Em “Viva: A Vida é uma Festa”, a Pixar escolheu o México como cenário para nos apresentar uma emocionante história ambientada no tradicional feriado do Dia dos Mortos. A narrativa toma corpo quando o garoto Miguel tenta a aprovação e o apoio de sua família para ser músico, mas sofre tendo em vista traumas do passado.
Interessante destacar a diversidade cultural, de raça, credo e cor que uma produção americana como esta resolveu apostar, acertadamente, todas as suas fichas. Talvez uma forma de criticar o Presidente que tinha à época?! Vide a campanha política de Trump quanto à questão do muro para segregar o México dos EUA e toda sua retórica acerca dos imigrantes. Uma obra desse nível não visa apenas entreter, mas colocar o dedo na ferida de forma artística e suave.
Assim, durante a jornada de Miguel em busca de reconhecimento/benção, a inventividade - marca característica do estúdio - toma conta do filme, sobretudo quando conhecemos o mundo dos mortos pela perspectiva de um vivo. Nada escapa aos olhos atentos da dupla de diretores Lee Unkrich e Adrian Molina, inclusive quando demonstram ter referência de George A. Romero (A Noite dos Mortos-Vivos) na sequência do cemitério.
Não menos fantástica, a direção de arte deita e rola na construção do universo místico, conferindo detalhes na customização dos espectros que ali habitam, desde os cômodos das residências até os figurinos utilizados. Nada é escolhido por acaso, tudo passa uma mensagem através dos simbolismos.
Perceba, por exemplo, os falecidos que são esquecidos pelos familiares, ocasião em que no feriado de finados não lhe rendem uma homenagem sequer, como uma foto exposta em forma de oferenda. Nada. Estes são retratados pela película como marginalizados, desprezados, residindo em verdadeiras favelas, vestindo trapos e debilitados de “saúde”. Até os dentes amarelados, e por vezes ausentes, denotam ainda mais esta comparação de total desprezo.
Enquanto lá, no mundo espiritual, ser lembrado é tudo o que importa para quem “já partiu dessa”; aqui, alguns seres humanos são abandonados em vida. Em contrapartida, os que são recordados costumeiramente, até idolatrados, vivem em palácios e mansões suntuosas. Observem os adornos dourados, a abundância de comida, bebida e presentes localizados no palacete do famoso músico Ernesto dela Cruz (uma espécie de Roberto Carlos), contrapondo o único cômodo do barraco onde vive um senhor esquecido pela família, dormindo em uma rede velha, suja e rasgada. A dualidade do “festejado x abandonado” perpassa pelo conceito de memória. Evocar o legado de quem já fez sua passagem é a chave para a prosperidade mística.
Genial, a animação transborda emoção e consegue transformar esqueletos em seres animados dotados de carisma sem necessariamente flertar com o gótico, já que faz uso de uma paleta de cores vivas e intensas para retratar a relação entre os vivos e os mortos. Na sessão que assisti, vale ressaltar, as crianças não sentiam medo nem desconforto com a caracterização esquelética das personas, pelo contrário. Encantadoramente coloridos, os guias espirituais são uma atração à parte ao tempo em que revelam como a produção entrou de corpo e alma, literalmente, nos meandros de uma cultura diversa.
Visualmente impecável, há um notório aprimoramento na forma de animar seres e objetos. São impressionantes os detalhes da água, como sua curvatura, cristalinidade e efeito; sem falar no balançar dos cabelos, sempre em evolução nas mãos dos animadores; o que dizer então da textura, quase palpável, aplicada no rosto enrugado de uma idosa ou no prazer emitido pela criança ao tocar o seu violão, sentindo a música e passando ao público toda a carga emocional que uma canção pode despertar na memória de quem a escuta.
Igualmente cativante, a trilha sonora embala o filme e impregna nas nossas cabeças, por vezes precipitando em forma de lágrimas, quase inevitáveis, dando a pseudossensação que já conhecíamos aqueles acordes há um bom tempo.
Por fim, se somos feitos de memórias e se os “mortos” só realmente se vão quando deixamos de lembrá-los ou homenageá-los, de uma coisa tenho certeza: esta obra-prima da Pixar representa uma ode à família e estará sempre presente em minhas lembranças de cinéfilo, certamente na prateleira dos filmes especiais, assim como a reminiscência dos meus entes queridos que já se foram. Logo, se depender de mim, estes jamais morrerão...
*Avaliação: 5,0 pipocas + 5,0 rapaduras = nota 10,0.