo de posicionamento de câmera, que o “fã” vivido por Ed Harris senta ao lado de seu “ídolo”, e num enquadramento magistral, o cineasta capta o corpo de Harris saindo do perfil de Bardem, como se o concebesse. Genial!

Não menos espetacular, a simbologia do diamante bruto dando vida à casa (local das ideias do artista, seu cérebro inquietante) torna a imagem reveladora de tudo o que estar por vir. Ainda na busca por significados, temos a representação da primeira família que viveu no paraíso (termo utilizado pela esposa se referindo ao lar) nas personas de Harris e Pfeiffer como Adão e Eva, e os seus filhos Brian Gleeson, o caçula, sendo assassinado pelo irmão mais velho, Domhnall Gleeson, após travarem uma luta, uma espécie de Cain e Abel.

Com um pé na “Divina Comédia” de Dante Alighieri, quando retrata o inferno em fases, o ciclo da criação é completado com a jornada daquela musa se desfazendo aos poucos, queimando lentamente para dar lugar a um novel período de descobertas e inventividades, onde outra criatura inspiradora, com corpo e rosto diverso, mas não menos idealizado, chegará para impulsionar a vida de seu criador.

*Avaliação: 3,0 Pipocas + 5,0 Rapaduras = 8,0.

terça-feira, 17 de maio de 2022

Dica Netflix - HOMEM-ARANHA NO ARANHAVERSO


Por Rafael Morais
*resenha escrita em janeiro de 2019

A Sony, em parceria com a Marvel, finalmente acertou! Depois de “Spider-Man 2” de Sam Raimi, desde 2004, este é o filme que mais entende a origem e os conflitos do herói. No entanto, não levo em consideração aqui “De Volta ao Lar/Homecoming” de 2017, e suas continuações, tendo em vista que o Studios Marvel/Disney realizou um acordo com a empresa japonesa retomando para si a liberdade criativa do “teioso”. E logo no início do longa, já entendemos o motivo deste acerto: reconhecer o erro do passado (o Spider emo do fatídico capítulo 3), tirar sarro com a própria mancada e colocar o herói nos eixos novamente faz parte do lema “apanhar, cair e levantar”.

No multiverso proposto, conhecemos o carismático protagonista Miles Morales: um jovem negro do Brooklyn, filho de uma enfermeira latina e um pai policial, que se tornou o Homem-Aranha inspirado no legado de Peter Parker. Entretanto, após desvendar as intenções vilanescas de Wilson Fisk – o famigerado “Rei do Crime” - Miles descobre uma dimensão paralela difundida com a sua realidade, de onde surgem outras, e inusitadas, versões do Homem-Aranha.

Animação vibrante, repleta de homenagens e que fala a língua dos quadrinhos, literalmente; assim, temos uma película que brinca constantemente com a metalinguagem para ambientar o espectador no universo do “amigão da vizinhança”, como nunca antes o Cinema havia conseguido.

Sim, os recursos visuais utilizados pela inspirada tríade de diretores Peter Ramsey, Bob Persichetti e Rodney Rothman vão de pertinentes e verticais tomadas aéreas (na perspectiva de Miles), a uma estranha psicodelia, proposital, no uso das cores. Até as diversas camadas, referentes às realidades paralelas, também são representadas, organicamente, na fotografia do filme. Simplesmente incrível!

Deste modo, para cada tipo de Spider apresentado, há um visual característico e inerente à sua origem, à sua época. Repare que o “Porco-Aranha” é chapado em 2D, carregando toda uma linguagem narrativa voltada aos desenhos tradicionais, como o “Looney Tunes”, por exemplo. Até nos efeitos sonoros, podemos observar o chamado efeito “mickey mousing” na trilha, onde as onomatopeias surgem em tela para traduzir em palavras os sons que estamos escutando. O “tic-tac” do relógio, o “pow” de um soco, entre outros, são arquétipos deste recurso.

Não menos interessante, o “Homem-Aranha Noir” é um detetive que traz um tom de suspense, mais sério e banhado no preto e branco. O que torna rica a experiência de juntar todos os tipos no mesmo universo. A interação entre o digital e o analógico, da menina aranha oriental (advinda dos animes), montada em um robô high tech, convivendo com o Peter Parker tradicional é um baita acerto na interatividade entre personagens de mundos opostos, trazendo química aos diálogos e situações.

O filme aborda essa relação de gerações e culturas, traçando uma analogia com o próprio público, abraçando a todos sem distinção. O que não deixa de ser uma das mensagens finais lançadas, uma verdadeira ode à multidiversidade. Na verdade, o legado de que “qualquer um pode ser o Homem-Aranha” remete tanto à pluralidade quanto ao código de ética do herói Marvel, o que sempre me emociona nesse tipo de filme, uma vez que o altruísmo, tão esquecido em nossa sociedade, surge pungente na pele de um herói improvável.

