segunda-feira, 2 de maio de 2022

Dica Amazon Prime Video - ERA UMA VEZ EM...HOLLYWOOD


Por Rafael Morais

Uma fábula tarantinesca subversiva que mergulha na metalinguagem para narrar o sonho americano pelos olhos de um ator de TV, Rick Dalton (Leonardo DiCaprio), seu dublê Cliff Booth (Brad Pitt) e uma atriz que também busca o seu lugar ao Sol, a bela Sharon Tate (Margot Robbie). Os três protagonistas têm algo em comum: precisam se adaptar às mudanças de Hollywood ou o mercado os engole.

Realizando seu filme mais experimental, até agora, Quentin Tarantino deita e rola na ambientação de uma Los Angeles efervescente no final da década de 60. Cinéfilo inveterado, o cineasta não esconde as referências que pipocam na tela, passando pelas fitas de máfia até os westerns espaguete. Como não lembrar de "Os Bons Companheiros" na sequência que envolve um diálogo hilário entre Bruce Lee (Mike Moh) e Cliff: "Funny how? Funny How"?! As homenagens às obras de Sergio Leone e Ennio Morricone também estão escancaradas lá.

O ponto alto de "Era Uma Vez em...Hollywood", no entanto, é o elenco afiadíssimo! DiCaprio consolida sua boa fase entregando uma atuação complexa, repleta de camadas, para um personagem que busca autoafirmação constantemente. É revigorante acompanhar a evolução de Rick Dalton vivido com tanta paixão por DiCaprio. O cara se cobra muito, se decepciona consigo, se emociona com os próprios erros e nos faz testemunhas desse conflito pessoal. A busca incessante pela afirmação e pelo sonho de se tornar um ator de Cinema - nem que seja através de um elogio de uma garotinha de nove anos de idade - já massageia o seu ego e o torna mais humano, conquistando facilmente a plateia pela identificação imediata. Já Cliff Booth, interpretado com maestria por Brad Pitt, carrega um ar nonsense e pé no chão, ao mesmo tempo, que ganha o espectador. O passado sombrio do dublê o torna ainda mais interessante e antimaniqueísta.

Já Margot Robbie, vivendo Sharon Tate, também não fica pra trás. No auge da beleza e do talento, a atriz entrega uma performance encantadora, sobretudo quando reforça a questão da aprovação, autoafirmação, tal qual Rick Dalton, na sequência a qual se assiste no cinema e se diverte diante das reações do público. Isso tudo, claro, com os pés pra cima na cadeira da frente, na nossa cara. O fetiche de Tarantino por pés femininos (Uma Thurman que o diga) está cada vez mais notório. Só aqui contei umas quatro vezes que o enquadramento estampa os pés, sejam aqueles desengonçados, anatomicamente, pequenos ou grandes. Aliás, as beldades são filmadas em situações normais, perdendo o glamour de estrela quando ronca alto ao dormir ou deixa os pés sujos expostos sem cerimônia.

Neste sentido, a relação de amizade entre Rick e Cliff é construída com harmonia, um complementando a limitação do outro, desde os primeiros frames. Perceba como Tarantino os enquadra por meio de um ângulo que parte do banco de trás do carro (a la Pulp Fiction) invertendo os nomes dos atores nos créditos iniciais. A ideia é essa: enquanto o ator está vivendo a ficção do faroeste televisivo, em saloons tão falsos quanto os bastidores da indústria do Cinema; o outro está na vida real, se sujeitando aos perigos de enfrentar, verdadeiramente, as ameaças lá fora. E isso é retratado com sagacidade pela montagem dinâmica do filme. A edição deixa claro como o espelho, o duplo existente entre o ator e o dublê, perpassa as cercas dos estúdios. Enquanto os louros da fama, a grana e as premiações pertencem ao original, para o sósia resta a ferida, o sangue, o curativo e a cicatriz.

Não menos espetacular, a trilha sonora escolhida com precisão por Tarantino, como de costume, é inesquecível e casa com cada tomada. As câmeras inquietantes do diretor captam os melhores aspectos das personas, tudo isso auxiliado por músicas da época. De Deep Purple a The Rolling Stones, perpassando por uma regravação melancólica que José Feliciano deu para California Dreamin; as canções viraram marca registrada da filmografia do cineasta e aqui não foi diferente. Confesso que baixei a trilha completa e escutava sem parar, à época, inclusive enquanto escrevia esta resenha.

Encarada pela crítica como a obra mais contida, e menos impulsiva da cinematografia do idealizador (entre os nove lançados, até então), o longa pode decepcionar quem for assisti-lo ávido por sangue, caso não se sacie nos 10 minutos finais. Estamos diante de um amadurecimento natural de um diretor e roteirista tão marcado pelo estigma que ele mesmo ajudou a criar. Há um tom mais complacente, intimista e lento que nos conduz entre os atos, com menos cortes abruptos e palavrões, demonstrando mais refino e não fuga de estilo. No entanto, as cores saturadas, os diálogos astuciosos, o humor negro, a violência gráfica: ainda está tudo lá.

Assim, “Once Upon a Time in Hollywood” é um retrato, aos moldes de Tarantino, de um tempo em que a inocência convivia com o mal, e isso se entrelaçou. Os seguidores de Manson mataram o sonho hippie, mas quem disse que a infame frase “Sou o diabo e vim fazer o trabalho do diabo” precisava se concretizar?! A ficção está aí pra isso. Aplausos para o cineasta que mais uma vez muda o rumo da História (lembre-se que no mundo tarantinesco Hitler já foi fuzilado e tostado) nos oferecendo a chance de vivermos uma realidade paralela mais palatável.

*Avaliação: 4,5 Pipocas + 4,5 Rapaduras = 9,0.

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