sexta-feira, 30 de setembro de 2022

Dica Streaming [Netflix e Globoplay] - EM RITMO DE FUGA


Por Rafael Morais

Após dirigir a chamada “Trilogia do Cornetto – Sangue e Sorvete” (composta pelos filmes “Todo Mundo Quase Morto”, “Chumbo Grosso” e “Heróis da Ressaca”) e a adaptação da HQ “Scott Pilgrim Contra o Mundo”, o cineasta Edgar Wright chega a esse “Em Ritmo de Fuga” disposto a colocar suas digitais numa obra original, mesmo com um roteiro fragilizado pelos clichês, também escrito por ele. 

A trama acompanha o excêntrico jovem Baby (Ansel Elgort): o cara precisa ouvir música o tempo todo para silenciar o zumbido que perturba seus ouvidos desde um acidente na infância. Talentoso motorista, ele é o piloto de fuga oficial dos assaltos de Doc (Kevin Spacey), mas não vê a hora de deixar o cargo, principalmente depois de se apaixonar pela garçonete Debora (Lily James). Fundamentado neste aspecto do argumento, Wright deita e rola na utilização da música para orquestrar as cenas de ação e até mesmo as sequências em que o bando planeja um assalto. Desta forma, reside nesta sinfonia o principal diferencial da obra, pois, sincronizar os sons da ação que estão acontecendo no filme com notas, acordes, melodias ou batidas das canções, simultaneamente e diegeticamente, revela a paixão do diretor pela música, além da sétima arte.

Assim, o filme ganha contornos de uma verdadeira ode à cultura pop, já que o protagonista escuta de tudo no seu Ipod, presente que ganhou da sua mãe quando criança. Lembra um pouco Peter Quill (Guardiões da Galáxia) com o seu toca-fitas, já que ambos são viciados em música e guardam no seu tocador uma representatividade afetiva. Sim, introduzir melodias de maneira harmônica torna-se uma muleta para o longa, mas não devemos negar a diversão proporcionada ao público. Aqui, “Queen” surge em momentos catárticos e equaliza bem as cenas de perseguição de carro, assim como “Hocus Pocus” (Focus) preenche os nossos ouvidos no disparar frenético de armas de fogo. 

Igualmente interessante é notar o esmero na técnica do cineasta em utilizar as cores primárias nos momentos certos, como na sequência da lavanderia, onde observamos diversas máquinas ao fundo, por detrás dos protagonistas, reservando o primeiro plano para o casal apaixonado (Baby e Debora), sentimento este representado pelas cores, todas vibrantes e quentes, quase palpável: amarela, vermelha, verde e azul cada qual em uma máquina diferente. É fato que o diretor tem estilo e o coloca à disposição do filme. Porém, o mesmo não se pode dizer do roteiro. 

Vulnerável pela utilização das convenções do gênero (“esse será meu último golpe” é o que mais me irrita), “Baby Driver” peca pelo excesso de argumentos batidos já visto em uma dúzia de produções sobre assaltos planejados e executados por uma equipe caricata. Assim, Jamie Foxx (Batts) é desperdiçado por este motivo, sobrando mais tempo de tela para John Hamm (Buddy), que por sua vez também não aproveita a oportunidade para desenvolver melhor a canastrice de sua persona. Ainda sobre o elenco, o Baby de Ansel Elgort revela certa ingenuidade e malandragem, ao mesmo tempo, caindo como uma luva para o papel principal. Kevin Spacey continua entregando o que lhe é esperado: voz, olhar e intimidação digna de um boss vilanesco, despontando uma complexidade antimaniqueísta em seu desfecho. 

Referenciando diretamente à filmografia de Quentin Tarantino ao denominar os membros da quadrilha por codinomes, além da estrutura de montagem e diálogos aleatórios/ triviais aqui e acolá, Wrigth demonstra ter bom gosto nas alusões estético-técnicas, podendo ter caprichado mais no script. Mas, felizmente, o idealizador tem êxito ao nos fazer sentir na pele os sabores e dissabores do protagonista, mais precisamente na audição, como na cena em que Bats retira o fone do ouvido esquerdo de Baby e, ao mesmo tempo, o desenho de som desliga o canal de áudio do mesmo lado. Ou como naquela em que Baby, intimamente, curte o seu som mixado por conversas alheias gravadas às escondidas. Hilário! Realmente, o espectador experimenta o universo do anti-herói. 