Sagaz, o roteiro de Rodney Rothman e Phill Lord é um dos trunfos para o sucesso deste “Aranhaverso” quando respeita o passado, e toda a mitologia, expandindo o futuro, ao passo que emociona e diverte na medida, ainda guardando espaço para plot twists (reviravoltas) condizentes com o cânone.

Confesso que me arrepiei diversas vezes durante as suas quase duas horas de projeção, tendo escorrido uma lágrima aqui e acolá. Sim, a minha experiência com o herói-título vem dos desenhos animados que passavam na minha infância e juventude, bem como da reimaginação para as telonas de Sam Raimi, na pele de Tobey Maguire, em 2002. E lá se vão 17 anos...

Ao final, “Homem-Aranha no Aranhaverso” é um presente em forma de animação que não só cativa os fãs, como enche os olhos de quem está conhecendo agora este “novo mundo”. Onde quer que eles estejam, Stan Lee e Steve Ditko, certamente, estão orgulhosos disso tudo!

* Avaliação: 5,0 Pipocas + 5,0 Rapaduras = 10,0.

sexta-feira, 13 de maio de 2022

Aniversariantes Memoráveis - 54 anos de O BEBÊ DE ROSEMARY

Por Rafael Morais

Um clássico do terror e suspense que ultrapassa gerações.

O Bebê de Rosemary é uma das raras obras de terror consideradas como antológicas, principalmente porque elevou o gênero ao status de arte ao trazer uma maturidade no conteúdo e no tratamento dado a um tipo de filme subestimado pelos críticos e desatualizado para sua plateia. 

Dirigido pelo polêmico e talentoso Roman Polanski, autor de grandes obras cinematográficas como a trilogia do apartamento - Faca na ÁguaRepulsa ao Sexo e O Inquilino - além do premiado O Pianista, o cineasta se credenciou, com o passar do tempo e entre altos e baixos - sobretudo na sua vida pessoal - como um dos maiores diretores do Cinema, tanto pelo seu estilo peculiar como pelas suas lentes elegantes e "polanskianas" de enxergar uma cena.

A trama conta a história de um casal que se muda para um apartamento em Nova York e passa a se envolver com seus vizinhos, que se tornam indesejavelmente frequentes em suas vidas pessoais. Assim, estas visitas recorrentes desaguam na causa das agruras vividas por Rosemary (Mia Farrow). A história se desenvolve a partir do envolvimento de seu marido (John Cassavetes), um fracassado ator, com um casal de idosos que atraem sua atenção desmedida por um obscuro interesse envolvendo Rosemary e sua gravidez. 

Inserida nesse contexto, a futura mãe passa a experimentar uma incomum e sofrida gestação, sendo controlada por seus famigerados vizinhos. Com a crescente tensão estabelecida no universo da protagonista, suas fugas e solicitações começam a ser consideradas atitudes de insanidade psicológica por seus conhecidos, o que gera uma certa ambiguidade característica no estilo de Polanski.

Desta forma, a sensação que temos é de experimentarmos um certo conflito entre alucinação e realidade, pelo fato de o diretor trabalhar o filme nesta linha tênue que separa o mundo pessoal de Rosemary, por isso, ora acreditamos ser real a circunstância do ritual, ora, repentinamente, nos tornamos céticos e julgamos ser um delírio neurótico da personagem, muito embora todos os fatos narrativos nos creditam uma veracidade sobre o casal de feiticeiros.

Mia Farrow entrega uma excelente e "assustadora" atuação, demonstrando toda a sua destreza e habilidade de interpretação que é acentuada por sua frágil e débil aparência, um visual de penúria e resignação terminal. Repare, por exemplo, na magreza esquelética, semblante pálido e olheiras profundas. Méritos também para a maquiagem. Sem dúvida alguma Polanski consegue extrair o melhor de seus atores, como é relevante a sutil invasão interpessoal por parte dos detestáveis vizinhos (Ruth Gordon – a idosa vizinha – ganhou um Oscar por esse filme), que paulatinamente vão manipulando a jovem mãe.

