Por Rafael Morais
03 de setembro de 2017
Quem viveu os anos 80 entende a definição de politicamente
incorreto. Programas “infantis” matinais, extremamente divertidos e nonsense, tomavam as nossas manhãs de
assalto, ao passo que concebia uma geração desprovida de “mi mi mi”. E em
vários momentos deste “Bingo – O Rei das Manhãs”, o personagem Augusto
(Vladimir Brichta), na pele do palhaço homônimo do título do filme, solta
diversas frases que corroboram a identidade da minha geração: “essas crianças
não são fáceis de enganar”; “o Brasil não é para iniciantes”, entre outras do
gênero.
Na verdade, estamos diante da cinebiografia do famoso palhaço
Bozo que teve como um de seus primeiros intérpretes o excêntrico Arlindo
Barreto. Assim, por questões de ordem jurídica (direitos autorais), nomes de
artistas, marcas de empresas e locais foram alterados, mas nem por isso
deixamos de identificá-los em tela. A Rede Globo, o próprio protagonista, a cantora
Gretchen, passando por Xuxa, bem como o SBT, tudo foi convertido em ficção. Talvez
por conter DNA de filme alternativo, fora do mainstream, a “Globo Filmes” não despertou interesse em produzir o
longa, em que pese abordar o backstage
da cultura pop televisiva.
Neste contexto, somos apresentados à história de um jovem ator
de pornochanchada que resolve enveredar pelo caminho das telenovelas, tentando
se provar constantemente enquanto artista e pai, vindo a parar num set de testes
para viver o palhaço Bingo (é o Bozo, você já sabe), sucesso e líder de
audiência nos EUA há mais de 10 anos. Com esta sinopse relativamente simples, o
roteiro consegue explorar todas as possíveis camadas de um artista em ascensão,
passando pelo declínio e alcançando a redenção, quesitos obrigatórios em uma
cinebiografia. Inteligente, o script explora o talento de Vladimir Brichta (o
cara arrebenta!) para entregar diversas nuances de sua dupla persona. E se o
protagonista é desenvolvido em tons de cinza (sem maniqueísmo), tal abordagem
auxilia na identificação do espectador com os dilemas do herói (ou seria
anti-herói?), uma vez que o traço de humanidade surge em momentos de falhas.
“A vida não é fácil”, esbraveja Augusto constantemente.
Tentativa e erro são o mantra do protagonista durante a película. Tudo
ressaltado pela frustração do artista ao não ser reconhecido nas ruas por
sempre estar fantasiado em cena. Reconhecimento do público e da crítica é o que
um artista almeja durante a sua carreira, para tanto, temos um belo diálogo
entre Augusto e sua mãe Martha Mendes (Ana Lucia Torre), ex-atriz encostada na “geladeira”
da emissora Mundial (Globo), sobre a metáfora da necessidade da luz. Enquanto
iluminados, eles brilham e fazem a alegria; uma vez apagados, só resta saudade
e tristeza. Assim, os objetos de cena dialogam com os atores, como o quadro com
a imagem da atriz em tempos áureos, banhado por uma iluminação indireta, que se
apaga abruptamente após o desfecho da conversa. Genial!
Mergulhando o set de gravações do programa em cores vivas,
alegres, ressaltada na fantasia de seu apresentador, a fotografia brinca com a
dualidade sempre que contrapõe com outra paleta dark, fria e densa nos instantes em que o personagem não está na
pele de seu alter ego. Ressaltando esta ideia, perceba também o contraste dos
figurinos, e o caprichado trabalho da direção de arte, na cena em que Augusto
vai jantar com Lúcia (a sempre formidável Leandra Leal), produtora do programa
de TV: de um lado temos um sujeito despojado vestindo uma jaqueta preta,
bebendo vinho e à sua frente uma sobremesa de chocolate; de outro, temos uma
mulher recatada em vestimentas de cores claras - e o verde sempre impera em
Lúcia simbolizando a esperança de Augusto - cabelos sempre presos, ingerindo
água, condizente com a sua sobremesa de creme e frutas coloridas. Deste modo, a
simbologia auxilia harmonicamente à narrativa proposta.
E o que dizer da trilha sonora escolhida? Supla, Titãs, Roupa
Nova, Ritchie, entre outros, evocam o período narrado.
Não menos espetacular, a direção do estreante Daniel Rezende
(exímio montador responsável pela edição de Cidade de Deus, por exemplo) não
deixa o filme cair num dramalhão ou se deixar levar pela saudosa cafonice da época,
muito menos se perder na nostalgia. O cineasta sabe da importância do tema,
pesando a mão no drama em momentos pontuais, sem esquecer o tom da comédia
ácida, certeira, em outros. Neste sentido, é magnífica a sequência em que Bingo
entra em cena, ao vivo, após ter consumido bastante cocaína, ocasião em que o
seu nariz começa a sangrar e pingar no chão do “picadeiro”. Perceba que a sua
vida desordeira culmina no esvaziamento das relações afetivas e profissionais,
guardando uma metáfora no derramamento do sangue. Rezende tem consciência dos elementos
narrativos que plantou e sabe a hora de utilizá-los ao seu favor. O nariz do
palhaço guarda diversos significados, na medida em que representa um essencial artifício
de ligação entre pai e filho, relação tão bem abordada durante os três atos do
filme.
Concebendo planos longos e planos-sequência inspiradores, o
idealizador carrega o espectador pelo braço viajando pelo túnel do tempo,
demonstrando acertos também na escolha do elenco, que conta ainda com uma emocionante
participação do ator Domingos Montagner, falecido precocemente em 2016.
Representando tão bem o lema do blog, “Bingo – O Rei das
Manhãs” mescla entretenimento com conteúdo (“pipoca para entreter, rapadura
para enriquecer”), já se tornando um dos meus filmes favoritos de 2017.
*Avaliação: 5 pipocas + 5 rapaduras = nota 10,0.