sexta-feira, 28 de janeiro de 2022

Dica Amazon Prime Video - ATÉ O ÚLTIMO HOMEM

Por Rafael Morais

Imagine um homem se alistar no exército americano, em plena segunda guerra mundial, com o intuito puro e simples de salvar o seu próximo. Em “Até o Último Homem” acompanhamos a trajetória, baseada em fatos, de Desmond Doss (na pele de Andrew Garfield), um religioso adventista que decide servir à sua pátria como médico no front de batalha, mas deixando clara a sua intenção de não tocar em uma arma sequer. Considerado como um dos maiores heróis de guerra dos Estados Unidos, Doss salvou mais de setenta e cinco soldados durante os sangrentos confrontos ocorridos em Okinawa. 

Com Mel Gibson na direção (indicado ao Oscar por este trabalho), identifica-se o DNA do cineasta apenas da segunda metade da projeção em diante. A obsessão por cenas gores, ultraviolência e temas sagrados: está tudo lá.  

Isto porque o filme tem ao todo cento e trinta e nove minutos de duração, mas resguarda os sessenta e nove primeiros na construção do protagonista, e tudo que lhe cerca; enquanto que nos setenta minutos restantes é reservado para mostrar o combate em si. Apesar de importante, a apresentação dos ideais do herói pacifista que se alista para lutar - oferecendo razões plausíveis para entendermos a sua motivação, bem como a sua relação com a família - os dois primeiros atos se arrastam demasiadamente para chegar naquilo que o público espera de Gibson.

Mas o cineasta entrega, como sempre entregou, e supera as expectativas. É admirável notar a visceralidade do diretor em rodar cenas de violência extrema com a mesma precisão com que confere leveza e calmaria em outras. E essa divisão no tom da história só reforça o talento do idealizador. Perceba, por exemplo, nas diversas sequências onde cabeças são estouradas e entranhas vazam de corpos, sem cerimônia, a crueza na condução de Gibson. 

Por outro lado, vemos a sua sensibilidade em enquadrar Doss como um sujeito grandioso, abençoado, diferenciado naquela guerra. E os planos em contra-plongée reforçam essa ideia (ângulo de baixo pra cima). Assim, o momento em que o soldado faz uma oração para o grupo, segurando sua pequena e inseparável bíblia, antes de mais um enfrentamento, retrata bem essa estética. Sem contar na elevação do protagonista, em dado instante apoteótico. As leituras bíblicas estão lá para quem quiser enxergar, como na passagem em que Doss “cura a cegueira” de um colega. 

No que diz respeito à escolha do elenco, Vince Vaughn não convence como sargento, emulando (ou seria homenageando?) aquele comandante hostil clássico visto em “Nascido Para Matar”, concebido por R. Lee Ermey, o que não é uma má referência. Não menos alusivo, “O Resgate do Soldado Ryan” também é sentido aqui. “Até o Último Homem” bebe na fonte de Spielberg ao inserir o espectador dentro do battlefield, entrincheirados como os combatentes. Já a decisão de trazer Garfield para o papel principal também foi certeira! O ator convence pelo olhar compassivo, pela voz baixa, tranquila e insegura, contrapondo com as suas corajosas atitudes no front

Fugindo de clichês de filmes do gênero, Gibson usa aqui e ali uma trilha sonora mais clássica, heroica, deixando por conta dos gritos de dor, tiros e explosões a composição diegética dos sons. O fato é que a biografia desse soldado é tão inverossímil que o roteiro de Robert Schenkkan e Andrew Knight tiveram que cortar algumas partes que aconteceram na vida real por serem extravagantes para a ficção. Nesse contexto, quando ao final do longa surgem os verdadeiros heróis contando e ratificando tudo o que foi visto, constatamos que realmente a arte imitou a vida. 

*Avaliação: 4,0 pipocas + 5,0 rapaduras = 9,0.

quinta-feira, 27 de janeiro de 2022

Dica Netflix – BLADE RUNNER 2049


Por Rafael Morais

Trinta anos após os acontecimentos do primeiro longa, a Los Angeles distópica do visionário Ridley Scott continua ácida, sombria e repleta de espécimes dos mais diversos tipos. Nesta aguardada sequência do clássico cult, a direção ficou por conta do inspirado, e em ascensão, Dennis Villeneuve, enquanto que Scott cuidou da produção.

E o cara não deixou a desejar. Com a difícil missão de mexer no “vespeiro” que é um filme icônico do nostálgico anos 80, Villeneuve sabia que para não cair numa "armadilha" o certo seria respeitar o que já foi realizado, expandir o universo e apresentar novos personagens. E foi exatamente isso que ele fez.