Não menos genial é o estilo de narração e o trabalho de movimento de câmera do festejado cineasta, pois, durante toda a projeção ele consegue nos inserir no mundo da protagonista, sob o ponto de vista dela, e somente dela. Observe que em nenhum momento, temos uma perspectiva de outro personagem. Até quando o marido vai a uma reunião na casa dos vizinhos, Rosemary fica sozinha em casa e as especulações sobre o que está acontecendo naquele encontro são inevitáveis. Outro momento emblemático é no primeiro jantar oferecido pelo casal de idosos. Nessa sequência, ao sair da cozinha, Rosemary olha atentamente para a sala, onde o seu marido e o vizinho conversavam, e não conseguindo enxergá-los, avista apenas fumaça saindo daquele sombrio cômodo, denotando uma aura de misticismo, feitiço ou tentação. O que certamente estava acontecendo.    

É por demais instigante e arrepiante o fato de que o diretor usou um grupo satanista para fazer algumas cenas ritualísticas, cujas canções cerimoniais entoadas durante a sessão estão presentes na sequência, o que causa mais incômodo ao assistir estes momentos no longa, tamanha verossimilhança. Principalmente por saber que Polanski perdera sua esposa, a atriz Sharon Tate, em um macabro assassinato num ritual de uma espécie de seita satânica liderada por Charles Mason após ter terminado de rodar o filme em questão.

Ao fim, Roman Polanski realiza, sem sombra de dúvidas, uma grande obra clássica de terror, com uma qualidade temática e artística sem precedentes. É um filme que não deve deixar de ser assistido, para que, a partir dele, possa se conhecer outras magníficas obras típicas desse gênio atormentado da sétima arte.

 *Avaliação: 5,0 Pipocas + 5,0 Rapaduras = 10,0.

quarta-feira, 11 de maio de 2022

Nos Cinemas – O HOMEM DO NORTE

Por Rafael Morais

895 d.C. Um homem destemido, alimentado pelo ódio, parte em busca de vingança. O humano, o divino e o destino se confundem nessa jornada shakespeariana de proporções épicas.

"The Northman" é um longa de vingança atmosférico, escrito e dirigido por Robert Eggers ("A Bruxa" e "O Farol"). A história, que inspirou Hamlet de William Shakespeare, narra a trajetória do pequeno Amleth (Oscar Novak), trocara apenas a ordem da letra H, príncipe que presencia o seu pai/Rei ser assassinado pelo próprio irmão, seu tio. Em fuga, após o fatídico acontecimento, o menino promete “vingar o pai, salvar a mãe e matar o tio”. Repetindo essa frase trocentas vezes durante o filme.

Qualquer semelhança com “O Rei Leão” e “O Gladiador” não é mera coincidência.

Anos depois, já adulto, o protagonista é encarnado numa versão Viking vivida pelo ator Alexander Skarsgard transbordando ira pelos poros numa interpretação carregada de bastante energia. Aliás, todo o elenco estelar está bem afiado, tal qual as espadas e machados apresentados nas lutas. William Dafoe e Anya Taylor-Joy, parceiros habituais de Eggers, entregam o que é esperado. Heimir pouco aparece, mas seu personagem é de grande importância à trama; já Olga, cresce consideravelmente com o passar dos atos. Nicole Kidman e Ethan Hawke emprestam seus talentos habituais e suas personas acrescentam ao drama e à verossimilhança.

Tecnicamente irreparável, o filme se destaca pela ambientação hostil, recorte de uma era Viking. Contemplar a bela fotografia de Jarin Blaschke e os enquadramentos inspiradíssimos faz parte do fascínio que o longa exerce sobre o público. Não menos impactante, são as sequências brutais de ação. Muitos takes sem corte aparente dão a imersão de acompanharmos os saqueamentos, as invasões e as batalhas como se estivéssemos dentro da cena. 

Outro aspecto importante é observar a escalada do horror visceral. Animalesco e brutal, o sangue jorra sem dó nem pena. O homem enquanto ser primitivo, de natureza instintiva, é o que sempre interessou ao cineasta em sua pequena, mas densa filmografia composta de apenas três produções ao todo.

Em “A Bruxa” temos a descoberta de uma menina que se torna mulher aos olhos de uma família fundamentalista. A luta dos hormônios, os desejos, o sucesso e o desgarramento da “barra da saia” são metáforas para a tentação de não cair na perdição demoníaca. Já “O Farol” é quase um ensaio sobre o enclausuramento, onde duas personalidades distintas perdem o juízo durante um confinamento, ocasião em que os seus “monstros” interiores serão colocados pra fora, inevitavelmente.   

Contudo, a obra não é perfeita. Os “pecados” ficam por conta de uma montagem nada instigante, que quebra o ritmo ao ser dividida em capítulos; além de diálogos formados, em sua maioria, por frases de efeito. O que é uma pena.

