domingo, 3 de setembro de 2017

NOS CINEMAS - Bingo: O Rei das Manhãs

Por Rafael Morais
03 de setembro de 2017

Quem viveu os anos 80 entende a definição de politicamente incorreto. Programas “infantis” matinais, extremamente divertidos e nonsense, tomavam as nossas manhãs de assalto, ao passo que concebia uma geração desprovida de “mi mi mi”. E em vários momentos deste “Bingo – O Rei das Manhãs”, o personagem Augusto (Vladimir Brichta), na pele do palhaço homônimo do título do filme, solta diversas frases que corroboram a identidade da minha geração: “essas crianças não são fáceis de enganar”; “o Brasil não é para iniciantes”, entre outras do gênero.

Na verdade, estamos diante da cinebiografia do famoso palhaço Bozo que teve como um de seus primeiros intérpretes o excêntrico Arlindo Barreto. Assim, por questões de ordem jurídica (direitos autorais), nomes de artistas, marcas de empresas e locais foram alterados, mas nem por isso deixamos de identificá-los em tela. A Rede Globo, o próprio protagonista, a cantora Gretchen, passando por Xuxa, bem como o SBT, tudo foi convertido em ficção. Talvez por conter DNA de filme alternativo, fora do mainstream, a “Globo Filmes” não despertou interesse em produzir o longa, em que pese abordar o backstage da cultura pop televisiva.

Neste contexto, somos apresentados à história de um jovem ator de pornochanchada que resolve enveredar pelo caminho das telenovelas, tentando se provar constantemente enquanto artista e pai, vindo a parar num set de testes para viver o palhaço Bingo (é o Bozo, você já sabe), sucesso e líder de audiência nos EUA há mais de 10 anos. Com esta sinopse relativamente simples, o roteiro consegue explorar todas as possíveis camadas de um artista em ascensão, passando pelo declínio e alcançando a redenção, quesitos obrigatórios em uma cinebiografia. Inteligente, o script explora o talento de Vladimir Brichta (o cara arrebenta!) para entregar diversas nuances de sua dupla persona. E se o protagonista é desenvolvido em tons de cinza (sem maniqueísmo), tal abordagem auxilia na identificação do espectador com os dilemas do herói (ou seria anti-herói?), uma vez que o traço de humanidade surge em momentos de falhas.

“A vida não é fácil”, esbraveja Augusto constantemente. Tentativa e erro são o mantra do protagonista durante a película. Tudo ressaltado pela frustração do artista ao não ser reconhecido nas ruas por sempre estar fantasiado em cena. Reconhecimento do público e da crítica é o que um artista almeja durante a sua carreira, para tanto, temos um belo diálogo entre Augusto e sua mãe Martha Mendes (Ana Lucia Torre), ex-atriz encostada na “geladeira” da emissora Mundial (Globo), sobre a metáfora da necessidade da luz. Enquanto iluminados, eles brilham e fazem a alegria; uma vez apagados, só resta saudade e tristeza. Assim, os objetos de cena dialogam com os atores, como o quadro com a imagem da atriz em tempos áureos, banhado por uma iluminação indireta, que se apaga abruptamente após o desfecho da conversa. Genial!

Mergulhando o set de gravações do programa em cores vivas, alegres, ressaltada na fantasia de seu apresentador, a fotografia brinca com a dualidade sempre que contrapõe com outra paleta dark, fria e densa nos instantes em que o personagem não está na pele de seu alter ego. Ressaltando esta ideia, perceba também o contraste dos figurinos, e o caprichado trabalho da direção de arte, na cena em que Augusto vai jantar com Lúcia (a sempre formidável Leandra Leal), produtora do programa de TV: de um lado temos um sujeito despojado vestindo uma jaqueta preta, bebendo vinho e à sua frente uma sobremesa de chocolate; de outro, temos uma mulher recatada em vestimentas de cores claras - e o verde sempre impera em Lúcia simbolizando a esperança de Augusto - cabelos sempre presos, ingerindo água, condizente com a sua sobremesa de creme e frutas coloridas. Deste modo, a simbologia auxilia harmonicamente à narrativa proposta.

E o que dizer da trilha sonora escolhida? Supla, Titãs, Roupa Nova, Ritchie, entre outros, evocam o período narrado.

Não menos espetacular, a direção do estreante Daniel Rezende (exímio montador responsável pela edição de Cidade de Deus, por exemplo) não deixa o filme cair num dramalhão ou se deixar levar pela saudosa cafonice da época, muito menos se perder na nostalgia. O cineasta sabe da importância do tema, pesando a mão no drama em momentos pontuais, sem esquecer o tom da comédia ácida, certeira, em outros. Neste sentido, é magnífica a sequência em que Bingo entra em cena, ao vivo, após ter consumido bastante cocaína, ocasião em que o seu nariz começa a sangrar e pingar no chão do “picadeiro”. Perceba que a sua vida desordeira culmina no esvaziamento das relações afetivas e profissionais, guardando uma metáfora no derramamento do sangue.  Rezende tem consciência dos elementos narrativos que plantou e sabe a hora de utilizá-los ao seu favor. O nariz do palhaço guarda diversos significados, na medida em que representa um essencial artifício de ligação entre pai e filho, relação tão bem abordada durante os três atos do filme.

Concebendo planos longos e planos-sequência inspiradores, o idealizador carrega o espectador pelo braço viajando pelo túnel do tempo, demonstrando acertos também na escolha do elenco, que conta ainda com uma emocionante participação do ator Domingos Montagner, falecido precocemente em 2016.

Representando tão bem o lema do blog, “Bingo – O Rei das Manhãs” mescla entretenimento com conteúdo (“pipoca para entreter, rapadura para enriquecer”), já se tornando um dos meus filmes favoritos de 2017.

*Avaliação: 5 pipocas + 5 rapaduras = nota 10,0.


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