Ao final, apesar dos pesares, ficam as sequências alucinantes de ação e perseguição de carros e, sobretudo, a montagem diegética que funde com precisão filme e música.

*Avaliação: 4,5 pipocas + 4,0 rapaduras = nota 8,5.


terça-feira, 27 de setembro de 2022

Dica Disney Plus - ROGUE ONE: UMA HISTÓRIA STAR WARS


Por Rafael Morais

Logo no início do episódio “IV – Uma Nova Esperança” descobrimos que a princesa Leia recebe os planos de uma potente arma, construída pelo Império, capaz de exterminar planetas inteiros. Mas como a planta dessa bomba foi parar no colo da líder da rebelião? Pronto, é aí que “Rogue One – Uma História Star Wars” entra em cena como um derivado da franquia contando a história do esquadrão de rebeldes que rouba os planos da “Estrela da Morte”, se encaixando, cronologicamente, entre os episódios III e IV. Disposto a ser um capítulo à parte, o filme tenta se desvencilhar da sequência desde a introdução. Portanto, esqueça aqueles letreiros com a fonte clássica, em amarelo negrito, subindo no estilo slide up ao som da trilha de John Williams.

Desta forma, neste prelúdio, somos apresentados a Galen Erso (Mads Mikkelsen), um notável cientista forçado a trabalhar para o Império no setor bélico, tendo a sua família dizimada por não querer contribuir com este poder sombrio que derrubara a República. Com exceção da sua filha Jyn Erso (Felicity Jones), que ainda criança foge para sobreviver, se transformando em uma rebelde nata.

Recheado de personagens, o roteiro guarda nos coadjuvantes Chirrut Îmwe (Donnie Yen), Baze Malbus (Wen Jiang) e no carismático droide K-2SO o seu trunfo, já que a protagonista Jyn, vivida por Jones, não consegue cativar o espectador (pelo menos a mim). Em momento algum sentimos a dor, ou somos convencidos da motivação da heroína, apesar de estar lá. Já Diego Luna traz uma tridimensionalidade ao seu Cassian Andor, aproveitando melhor as nuances de sua persona.

Com um segundo ato inchado, o filme se arrasta por diversos planetas, mas se fixa em Saw Guerrera (o oscarizável Forest Whitaker), um rebelde extremista, que nem mesmo a Aliança o reconhece, para traçar - com muito esforço e boa vontade do público que queira enxergar esse pano de fundo - um paralelo da guerra e suas motivações com o que vivemos hoje em dia. Afinal, os terroristas são sujeitos que não reconhecem um poder ditatorial/imperial e lutam pela sua liberdade? Ou findam paranoicos deturpando os valores e cometendo atos de extrema intolerância, muitas vezes visando assumir este poder?

A linha parece tênue e dialoga com a alarmante situação atualmente, sobretudo no Oriente Médio, refletindo na América e Europa através de sucessivos atentados. Contudo, o Império em Star Wars merece ser combatido por construir, comprovadamente, uma arma de destruição em massa colocando a vida de todos em risco, já que quem discordasse dos seus objetivos seria dizimado. Ok, mas essa não era uma das desculpas utilizadas pelos Estados Unidos como subterfúgio para invadir o Iraque em 2003?!

Entretanto, voltando ao filme, temos um script bem dosado na utilização de gag’s e dos elementos dramáticos, sem o surgimento de piadas deslocadas (e tem uma de humor ácido impagável) ou dramalhão desnecessário. A fita é sobre guerra e tem ciência disso. Comovente também em momentos pontuais, o instante em que associamos o apelido carinhoso que um pai dar à sua filha (Galen à Jyn), com o nome de uma arma catastrófica, principal vilã, é de uma sutileza ímpar.