* Avaliação: 3,5 Pipocas + 4,5 Rapaduras = 8,0.

segunda-feira, 9 de maio de 2022

Dica Streaming: SICARIO - TERRA DE NINGUÉM


Por Rafael Morais

Brilhantemente dirigido pelo eclético Dennis Villeneuve (Os Suspeitos), "Sicario: Terra de Ninguém" narra a jornada da policial federal Kate Macer, vivida por Emily Blunt, que terá sua integridade física e moral colocada à prova em uma misteriosa missão.

Película dona de um clima claustrofóbico e enervante, do início ao fim, "Sicario" mexe nas feridas e não passa a mão na cabeça de ninguém ao abordar a drástica situação do tráfico de drogas na fronteira México e Estados Unidos. Envolta em suspense e dúvidas, seja acerca da lealdade da instituição ou do sistema, seja pela própria intenção de seus parceiros de trabalho, a agente Macer, interpretada magistralmente por Blunt, carrega uma mulher solitária, angustiada, mas sempre honesta e íntegra no que tange às suas atitudes. A moral ilibada da personagem é o contraponto ideal para os absurdos que iremos presenciar: corpos pendurados pelo cartel que comanda o crime na região, policiais corruptos, sistema totalmente corrompido e os civis no centro deste fogo cruzado.

Hábil ao criar personagens secundários, mas não menos importantes para o deslinde, como o núcleo em que vive o humilde policial mexicano Silvio (Maximiliano Hernandez), o roteiro acerta na catarse ao dar vida e mostrar a trajetória do agente estadual comum, pai, tridimensionalmente humano e complexo quanto os demais envolvidos.

Com um elenco bem escolhido para um script inteligente, temos um Josh Brolin em uma interpretação blasé, condizente com o seu personagem: um agente da CIA que esconde de Macer (e de nós, espectadores) o verdadeiro objetivo da arriscada missão, sobretudo os meios para se chegar ao fim, sendo capaz de qualquer acordo para beneficiar o seu país, tentando manter a sua nação sempre no controle, nem que seja do caos; atuando com olhares e trejeitos expressivos, marcantes, mas, com poucos diálogos, Benicio Del Toro surge extremamente inspirado na pele do letal Alejandro.

O ritmo do longa, por sua vez, é alucinante: e tanto a sequência inicial da invasão à casa/cemitério quanto a já famosa cena do engarrafamento são de roer as unhas e dar inveja a qualquer cineasta que não saiba criar uma atmosfera de tensão. Colocar o público na geografia da cena e situá-lo parece algo fácil para Villeneuve. Observe que das contemplativas tomadas aéreas que registram a beleza daquelas regiões exóticas - nem parecendo o nosso planeta Terra, tamanha a calmaria lá de cima - o diretor corta, abruptamente, para enquadramentos fechados nas figuras suadas, enclausuradas, prontas para matar ou morrer. Nesse contexto, o competente realizador nunca nos deixa perdidos, situando-nos na construção das cenas, característica visual marcante de suas obras (lembre-se dos planos aéreos e sua importância na cidade de "O Homem Duplicado").

A obra ainda conta com o mestre Roger Deakins na direção de fotografia, que capta fielmente o espírito da película ao contrastar esperança e tragédia dentro de sua paleta de cores. Seja no uso da contraluz, que teima em criar poesia com a onipresença da natureza, bem como no cair do sol e o crepúsculo que se aproxima.

Tecnicamente irretocável, a evocativa trilha sonora de Jóhann Jóhannsson, também parceiro habitual do diretor, imprime os acordes crescentes, que incomodam (e essa é a intenção), ora graves, ora agudos, condizentes com a escalada do crime ao compor uma trilha com elementos diegéticos daquele mundo (ou seria submundo?), onde podemos ouvir sons de maquinários, gritos, alarmes e tambores que remetem ao universo proposto. O fato é que esta bela composição sonora sempre entra no momento certo sem jamais se apoderar ou mastigar o filme, o que seria um pecado.

Em um terceiro ato que liga todas as pontas soltas, percebemos que uma simples metáfora resume toda a obra: os chamados fogos de artifício, rajadas de balas que rasgam famílias e o céu, ao mesmo tempo, são "apreciados" por policiais, do alto de um prédio, conscientes da tamanha problemática para a solução do tráfico; contrapondo à rima visual com um jogo de futebol, de várzea, em terra batida, composto por crianças sem pais, destituídas de esperança, que escutam ao longe os mesmos tais "fogos de artifício" e que um dia, quem sabe, poderão servir para os devidos fins de apreciação, luz e celebração.

