Por Rafael Morais
Alice (Florence Pugh) e Jack (Harry Styles) vivem em uma comunidade planejada situada na cidade experimental chamada "Victory". A localidade é um oásis no deserto que abriga os trabalhadores do ultrassecreto "Projeto Vitória" e suas famílias. Liderada pelo enigmático Frank (Chris Pine) — uma espécie de coach visionário — a comunidade utópica representa o otimismo social da década de 1950, defendido pelo CEO da empresa.
Assim, a rotina dos moradores é repisada à exaustão pela
edição enfadonha: enquanto os maridos passam o dia todo no QG ("quartel
general") do “Projeto”, onde trabalham com o “desenvolvimento de materiais
de tecnologia de ponta”, suas esposas passam o tempo cuidando dos afazeres
domésticos para receber os seus cônjuges com tudo impecável no final do dia.
A vida parece "perfeita", dentro dessa visão machista e
tradicional, com as necessidades de todos os residentes atendidas pela empresa,
que apenas lhes pede em troca a discrição e o compromisso incondicional com os
desígnios da instituição.
Mas os conflitos dão início quando Alice se vê atormentada
por flashes e sensações de algo sinistro que pode estar acontecendo. Os
mistérios que envolvem o "Projeto Vitória" viram alvo de
questionamentos expondo rachaduras dessa vida idílica. O que exatamente é feito
lá e o porquê serão a tônica da protagonista a partir do segundo ato até o
desfecho. Deste modo, saberemos o quanto Alice está disposta a perder para
expor o que realmente acontece naquele "paraíso".
E é justamente isso que muitas mulheres não fazem na “vida
real” quando estão envolvidas em um relacionamento tóxico; seja por receio de
represália da sociedade, seja por fazer “vista grossa” dos problemas para não
deixar desmoronar o “castelo de areia”. E eu não as julgo, uma vez que expor o que está por trás da fachada e desmascarar o provedor que sustenta o mundo ideal deve ser uma tarefa árdua!
Contudo, com uma ideia audaciosa, mas que não se sustenta,
"Não Se Preocupe, Querida" brilha mesmo é como um provocante thriller
de suspense psicológico. Destaque para a fotografia solar - que já causa
estranhamento com relação ao gênero do filme - contrastando com a escolha de
uma paleta dark em sequências pontuais.
Na verdade, esse é o tipo de longa que quase tudo que for
dito aqui pode comprometer sua experiência. Por este motivo, separarei um
parágrafo, lá no final, indicando possíveis spoilers, já que pretendo
tecer comparações com algumas obras audiovisuais que podem, pelo simples fato
de mencioná-las e a depender da sua sensibilidade, entregar o plot twist.
Já o ponto baixo da produção, entre outros aspectos, fica por
conta do didatismo e da repetição. Não há aqui um pressuposto de que o
espectador possa compreender e raciocinar sozinho. O roteiro de Katie Silberman subestima a
nossa inteligência ao nos carregar pela mão para explicar diversas vezes o
mesmo conceito. Entendo que a ideia, talvez, fosse imergir o público no dia a
dia da protagonista que vai ficando cada vez mais entediante com o passar do
tempo.
Acompanhar a rotina de Alice até funciona para demonstrar a
alienação que toma conta aos poucos. Por outro lado, isso mata o ritmo e cansa
o público. Dava pra ter cortado uns vinte minutos fácil da edição no final cut.
É o típico filme que se fosse apresentado ao estúdio “A24”, ao invés da “Warner”,
teria sido rejeitado por não se enquadrar no perfil. Se o mistério apresentado
é bom e move o conflito, por que esmiuçá-lo e desvendá-lo de maneira tão rápida
e com leituras taxativas que não abrem margem à interpretação?!
Polêmicas à parte (Pugh Vs Wilde, LaBeouf Vs Wilde, Styles Vs
Pine, Styles e Wilde, cusparadas, sabotagem na divulgação e fofocas) destaco a
atuação do casal principal, sobretudo a Alice de Florence Pugh. A atriz está no
auge da beleza e da carreira e vem brilhando em produções mais hardcore,
vide "Midsommar". Entre caras e bocas, expressões faciais e
corporais, Pugh seduz o espectador ao tempo em que o cativa. Torcer pela sua
personagem é fácil, muito embora uma revelação no terceiro ato tente subverter
um pouco as motivações ao ponto de tentar amenizar, e meio que justificar, a
maldade do seu agressor. E essa leve inversão de papeis entre vítima e réu - numa clara tentativa mal sucedida de quebra de maniqueísmo - escancara uma contradição, já que o roteiro, em sua essência, tem um apelo
feminista.
Em "Don't Worry Darling" o horror surge em
cenas angustiantes, perturbadoras e inesperadas. É como se estivéssemos
assistindo a uma fita de "possessão" ao avesso; onde a “heroína”,
paulatinamente, vai sendo possuída não por um espírito maligno, mas pela
realidade reveladora e aterradora. É uma película catártica, claustrofóbica e
focada no duplo: mistério e descoberta, fantasia e realidade, homem e mulher.
Por fim, em que pese a crítica pelo mundo afora estar
detonando o filme, ele não é esse desastre todo. Gosto da direção segura e
elegante da Olivia Wilde ("Fora de Série"), da ambientação, da
fotografia e das atuações. O problema, além do roteiro preguiçoso, é o ritmo
arrastado até pegar no tranco. É uma produção acima da média, e só. Mas convenhamos que isso já
é algo positivo diante de tanta mediocridade lançada ultimamente.
* Avaliação: 3,0 Pipocas + 4,0 Rapaduras = 7,0.
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ATENÇÃO: POSSÍVEIS SPOILERS A SEGUIR
O terceiro ato revela uma situação em que todo o contexto é exposto. Desta maneira, as referências da cineasta também pipocam na tela e na cabeça do cinéfilo. Enxerguei ali, por cima, influências de "Matrix", "Corra!", e "O Show de Truman". Sem contar a recriação de um objeto tecnológico futurista do tipo utilizado em Alex (Malcolm McDowell em "Laranja Mecânica"). O background cyberpunk distópico revela uma crítica à sociedade do coach, ao machismo e ao patriarcado. No final das contas, "Não se Preocupe, Querida" é muito "Black Mirror"!