Por sua vez, o diretor Gareth Edwards captou a essência de “Guerra nas Estrelas” ao reproduzir cenários reais, animatrônicos, harmonizando com a computação gráfica clean, ao passo que respeita a essência dos personagens, em detrimento do abuso de CGI’s (computação gráfica). Aqui não tem espaço para um “Jar Jar Binks” da vida.

A verdade é que salta aos olhos os “pecados” que George Lucas cometeu nos episódios I a III. Ao desconstruir alguns mitos concebidos na trilogia clássica, como o menino Vader na pele do meigo Jake Llloyd, Lucas parece não ter se encontrado com o próprio universo que construiu: teria sido uma crise de identidade ou o interesse de caça-níquel falou mais alto?

O fato é que “Rogue One” é um prato cheio não só para os fãs do universo estendido de “Star Wars”, como também para os que conhecem apenas o básico. A ação é filmada com excelência tanto no ar (Tie Fighter’s e Aliança travam duelos épicos no espaço), quanto em terra firme (os At-At’s nunca foram tão ameaçadores e verossimilhantes). Inclusive, a batalha na praia é uma das cenas mais legais de toda a saga!

Neste quesito, a fotografia de Graig Fraser conversa com os efeitos visuais, tornando o frame a frame lindo em cada quadro. E por mais que não vejamos jedis ou lutas de sabres, há uma atmosfera instaurada que grita “Star Wars”. Sentimos a presença de Obi Wan, apenas em uma rápida menção que nem sequer cita o seu nome – o serviço ao fã é a razão de existir deste spin-off - e a “Força”, como um mantra que motiva a trupe, está lá para quem quiser sentir.

Ao final, com um terceiro ato irretocável, este corajoso título resgata a essência da trilogia clássica, revigorada por uma sequência de suspense claustrofóbica com Darth Vader no centro da ação, contribuindo ainda mais para a mitologia de um dos maiores vilões da história do Cinema.                           

*Avaliação: 4,0 pipocas + 4,5 rapaduras = nota 8,5.     


quinta-feira, 22 de setembro de 2022

Aniversariantes Memoráveis - 11 anos de A ÁRVORE DA VIDA

Malick entrega um filme que não deve ser entendido, mas, acima de tudo, sentido, contemplado.

Por Rafael Morais

Inicialmente, devo concordar que não é tarefa das mais fáceis assistir “A Árvore da Vida”. Por vários motivos. Não que o filme seja ruim, longe disso. A questão é que se trata de uma obra cinematográfica de narrativa não-linear, sob um roteiro forjado no estúdio de montagem, com quase três horas de duração.  Contudo, surpreendentemente, essa fórmula me conquistou. Comprei a ideia.

Os destaques ficam por conta da excelente atuação do elenco, a fotografia sublime do premiado Emmanuel Lubezki - em vários trechos, parece que estamos assistindo a uma exposição de obras de arte em movimento - que dialoga com a linda música de Alexandre Desplat, além de uma edição e mixagem de som impecáveis. Admito que o resultado disso tudo é fantástico! Uma verdadeira experiência que nos incursiona aos questionamentos mais intimistas que um ser humano pode ter.   

No longa, o obstáculo e o conflito, sugerido pelo excêntrico cineasta Terrence Malick, é a autoridade do pai. "Por que ele nos machuca, o nosso pai?", pergunta o jovem Jack (Hunter McCracken), o mais velho entre três irmãos de uma família texana. Talvez seja o luto pelo familiar perdido, talvez seja o rancor por não ter seguido sua vocação, mas o fato é que a educação intransigente do pai, somado à sua formação militar rígida (Brad Pitt) desfalca o primogênito até à vida adulta (quando Jack reaparece interpretado por um Sean Penn alheio aos dias de hoje).   

A culpa não é do personagem de Pitt e também não é culpa da rigidez com que se criavam filhos na década de 50. Em “A Árvore da Vida”, o próprio conceito de paternidade pressupõe o castigo. A religião e a busca por Deus são temáticas persistentes, de ponta a ponta, da epígrafe à resolução, passando por uma trilha sonora clássica. Nesse sentido, observamos como o ser humano tenta sempre obter todas as respostas em um ser superior.