*Avaliação: 5,0 Pipocas + 5,0 Rapaduras = 10.


sexta-feira, 6 de maio de 2022

Nos Cinemas - DOUTOR ESTRANHO: NO MULTIVERSO DA LOUCURA


 Por Rafael Morais

* (sem spoilers)

O tal multiverso, que promete bagunçar tudo no UCM (universo cinematográfico da Marvel), chegou! E ninguém melhor do que o trio Raimi, Strange e Wanda para dar esse pontapé inicial valendo. Sei que já tivemos um vislumbre desse evento na aventura do “Homem-Aranha Sem Volta pra Casa”. No entanto, aqui em “Dr. Estranho no Multiverso da Loucura” essa visitação às outras terras e infinitas possibilidades começa com os dois pés na porta.

A sinopse aborda o surgimento de America Chavez (Xochitl Gomez), uma garota que é capaz de abrir portais e transitar por multiversos. Simples assim. Nesse contexto, entre uma viagem e outra, a adolescente cai na Terra como nós conhecemos. Nela, Dr. Estranho (Benedict Cumberbatch excepcional e cada vez mais à vontade no papel) sofre as consequências de seus atos heroicos e terá que proteger Chavez, sob pena de uma nova e inimaginável ameaça colocar as diversas realidades em total colapso. Na verdade, o filme é uma continuação direta dos eventos acompanhados na série “WandaVision”, disponível na Disney Plus.  

Para tanto, a saída encontrada pelos roteiristas Michael WaldronJade Bartlett, sob o comando atento e controlador de Kevin Feige, foi simplesmente trazer dos quadrinhos uma personagem que tem o poder de desencadear e atravessar esses portais. Não há nada muito rebuscado nesse argumento, como se vê. A ideia, portanto, é brincar com as possibilidades através da imaginação. Diferente do fio de premissa, a criatividade se sobressai no desenrolar dos atos.  

Desta forma, o ponto alto da nova produção do Marvel Studios é o tom de terror que o veterano diretor Sam Raimi emprega à película. Pegue a trilogia “Evil Dead” (A Morte do Demônio), acrescente uma pitada de “Arraste-me Para o Inferno” e voilà!

Perceba os enquadramentos e movimentos de câmera característicos do idealizador. As lentes se aproximando rapidamente de uma porta prestes a sair uma ameaça real; a utilização de ângulo holandês (câmera inclinada em relação à horizontal; ângulo torto para simplificar) dando a sensação de aflição e desorientação; a maquiagem digna de filmes trash, mas bem produzidos; os jump scares que não poderiam faltar. Todos esses elementos estão lá, sobretudo nos momentos de tensão.

Mas não apenas no aspecto técnico podemos perceber a assinatura de Raimi. A presença de um vilão implacável, ainda por cima conjurando o Darkhold (irmão gêmeo do Necromicon?!), é muito filme de terror oitentista! Por diversas vezes me peguei como se tivesse assistindo um misto de “Sessão da Tarde” com “Cine Trash”. E essa sensação nostálgica/saudosista me deixou extremamente feliz e satisfeito.

O fato é que esse longa é tudo o que a primeira aventura de 2016 não conseguiu ser! Todo aquele potencial de ser um filme sombrio, de piração na psicodelia, foi resgatado aqui. Se o antecessor não mergulhou no diferente, esse pulou de ponta.

Inventivo também no embate entre seres poderosos – sair na mão, simplesmente, era uma saída preguiçosa - "No Multiverso da Loucura" é lúdico e inteligente o suficiente para escapar do óbvio. O que dizer da luta cifrada?! Aplausos para a incrível trilha sonora de Danny Elfman!

Sem mais detalhes para não entregar trechos importantes (NO SPOILERS!), é interessante notar como o UCM não tem se fechado para as novas tendências. Em uma determinada sequência, por exemplo, fica clara a influência da subversiva série de animação "Invencível" (Amazon Prime Video). Afinal de contas, chocar o público também faz parte do espetáculo.

Não menos magnífico, os trechos rodados com as câmeras IMAX (se puder, assista nesse formato) deixam o espectador boquiaberto tamanha a nitidez, imersão e beleza dos cenários. Parece que estamos ali com o protagonista subindo aquela imensa e tenebrosa escadaria. A poeira, a goteira, a névoa...os elementos de cena são perceptíveis e proporcionam uma ambientação estupenda!

Por fim, nada mais apropriado que esse filme ter sido lançado na semana do dia das mães. Entendedores entenderão! Confesso que vai ter criança com medo na hora de dormir e isso é sinal que Sam Raimi fez um bom trabalho. A fase quatro desse universo expandido da Marvel começou em grande estilo.

