Por Rafael Morais
30 anos após os acontecimentos do primeiro longa, a
Los Angeles distópica do visionário Ridley Scott continua ácida, sombria e
repleta de espécimes dos mais diversos tipos. Nesta aguardada sequência do clássico
cult, a direção ficou por conta do
inspirado, e em ascensão, Dennis Villeneuve, enquanto que Scott cuidou da produção.
E o cara não deixou a desejar. Com a difícil missão de mexer no “vespeiro” que
é um filme icônico do nostálgico anos 80, Villeneuve sabia que para não cair
numa "armadilha" o certo seria respeitar o que já foi realizado,
expandir o universo e apresentar novos personagens. E foi exatamente isso que
ele fez.
Como o próprio título diz, estamos no ano de 2049 e
os replicantes da geração passada são caçados e "aposentados"
compulsoriamente para dar espaço aos novos modelos. Neste contexto, conhecemos
o policial K/Joe (Ryan Gosling), o novo oficial caçador de androides. Envolto
numa trama típica de noir, o agente
deve enfrentar uma perigosa investigação em busca da verdade por trás do
mistério acerca do surgimento de uma “ossada” reveladora, durante uma side quest logo no prólogo.
Preocupado em não
estragar o mistério que rodeia o inteligente script escrito por Michael Glenn e
Hampton Fancher, este texto não esmiuçará o filme, portanto, está livre de
spoilers. Deste modo, importante valorizar aqui o minucioso trabalho de
fotografia do mestre Roger Deakins, capaz de situar o espectador no tempo e
espaço, captar a alma cyberpunk do seu antecessor e reproduzir enquadramentos
contemplativos e, simultaneamente, reveladores. E o estilo gráfico de lutas e/ou
diálogos em contraluz são um dos meus favoritos. Perceba também a paleta de
cores utilizada que se harmoniza com a premissa: a cor laranja para ambientes
tomados por radiação, o azul e vermelho neons para a cidade hightech
pós-apocalíptica (blecaute, como eles chamam) e o cinza dessaturado para regiões
interioranas, não menos devastadas.
E por falar em metrópole,
a utilização de planos aéreos, já característica do cineasta - quem já leu algum
outro texto que escrevi sobre a filmografia de Villeneuve perceberá a
recorrência dessa técnica, ao tempo em que notará que sou um grande fã de suas
obras – situa o espectador na atmosfera claustrofóbica de uma cidade suja e sem
vida, em todos os sentidos, e refém da tecnologia, quando enclausura seus moradores
em blocos de concretos que, vistos de cima, lembram compactações de lixo ou
tralhas, mas que servem ali para amealhar vidas. E não é à toa o massivo emprego
de holografia, como se a dura realidade não bastasse e o que era bom já passou,
agora virtual, o que traz um tom de nostalgia à ambientação.
E o mérito para esse “Blade
Runner 2049” funcionar, além de seu roteiro redondo, se deve também à
habilidade de Villeneuve em construir o clímax, paulatinamente, sem pressa
alguma, utilizando planos detalhes e longos, com poucos cortes (o que era pra
tornar entediante, já que foge dos padrões de blockbuster’s hollywoodianos repleto
de cortes frenéticos para facilitar o consumo expresso) imergindo o público ao
ponto de não nos fazer cansar, muito menos sentir as mais de duas horas de
projeção. Assim, a espetacular trilha sonora do genial Hans Zimmer acrescenta à
linguagem narrativa proposta quando ganha um crescente de tensão. Notas de suspense
nas entrelinhas dos agudos distorcidos; toques monofônicos de uma sociedade
refém da tecnologia; distopia em forma de notas musicais graves: assim é a
composição de Zimmer.
O elenco, por sua vez,
também merece destaque. Harrison Ford, surpreendentemente, apresenta novas
camadas ao seu velho e bom Deckard entregando uma de suas melhores performances
em tempos. Ryan Gosling (K/Joe) e Ana de Armas (Joi) distribuem carisma e fazem
com que nos importemos com o final do casal. Sylvia Hoeks (Luv) como a capanga
de Wallace (Jared Leto em uma atuação inesperadamente contida) é performática e
expressiva ao ponto de nos passar senso de perigo/urgência durante suas ações.
PENSO, LOGO EXISTO...
Blade Runner 2049 aborda
conceitos de inteligência artificial e orgânica, os dois lados da mesma moeda,
consegue ser visceral na sua ação, muito mais voltada para o existencialismo
filosófico dos seres que se embatem, do que nos conflitos do músculo, das
explosões ou da profusão de sangue. Estamos diante de um filme obrigatório não
só para os fãs do gênero de ficção científica, mas para quem gosta de cinema. Uma
verdadeira experiência cinematográfica que nos faz sair da sala pensando, o que
já é um diferencial para a maioria das produções atuais.
*Avaliação: 5 pipocas + 5
rapaduras = nota 10,0.