Ao longo de 139 minutos, o filme nos sugere que podemos viver o lado da graça e o da natureza, complementarmente, mensagem passada de maneira subliminar através de explosões de supernovasbig bang, contemplação do universo e uma pitada de psicodelia. Enfim, trata-se de uma proposta diferente, de puro encantamento sensorial. Apenas sinta-o!

*Avaliação: 3,5 Pipocas + 5,0 Rapaduras = 8,5.


terça-feira, 20 de setembro de 2022

Disponível na Netflix - O HOMEM NAS TREVAS


Por Rafael Morais

O cineasta uruguaio Fede Alvarez despontou para os holofotes hollywoodianos com o curta “Ataque de Pânico” lançado no Youtube há 13 anos. Não demorou para Sam Raimi apresentar o novel diretor em um projeto ousado, mas que deu muito certo: regravar o cultuado “Evil Dead” (traduzido por aqui como “A Morte do Demônio”). E a aposta em Alvarez vem dando ótimos frutos: o remake se saiu bem na crítica e público ao ponto de alavancá-lo a outros trabalhos. Chegamos, assim, a este "O Homem nas Trevas" com a expectativa nas alturas. Entretanto, devido a um roteiro pífio, o resultado não atinge o nível esperado, por mais que o diretor deixe o seu “DNA esparramado” em cada frame (sim, esta expressão faz referência a uma determinada cena do filme). 

O argumento, por sua vez, é bastante simples: um grupo de jovens ladrões decide furtar a casa de um idoso, cego e reformado do exército. Segundo relatos, a vítima mora sozinha e estaria guardando em sua casa uma bolada em dinheiro vivo proveniente de uma indenização judicial. Mas o que seria um sonho se torna um pesadelo para os delinquentes quando se veem trancafiados com um sujeito repleto de mágoa, forte e raivoso, tal qual o seu cachorro. Aliás, a homenagem a "Cujo" - obra de Stephen King adaptada para home video que alegrou as minhas tardes de cine trash na infância - está explícita para quem quiser enxergar (desculpe o trocadilho novamente). 

Abraçando os clichês do gênero, que vão desde as tomadas de decisões imbecis a não dar o "tiro de misericórdia/golpe final" no vilão, entre outras, para não entregar trechos importantes do filme, Alvarez capricha mesmo é na linguagem narrativa, entregando ótimas rimas visuais. Esqueça a cafonice na cena da joaninha, por favor. Repare no plano-sequência empregado após a invasão da residência: um take sem corte capaz de situar o espectador no enorme cenário. A câmera passeia pelos cômodos entregando detalhes, armadilhas e objetos que serão essenciais no decorrer da película: revólver embaixo da cama, martelo acima da bancada, entre outros. 

Outro destaque do filme fica por conta do orgânico design e mixagem de som. Com o volume no talo, tal qual a crescente tensão, sentimos a nossa audição tão aguçada quando a de um deficiente visual. Qualquer barulhinho é captado pela técnica e introduzido nos momentos adequados, com maestria e sensibilidade, provocando a imediata sensação de angústia tanto nos personagens quanto no espectador. 

Por outro lado, esse quesito evidencia um dos buracos do pálido roteiro, já que o homem cego (sim, o vilão não tem nome), em determinados instantes, não consegue sequer notar que tem alguém bem na sua frente, enquanto em outros sente até o cheiro do chulé dos bandidos, nos fazendo concluir que o olfato do sujeito é mais apurado que sua audição. 

Falhando também na tentativa de aproximar o anti-herói do público, a obra não consegue nos fazer se importar com o desfecho da personagem feminina Rocky (Jane Levy), mesmo se utilizando de uma criança para justificar os seus fins, o que só demonstra um pretexto rasteiro para uma ladra extremamente gananciosa cometer os seus crimes. Não colou! 