*Avaliação: 4,5 Pipocas + 4,5 Rapaduras = 9,0.

quarta-feira, 4 de maio de 2022

Disponível no Disney Plus - DOUTOR ESTRANHO


Por Rafael Morais

(*resenha escrita em novembro de 2016) 

"Há mais coisas entre o céu e a terra do que pode imaginar nossa vã filosofia". Essa clássica frase do escritor William Shakespeare poderia resumir a mais nova adaptação da Marvel para os cinemas, só que não! Este "Doutor Estranho" fica no meio do caminho e não consegue sair da zona de conforto cinematográfica em que o estúdio tem se ancorado. A tal fórmula do humor empurrada goela abaixo já passa a incomodar, somado à ausência de urgência/perigo pela qual os personagens da Marvel/Disney nunca passaram verdadeiramente. 

A trama da vez gira em torno de um médico arrogante, Stephen Strange (o sempre ótimo e carismático Benedict Cumberbatch), que se vê incapacitado após um acidente de carro. Assim, Strange busca se recuperar de todas as maneiras possíveis, indo parar em Katmandu, onde encontra a “Anciã” (Tilda Swinton desfilando sua versatilidade), através de “Mordo” (Chiwetel Ejiofor).

O primeiro ato nos dar a falsa sensação de estarmos diante de algo diferente, principalmente quando somos apresentados a um protagonista sequelado após este grave acidente. O estado das suas mãos e o rosto desfigurado destoa dos filmes de heróis ao qual estamos acostumados. E o diretor Scott Derrickson enquadra com excelência a nova situação do sujeito, limitado e angustiado, numa tomada frontal, em primeira pessoa, onde os braços estirados do herói nos coloca numa posição desconfortável, tal qual aquela em que ele vive. O gore está lá, na medida, mas não se anime, pois ele vai desaparecer. 

O fato é que o currículo do cineasta em fitas de terror (“O Exorcismo de Emily Rose”, entre outros) me fez acreditar, previamente, em uma atmosfera sombria, diferente da aquarela que acabou pintando a fotografia do filme.

Contudo, para não soar como um desastre completo, a divertida película se destaca em três sequências extremamente bem conduzidas: a iniciação do herói no mundo místico - que explodirá a sua cabeça, sobretudo se assistida em IMAX - precedida de um excelente diálogo com a Anciã; a luta com um clã de magos do mal, liderados por Kaecilius (Mads Mikkelsen sendo o Hannibal de sempre), claramente sugada de “A Origem/Inception”, onde o personagem de Joseph Gordon Levitt luta com capangas, em gravidade zero, aqui elevado à enésima potência; e a utilização do “Olho de Agamotto” (uma das tais joias do infinito) no desfecho, ocasião em que o tempo volta em slow motion enquanto a porrada come solta.

Aliás, apesar de inúmeros poderes e armas místicas, a boa e velha pancadaria é a solução encontrada pelos magos durante o enfrentamento, o que nos causa estranheza pela falta de criatividade. 

O fato é que o roteiro escancara furos e facilitações sem parcimônia. Observe a necessidade de tudo girar em torno do hospital onde o protagonista trabalha, até mesmo quando este precisa de uma cirurgia delicada e é o seu pior rival, frequentemente humilhado por sua falta de perícia, quem vai realizar o procedimento. O livro sagrado, por exemplo, objeto importantíssimo, facilmente roubado na abertura do filme pela gangue do vilão?! Faltou uma vigilância redobrada ali ou a Anciã (que já deveria estar “careca de saber”, com a licença do trocadilho) é inexperiente demais para não perceber que isso poderia acontecer?! 

Voltando aos aspectos positivos (juro que estou tentando), a trilha sonora, por sua vez, equaliza o tom aventuresco, configurando um acerto dentro da proposta. Repare que o arco do herói, perfeitamente traçado em todos os filmes do gênero, ganha contornos apoteóticos na composição de Michael Giacchino.

Por outro lado, parte do elenco, mal aproveitado, traz coadjuvantes sem graça, que vão desde um interesse amoroso sem sal (Rachel McAdams, o que aconteceu com a senhorita depois de o “Diário de uma Paixão”?) a vilões descartáveis e amigos questionáveis.

Enfim, não rolou pra mim! Pode ser que a minha expectativa estivesse voltada a mais psicodelias e pirações estranhas, não limitada apenas ao sobrenome do personagem-título.

*Avaliação: 3,0 pipocas + 2,5 rapaduras = nota 5,5.   

terça-feira, 3 de maio de 2022

Aniversariantes Memoráveis - 65 anos de O SÉTIMO SELO


Por Rafael Morais
Jogar com a morte: certeza da derrota.

