terça-feira, 18 de janeiro de 2022

Dica Amazon Prime Video - O Regresso

 

Por Rafael Morais

Em um determinado momento de "O Regresso", um índio surge com uma placa nos seguintes dizeres: "somos todos selvagens". E é nesta máxima que o cineasta Iñárritu (Birdman) encontra refúgio, buscando uma abordagem visceral desde o início da projeção. Assim, somos arrebatados, logo no princípio da película, com um belo e longo plano-sequência (que já virou marca registrada do diretor) capaz de nos ambientar naquele universo proposto através de uma sangrenta batalha entre índios e brancos.

Baseada em fatos, a história data de 1822 quando Hugh Glass (Leonardo DiCaprio) parte para o oeste americano disposto a ganhar dinheiro caçando. Atacado por um urso, o protagonista fica seriamente ferido e é abandonado à própria sorte pelo parceiro John Fitzgerald (Tom Hardy), que ainda rouba seus pertences. Entretanto, mesmo com toda adversidade, Glass consegue sobreviver e inicia uma árdua jornada em busca de vingança.

Contudo, para narrar esta premissa, Iñárritu e o roteirista Mark L. Smith se valem de algumas licenças poéticas para adaptar ao filme um roteiro já derivado de parte de um livro, inserindo ou retirando meias verdades, como o fato do filho de Glass, na verdade, não ter participado da expedição, o que foi modificado com o fito de trazer um personagem motivador/impulsionador na trajetória do pai em busca de sua vendeta.

Visualmente impecável, o filme traz uma fotografia irretocável do mestre Emmanuel Lubezki, responsável por obra como “Árvore da Vida”, por exemplo. E não é à toa que em algumas cenas, como nas passagens de tempo (raccords), no enquadramento das paisagens, na arte de filmar um “tempo morto”, tudo isso nos remete, inevitavelmente, à filmografia de Terrence Mallick, parceiro habitual do fotógrafo. Aqui, Lubezki não se utiliza de luz artificial, apenas da natural, o que acaba se harmonizando com a proposta do longa: a natureza como princípio, meio e fim de tudo; o homem enquanto lobo do próprio homem (ou seria urso? rsrsrs).

E por falar nisso, a já famosa sequência, também sem corte aparente, do ataque do urso a Glass mistura efeitos digitais com práticos - e confesso que não consigo distinguir onde começa um e termina o outro. Graças também à esplêndida performance de DiCaprio. O ator entrega uma atuação forte, de método, sem deixar de ser autoral, carregando nas expressões física e corporal a fórmula para os prêmios conquistados. Durante os momentos mais enervantes, que exigiram bastante, o ator mergulha no personagem ao ponto de atuar basicamente com expressivos olhares, sem necessariamente verbalizar ou mastigar tudo aquilo que sente. Durante as gravações, DiCaprio enfrentou o frio, comeu fígado cru, perdeu peso, enfim, tudo que Hollywood/Oscar adora para premiar. Justiça seja feita: o ator já merecia ganhar a "carequinha dourada" desde “O Lobo de Wall Street”.

Já a trilha sonora, embora fria, não chama atenção para si, sabe silenciar nas horas certas, se utilizando de elementos sonoros diegéticos (sons que fazem parte naturalmente do ambiente) para compor um som baseado em respirações, batimentos cardíacos, tambores de índios, entre outros. Nenhuma novidade para o gênero, o que torna este quesito um dos mais fracos, tecnicamente, pela ausência de criatividade para sair do clichê. Não que a captura dos sons seja ruim. Pelo contrário! A mixagem e desenho do som são impecáveis, e isso não se deve ser confundido com a trilha sonora.

O elenco, por sua vez, merece destaque quando temos um Tom Hardy excepcional na pele de um sujeito inescrupuloso, animalesco e não menos humano por tudo isso. Com os ideais/objetivos deturpados, o Fitzgerald de Hardy também tem os seus medos, fazendo um contraponto ideal ao do protagonista. Sem contar com a ótima presença em cena de Domhnall Gleeson. O seu capitão Bridger surge como um homem íntegro no meio do caos. Mérito também para o modo com que o diretor insere o espectador na história, nos colocando diretamente lá como testemunha, espécie de álibi daqueles animais racionais, que não deixam de ser nossos pares, afinal de contas.

E a “quebra da quarta parede” (quando o personagem olha ou interage diretamente com o público) retrata bem isso. Aproximar com closes e enquadrar os personagens de forma fechada denotam acertos na construção da linguagem narrativa proposta, além de enclausurá-los, apesar das imensas florestas que os cercam. A natureza, aliás, é retratada em “O Regresso” como uma força maior avassaladora, capaz de causar arrepios com suas gigantescas árvores cerradas balançando ao som de ventos uivantes, que observadas de baixo para cima oprimem e encurralam os meros seres que ali transitam.

Tudo isso torna “O Regresso” uma experiência sensorial incrível; e quem assistiu no formato IMAX, assim como eu, teve um grande privilégio. Por fim, seja pelo respingo de sangue que gruda na lente durante uma luta, seja pelo respiro ofegante do protagonista, embaçando a mesma: sim, somos todos selvagens!

*Avaliação: 5,0 pipocas + 5,0 rapaduras = 10

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