Já a ambientação em Detroit combina com a atmosfera sugerida, uma vez que a cidade foi assolada pela crise financeira em 2008. E nesse propício contexto, somos apresentados ao personagem interpretado por Stephen Lang compondo um homem de físico imponente, transpirando ameaça, mesmo sem enxergar, desprovido de remorso, que teima em não abandonar o seu bairro, como fizeram os seus vizinhos. Com o senso de justiça claramente deturpado, o protagonista terá apenas na reviravolta (plot twist) o elemento capaz de colocá-lo na posição de vilão/monstro.  

Contudo, felizmente, o talento do cineasta para filmar o horror se sobressai. O gore está na medida, na linha tênue entre o escatológico, como deve ser. Observe os enquadramentos fechados nos semblantes de agonia das vítimas indefesas, bem como na utilização dos efeitos de “zoom out” e “dolly in” (truques na lente da câmera capazes de alterar o comprimento focal e distanciamento do fundo) servindo para encarcerar ainda mais os personagens, trazer senso de urgência e/ou desorientação. Hitchcock fez escola e Alvarez aprendeu direitinho!

 * Avaliação: 3,5 pipocas + 3,0 rapaduras = nota 6,5.  

    

quinta-feira, 15 de setembro de 2022

Nos Cinemas - NÃO SE PREOCUPE, QUERIDA

                                            

Por Rafael Morais

Alice (Florence Pugh) e Jack (Harry Styles) vivem em uma comunidade planejada situada na cidade experimental chamada "Victory". A localidade é um oásis no deserto que abriga os trabalhadores do ultrassecreto "Projeto Vitória" e suas famílias. Liderada pelo enigmático Frank (Chris Pine) — uma espécie de coach visionário — a comunidade utópica representa o otimismo social da década de 1950, defendido pelo CEO da empresa.

Assim, a rotina dos moradores é repisada à exaustão pela edição enfadonha: enquanto os maridos passam o dia todo no QG ("quartel general") do “Projeto”, onde trabalham com o “desenvolvimento de materiais de tecnologia de ponta”, suas esposas passam o tempo cuidando dos afazeres domésticos para receber os seus cônjuges com tudo impecável no final do dia.

A vida parece "perfeita", dentro dessa visão machista e tradicional, com as necessidades de todos os residentes atendidas pela empresa, que apenas lhes pede em troca a discrição e o compromisso incondicional com os desígnios da instituição.

Mas os conflitos dão início quando Alice se vê atormentada por flashes e sensações de algo sinistro que pode estar acontecendo. Os mistérios que envolvem o "Projeto Vitória" viram alvo de questionamentos expondo rachaduras dessa vida idílica. O que exatamente é feito lá e o porquê serão a tônica da protagonista a partir do segundo ato até o desfecho. Deste modo, saberemos o quanto Alice está disposta a perder para expor o que realmente acontece naquele "paraíso". 

E é justamente isso que muitas mulheres não fazem na “vida real” quando estão envolvidas em um relacionamento tóxico; seja por receio de represália da sociedade, seja por fazer “vista grossa” dos problemas para não deixar desmoronar o “castelo de areia”. E eu não as julgo, uma vez que expor o que está por trás da fachada e desmascarar o provedor que sustenta o mundo ideal deve ser uma tarefa árdua!

Contudo, com uma ideia audaciosa, mas que não se sustenta, "Não Se Preocupe, Querida" brilha mesmo é como um provocante thriller de suspense psicológico. Destaque para a fotografia solar - que já causa estranhamento com relação ao gênero do filme - contrastando com a escolha de uma paleta dark em sequências pontuais.

Na verdade, esse é o tipo de longa que quase tudo que for dito aqui pode comprometer sua experiência. Por este motivo, separarei um parágrafo, lá no final, indicando possíveis spoilers, já que pretendo tecer comparações com algumas obras audiovisuais que podem, pelo simples fato de mencioná-las e a depender da sua sensibilidade, entregar o plot twist.

Já o ponto baixo da produção, entre outros aspectos, fica por conta do didatismo e da repetição. Não há aqui um pressuposto de que o espectador possa compreender e raciocinar sozinho. O roteiro de Katie Silberman subestima a nossa inteligência ao nos carregar pela mão para explicar diversas vezes o mesmo conceito. Entendo que a ideia, talvez, fosse imergir o público no dia a dia da protagonista que vai ficando cada vez mais entediante com o passar do tempo.