Questionamentos e dúvidas: essas são as principais temáticas que permeiam O Sétimo Selo. Entenda que estamos falando sobre o Cinema sueco, logo, a essência do ser humano, bem como as suas principais indagações internas são o ponto-chave dessas obras. Para onde vamos e de onde viemos? Se existe o Mal, o Bem, a contrario sensu, também existe? São essas perguntas que pairam em nossas massas cinzentas. Entender os meandros da natureza do homem, através do simbolismo, é a pretensão de Ingmar Bergman

O filme narra a história de um cavaleiro que retorna à sua vila depois de lutar nas Cruzadas. Seu nome é Antonius Block (Max Von Sydow), e o cenário por ele encontrado é de profunda desolação. Mortos, caos, fome e tudo o que um ambiente pós-guerra pode "proporcionar". Estamos no século XIV, e parte da devastação é por conta da peste negra, doença mortal que dizimou milhões de vidas em várias partes do mundo conhecido, até então.

Desse modo, diante do embate com essa realidade tão perversa, surge no cavaleiro um sentimento de enorme dúvida sobre a existência de Deus em meio a tamanha desesperança. Assim, o que norteia os passos, palavras e atitudes do questionador Anthonius é, justamente, a busca incessante por desvendar um algum dos maiores mistérios existenciais: Deus existe? E se existe por que ele deixa que aconteça tantas tragédias? Mas indagar e procurar não significa, necessariamente, achar as respostas. E é assim, inteligentemente, que o cineasta prefere lidar com o tema.

Nesse prisma, o longa ganha tons mais fantásticos com o surgimento de um estranho e irremediável "personagem": a Morte. E essa nefasta figura revela ao protagonista que sua hora é chegada. Mas Antonius, mesmo atormentado, desafia a entidade com uma proposta ousada. Por meio de um jogo de xadrez, ele pode ganhar uma sobrevida no caso de vencer; é a partir desse encontro, com a mais temida das horas, que a trama ganha contornos existencialistas. 

Bergman, então, se utiliza do Cinema para mergulhar nos fantasmas que não só o atormentam, mas persegue qualquer um de nós. A inquietude do homem diante da imposição do destino é algo que o cavaleiro, destemidamente, enfrenta ao questionar, tentando entender o mistério da vida e da humanidade. 

Durante toda a narrativa, observamos a insegurança de Anthonius diante do plano abstrato, tanto que em um dado momento, diante de tantas perguntas lançadas, um dos personagens lhe diz: "Você nunca para de questionar?".

No entanto, na contramão do sombrio e das angústias, Bergman nos apresenta um núcleo de extrema importância na narrativa, vivido por artistas circenses alegres e despretensiosos. A salvação estaria na expressão mais bela e simples da arte? Parece que sim, haja visto que apesar de o filme ser em preto e branco, quando esses artistas, "cheios de vida", entram em cena, tudo parece ganhar tintas vibrantes, mesmo que os nossos olhos presenciem apenas o branco e a ausência de cor. Incrível!

Inquietante, atual e arrebatador, como um clássico deve ser, O Sétimo Selo é merecedor de todos os prêmios conquistados, além de ser parte indispensável nas principais listas de melhores filmes. Enfim, uma obra de arte cinematográfica. É como se os quadros/frames ganhassem vida e estivessem em movimento.

*Avaliação: 5,0 Pipocas + 5,0 Rapaduras = 10,0. 

segunda-feira, 2 de maio de 2022

Dica Amazon Prime Video - ERA UMA VEZ EM...HOLLYWOOD


Por Rafael Morais

Uma fábula tarantinesca subversiva que mergulha na metalinguagem para narrar o sonho americano pelos olhos de um ator de TV, Rick Dalton (Leonardo DiCaprio), seu dublê Cliff Booth (Brad Pitt) e uma atriz que também busca o seu lugar ao Sol, a bela Sharon Tate (Margot Robbie). Os três protagonistas têm algo em comum: precisam se adaptar às mudanças de Hollywood ou o mercado os engole.

Realizando seu filme mais experimental, até agora, Quentin Tarantino deita e rola na ambientação de uma Los Angeles efervescente no final da década de 60. Cinéfilo inveterado, o cineasta não esconde as referências que pipocam na tela, passando pelas fitas de máfia até os westerns espaguete. Como não lembrar de "Os Bons Companheiros" na sequência que envolve um diálogo hilário entre Bruce Lee (Mike Moh) e Cliff: "Funny how? Funny How"?! As homenagens às obras de Sergio Leone e Ennio Morricone também estão escancaradas lá.