Acompanhar a rotina de Alice até funciona para demonstrar a alienação que toma conta aos poucos. Por outro lado, isso mata o ritmo e cansa o público. Dava pra ter cortado uns vinte minutos fácil da edição no final cut. É o típico filme que se fosse apresentado ao estúdio “A24”, ao invés da “Warner”, teria sido rejeitado por não se enquadrar no perfil. Se o mistério apresentado é bom e move o conflito, por que esmiuçá-lo e desvendá-lo de maneira tão rápida e com leituras taxativas que não abrem margem à interpretação?!

Polêmicas à parte (Pugh Vs Wilde, LaBeouf Vs Wilde, Styles Vs Pine, Styles e Wilde, cusparadas, sabotagem na divulgação e fofocas) destaco a atuação do casal principal, sobretudo a Alice de Florence Pugh. A atriz está no auge da beleza e da carreira e vem brilhando em produções mais hardcore, vide "Midsommar". Entre caras e bocas, expressões faciais e corporais, Pugh seduz o espectador ao tempo em que o cativa. Torcer pela sua personagem é fácil, muito embora uma revelação no terceiro ato tente subverter um pouco as motivações ao ponto de tentar amenizar, e meio que justificar, a maldade do seu agressor. E essa leve inversão de papeis entre vítima e réu - numa clara tentativa mal sucedida de quebra de maniqueísmo - escancara uma contradição, já que o roteiro, em sua essência, tem um apelo feminista.

Em "Don't Worry Darling" o horror surge em cenas angustiantes, perturbadoras e inesperadas. É como se estivéssemos assistindo a uma fita de "possessão" ao avesso; onde a “heroína”, paulatinamente, vai sendo possuída não por um espírito maligno, mas pela realidade reveladora e aterradora. É uma película catártica, claustrofóbica e focada no duplo: mistério e descoberta, fantasia e realidade, homem e mulher.

Por fim, em que pese a crítica pelo mundo afora estar detonando o filme, ele não é esse desastre todo. Gosto da direção segura e elegante da Olivia Wilde ("Fora de Série"), da ambientação, da fotografia e das atuações. O problema, além do roteiro preguiçoso, é o ritmo arrastado até pegar no tranco. É uma produção acima da média, e só. Mas convenhamos que isso já é algo positivo diante de tanta mediocridade lançada ultimamente.

* Avaliação: 3,0 Pipocas + 4,0 Rapaduras = 7,0.

---------------------------------------------------------------

 ATENÇÃO: POSSÍVEIS SPOILERS A SEGUIR

O terceiro ato revela uma situação em que todo o contexto é exposto. Desta maneira, as referências da cineasta também pipocam na tela e na cabeça do cinéfilo. Enxerguei ali, por cima, influências de "Matrix", "Corra!", e "O Show de Truman". Sem contar a recriação de um objeto tecnológico futurista do tipo utilizado em Alex (Malcolm McDowell em "Laranja Mecânica"). O background cyberpunk distópico revela uma crítica à sociedade do coach, ao machismo e ao patriarcado. No final das contas, "Não se Preocupe, Querida" é muito "Black Mirror"!

  

terça-feira, 6 de setembro de 2022

Dica Streaming [Prime Video] - DEUS DA CARNIFICINA


"Dramédia" enfoca as complicações de um adulto: seus ressentimentos, culpas e responsabilidades.

Por Rafael Morais

* resenha escrita em setembro de 2012.

Tomando como pano de fundo um problema aparentemente banal – uma briga entre dois adolescentes - Carnage, traduzido por aqui como O Deus da Carnificina - novo trabalho do festejado cineasta Roman Polanski (“O Escritor Fantasma”, "O Bebê de Rosemary") revela, de forma cínica e dissimulada, a hipocrisia dos adultos que fingem respeitar as regras sociais, sejam elas consuetudinárias, positivadas ou naturais em prol de uma utópica civilidade, sem, para tanto, deixar de olhar somente para o próprio umbigo.

O longa-metragem é baseado no espetáculo teatral “Le Dieu du Carnage”, escrita pela francesa Yasmina Reza (que também assina o roteiro ao lado do diretor). Inclusive, a título de curiosidade, já houve algumas montagens dessa peça aqui no Brasil, e uma delas estrelada por Júlia Lemmertz, Deborah Evelyn, Paulo Betti e Orã Figueiredo.

A trama apresenta dois casais que se encontram para resolver um incidente protagonizado por seus filhos pequenos: um deles agrediu o outro em uma briga na praça. E acredite: a partir desse fato trivial, suscitarão questões das mais amplas sobre as relações humanas. A história desse quarteto, que começa com essa simples briga entre os seus filhos, termina em diálogos estressados e ironicamente divertidos, na tentativa dos pais resolverem o incidente com as crianças.

Assim, temos de um lado, os "elitizados" Allan Cowan (Christoph Waltz, “Bastardos Inglórios”), um arrogante advogado e sua esposa Nancy (Kate Winslet, “Contágio”), uma corretora de investimentos; do outro, os classe média Michael Longstreet (John C. Reilly, “Precisamos Falar Sobre o Kevin”), um vendedor de utensílios domésticos casado com Penelope (Jodie Foster, “Um Novo Despertar”), uma dona de casa que sonha em ser uma escritora.

O circo está armado a partir do momento em que os casais se encontram para conversar e "resolver" a lide. A diplomacia e cordialidade, constantes no início do embate, logo deixam de ser regras, transformando-se numa lavagem de roupa suja, à medida que as diferentes opiniões entre os personagens vêm à tona e o falso clima de harmonia se dissipa. Verdades dolorosas são ditas no transcorrer que a conversa principal - bullying – evolui para questões variadas como cultura, educação, remédios, crueldade animal e comportamento social.

O elenco está soberbo! Afiados e afinados, os atores entregam atuações irreverentes e memoráveis, ao passo que ajudam a pontuar o limite entre Teatro e Cinema, como estilos narrativos totalmente discrepantes que são. Apesar dessa diferenciação, a atmosfera teatral permeia o longa, muito por conta do cenário – toda a ação acontece no apartamento dos Longstreet – como também pela direção de arte, ao inserir objetos típicos e cotidianos dos personagens. Muito embora essas limitadas marcações de cena pudessem soar incômodas, isso não acontece, muito pelo contrário, funciona sobremaneira quando ajuda a rivalizar os personagens, cada um com os seus conflitos, inseridos naquele "campo de batalha" improvisado.

Dessa forma, Carnage - O Deus da Carnificina é um grande filme, apesar dos seus modestos e bem distribuídos 80 minutos de duração. Irônico, hilário, reflexivo e controverso, o longa alfineta e critica, até não poder mais, a sociedade pseudocivilizada que vive de aparências. Ao final, percebemos o quão complicado e repleto de culpas e ressentimentos nós, adultos, somos. 

*Avaliação: 3,5 Pipocas + 5,0 Rapaduras = 8,5.

quinta-feira, 1 de setembro de 2022

Dica Streaming [Globoplay] - TURMA DA MÔNICA: LAÇOS


Por Rafael Morais

* resenha escrita em julho de 2019

Daniel Rezende conseguiu mais uma vez. Depois de dirigir o maravilhoso “Bingo – O Rei das Manhãs”, o jovem cineasta tinha a árdua missão de adaptar em live-action um dos maiores ícones da cultura pop nacional: a Turma da Mônica. O sucesso das revistinhas em quadrinhos perdura desde o final da década de 50 até hoje, e só ascende. Maurício de Sousa, o idealizador por trás de tudo, é cultuado não só por uma legião de fãs, que cresceram lendo sua obra, como também por tantas outras gerações que herdaram esse hábito.

Mas Rezende chegou lá explorando os signos daquele universo cartunesco através de uma cinematografia apurada. Se tem algo que funciona nesse longa é a direção e o elenco, uma vez que o roteiro e a montagem deixam a desejar. O diretor domina a linguagem narrativa por meio de lindos plano-sequências (recordo de pelo menos dois) responsáveis por engrenar a misancene (jogo de cena) e dar fluidez geográfica.