O ponto alto de "Era Uma Vez em...Hollywood", no entanto, é o elenco afiadíssimo! DiCaprio consolida sua boa fase entregando uma atuação complexa, repleta de camadas, para um personagem que busca autoafirmação constantemente. É revigorante acompanhar a evolução de Rick Dalton vivido com tanta paixão por DiCaprio. O cara se cobra muito, se decepciona consigo, se emociona com os próprios erros e nos faz testemunhas desse conflito pessoal. A busca incessante pela afirmação e pelo sonho de se tornar um ator de Cinema - nem que seja através de um elogio de uma garotinha de nove anos de idade - já massageia o seu ego e o torna mais humano, conquistando facilmente a plateia pela identificação imediata. Já Cliff Booth, interpretado com maestria por Brad Pitt, carrega um ar nonsense e pé no chão, ao mesmo tempo, que ganha o espectador. O passado sombrio do dublê o torna ainda mais interessante e antimaniqueísta.

Já Margot Robbie, vivendo Sharon Tate, também não fica pra trás. No auge da beleza e do talento, a atriz entrega uma performance encantadora, sobretudo quando reforça a questão da aprovação, autoafirmação, tal qual Rick Dalton, na sequência a qual se assiste no cinema e se diverte diante das reações do público. Isso tudo, claro, com os pés pra cima na cadeira da frente, na nossa cara. O fetiche de Tarantino por pés femininos (Uma Thurman que o diga) está cada vez mais notório. Só aqui contei umas quatro vezes que o enquadramento estampa os pés, sejam aqueles desengonçados, anatomicamente, pequenos ou grandes. Aliás, as beldades são filmadas em situações normais, perdendo o glamour de estrela quando ronca alto ao dormir ou deixa os pés sujos expostos sem cerimônia.

Neste sentido, a relação de amizade entre Rick e Cliff é construída com harmonia, um complementando a limitação do outro, desde os primeiros frames. Perceba como Tarantino os enquadra por meio de um ângulo que parte do banco de trás do carro (a la Pulp Fiction) invertendo os nomes dos atores nos créditos iniciais. A ideia é essa: enquanto o ator está vivendo a ficção do faroeste televisivo, em saloons tão falsos quanto os bastidores da indústria do Cinema; o outro está na vida real, se sujeitando aos perigos de enfrentar, verdadeiramente, as ameaças lá fora. E isso é retratado com sagacidade pela montagem dinâmica do filme. A edição deixa claro como o espelho, o duplo existente entre o ator e o dublê, perpassa as cercas dos estúdios. Enquanto os louros da fama, a grana e as premiações pertencem ao original, para o sósia resta a ferida, o sangue, o curativo e a cicatriz.

Não menos espetacular, a trilha sonora escolhida com precisão por Tarantino, como de costume, é inesquecível e casa com cada tomada. As câmeras inquietantes do diretor captam os melhores aspectos das personas, tudo isso auxiliado por músicas da época. De Deep Purple a The Rolling Stones, perpassando por uma regravação melancólica que José Feliciano deu para California Dreamin; as canções viraram marca registrada da filmografia do cineasta e aqui não foi diferente. Confesso que baixei a trilha completa e escutava sem parar, à época, inclusive enquanto escrevia esta resenha.

Encarada pela crítica como a obra mais contida, e menos impulsiva da cinematografia do idealizador (entre os nove lançados, até então), o longa pode decepcionar quem for assisti-lo ávido por sangue, caso não se sacie nos 10 minutos finais. Estamos diante de um amadurecimento natural de um diretor e roteirista tão marcado pelo estigma que ele mesmo ajudou a criar. Há um tom mais complacente, intimista e lento que nos conduz entre os atos, com menos cortes abruptos e palavrões, demonstrando mais refino e não fuga de estilo. No entanto, as cores saturadas, os diálogos astuciosos, o humor negro, a violência gráfica: ainda está tudo lá.

Assim, “Once Upon a Time in Hollywood” é um retrato, aos moldes de Tarantino, de um tempo em que a inocência convivia com o mal, e isso se entrelaçou. Os seguidores de Manson mataram o sonho hippie, mas quem disse que a infame frase “Sou o diabo e vim fazer o trabalho do diabo” precisava se concretizar?! A ficção está aí pra isso. Aplausos para o cineasta que mais uma vez muda o rumo da História (lembre-se que no mundo tarantinesco Hitler já foi fuzilado e tostado) nos oferecendo a chance de vivermos uma realidade paralela mais palatável.

*Avaliação: 4,5 Pipocas + 4,5 Rapaduras = 9,0.