Contudo, o fio de história, baseada na graphic novel "Laços" de Vitor e Lu Cafaggi, narra o desaparecimento de Floquinho, o cachorro do Cebolinha (Kevin Vechiatto). Desenvolvendo o tal “plano infalível” (piada recorrente no filme) para resgatar o seu bichinho de estimação, o menino busca a ajuda de seus fiéis amigos Mônica (Giulia Benite), Magali (Laura Rauseo) e Cascão (Gabriel Moreira). Juntos, eles passarão por aventuras e colocarão à prova os laços de amizade para levar o cão de volta para casa.

Neste contexto, a edição não ajuda o combalido scritp quando torna a jornada lenta e quase entediante. Por mais que demonstre respeito ao material original, tudo é muito contemplativo, entregando um tom de homenagem que teima em resistir até o terceiro ato. Perceba, portanto, os exageros na utilização de piadas literais, do slow motion e de close-ups focados nas principais características dos “heróis”, e o pior: esses efeitos martelam os estereótipos ao ponto de torná-los enfadonhos, entrando num looping, praticamente.

É conhecido que a Magali tem um apetite voraz; a Mônica é forte e destemida; o Cascão tem pavor à água e o Cebolinha só pensa em arquitetar planos para pegar o coelhinho Sansão da “gorduchinha dentuça”. Porém, isso é repetido à exaustão no filme, de todas as formas possíveis! O receio de arriscar ficou notório. Jogaram seguro. As situações são previsíveis e os arcos dos protagonistas restaram pouco desenvolvidos, fazendo com que a película se arraste sem se preocupar com as camadas.

Por outro lado, a turma demonstra uma química formidável captada por momentos que oscilam entre a diversão, a zoação típica da idade, mas sem esquecer o afeto na troca de empatia entre eles. O elenco mirim está afiado e justifica a demora na escolha final por parte da produção. O carisma imprescindível para o quarteto funcionar está presente. Do mesmo modo, gosto da fidelidade na caracterização do universo, desde o figurino até a arquitetura das casas no bairro do Limoeiro. Tudo remete aos gibis e enche os nossos olhos. Ponto para a caprichosa direção de arte.

Também merece destaque a participação especial de Rodrigo Santoro como o “Louco”. Trazendo uma pitada de fantasia à trama - sempre bem-vinda neste gênero – o personagem brilha ao colocar o Cebolinha pra pensar, repensar e filosofar. Neste ponto, a montagem acerta no dinamismo que falta para o restante do filme. Santoro se move com fluidez através de uma expressão corporal lúdica, condizente com a proposta. O cara recita, brinca e passeia por toda a extensão da telona, aparecendo aqui e ali, no canto, em cima e embaixo. Me senti dentro das páginas das HQ’s neste instante. Pena que ele é pouco explorado e esta sequência é breve. Às vezes, um tantinho de loucura é necessário.

Não menos fantástica, a ensolarada e saturada fotografia é orgânica ao filtrar as cores primárias para inserir o espectador no mundo pré-adolescente - a ingenuidade e a autodescoberta estão numa linha tênue e nós somos testemunhas. Assim, na mesma pegada, a ambientação é captada com maestria quando as ameaças reais e os conflitos internos se contrapõem ao tamanho dos protagonistas frente aos desafios que eles irão encarar. Note os ângulos escolhidos na enorme floresta em proporção às crianças, dando a impressão que eles serão “engolidos” por ela. A utilização de metáforas a favor do Cinema é algo sempre louvável e aqui não deixa de ser diferente.

Deste modo, entre altos e baixos, o resultado é satisfatório e deixa aquele gostinho de “quero mais”. Porém, espero que essa continuação venha mais corajosa, dinâmica e que fuja do lugar comum. E se não for pedir muito, que apareça aquele matutinho lá da Vila Abobrinha, nem que seja de relance.

* Avaliação: 4,0 Pipocas + 4,0 Rapaduras = 8,0.