Como o próprio título diz, estamos no ano de 2049 e os replicantes da geração passada são caçados e "aposentados" compulsoriamente para dar espaço aos novos modelos. Neste contexto, conhecemos o policial K/Joe (Ryan Gosling), o novo oficial caçador de androides. Envolto numa trama típica de noir, o agente deve enfrentar uma perigosa investigação em busca da verdade por trás do mistério acerca do surgimento de uma “ossada” reveladora, durante uma side quest logo no prólogo.

Preocupado em não arruinar o mistério que rodeia o inteligente script escrito por Michael Glenn e Hampton Fancher, este texto não esmiuçará o filme, portanto, está livre de spoilers. Deste modo, importante valorizar aqui o minucioso trabalho de fotografia do mestre Roger Deakins, capaz de situar o espectador no tempo e espaço, captar a alma cyberpunk do seu antecessor, reproduzir enquadramentos contemplativos e, simultaneamente, reveladores. E o estilo gráfico de lutas e/ou diálogos em contraluz são um dos meus favoritos.

Perceba também a paleta de cores utilizada que se harmoniza com a premissa: a cor laranja para ambientes tomados por radiação, o azul e vermelho neons para a cidade hightech pós-apocalíptica (blecaute, como eles chamam) e o cinza dessaturado para regiões interioranas, não menos devastadas.

E por falar em metrópole, a utilização de planos aéreos, já característica do cineasta - quem já leu algum outro texto que escrevi sobre a filmografia de Villeneuve perceberá a recorrência dessa técnica, ao tempo em que notará que sou um grande fã de suas obras – nos situa na atmosfera claustrofóbica de uma cidade suja e sem vida, em todos os sentidos, e refém da tecnologia, quando enclausura seus moradores em blocos de concretos que, vistos de cima, lembram compactações de lixo ou tralhas, mas que servem ali para amealhar vidas. E não é à toa o massivo emprego de holografia, como se a dura realidade não bastasse e o que era bom já passou. A vida está mergulhada no virtual, o que traz um tom de nostalgia à ambientação.

E o mérito para esse “Blade Runner 2049” funcionar, além de seu roteiro redondo, se deve também à habilidade de Villeneuve em construir o clímax, paulatinamente, sem pressa alguma, utilizando planos detalhes e longos, com poucos cortes (o que era pra tornar entediante, já que foge dos padrões de blockbuster’s hollywoodianos repleto de cortes frenéticos para facilitar o consumo expresso) imergindo o público ao ponto de não nos fazer cansar, muito menos sentir as mais de duas horas de projeção.

Assim, a espetacular trilha sonora do genial Hans Zimmer acrescenta à linguagem narrativa proposta quando ganha um crescente de tensão. Notas de suspense nas entrelinhas dos agudos distorcidos; toques monofônicos de uma sociedade refém da artificialidade; distopia em forma de notas musicais graves: assim é a composição de Zimmer.

O elenco, por sua vez, também merece destaque. Harrison Ford, surpreendentemente, apresenta novas camadas ao seu velho e bom Deckard entregando uma de suas melhores performances em tempos. Ryan Gosling (K/Joe) e Ana de Armas (Joi) distribuem carisma e fazem com que nos importemos com o final do casal. Sylvia Hoeks (Luv) como a capanga de Wallace (Jared Leto em uma atuação inesperadamente contida) é performática e expressiva ao ponto de nos passar senso de perigo/urgência durante suas ações.

PENSO, LOGO EXISTO...

"Blade Runner 2049" aborda conceitos de inteligência artificial e orgânica, os dois lados da mesma moeda, consegue ser visceral na sua ação, muito mais voltada para o existencialismo filosófico dos seres que se embatem, do que nos conflitos do músculo, das explosões ou da profusão de sangue. Estamos diante de um filme obrigatório não só para os fãs do gênero de ficção científica, mas para quem gosta de Cinema. Uma verdadeira experiência cinematográfica que nos faz sair da sala pensando, o que já é um diferencial para a maioria das produções atuais.

*Avaliação: 5,0 pipocas + 5,0 rapaduras = 10.

quarta-feira, 26 de janeiro de 2022

Aniversariantes Memoráveis - 32 anos de OS BONS COMPANHEIROS

 A máfia sob a genial perspectiva de Scorsese.

Por Rafael Morais

Francis Ford Coppola elevou os filmes de máfia a um patamar impressionante com a saga da família Corleone na trilogia "O Poderoso Chefão". Partindo dessa premissa, o que vimos foram sucessivas produções sobre o tema, embora nenhuma alcançasse o nível cinematográfico da icônica trilogia.

No entanto, surpreendentemente, no ano de lançamento do terceiro filme da saga do "Padrinho", o cineasta ítalo-americano Martin Scorsese entrega um filme do gênero, mas com o seu olhar peculiar. Como de costume, na filmografia do diretor (agora renomado) o reconhecimento como obra-prima demorou a acontecer. Hoje ninguém duvida que "Os Bons Companheiros" é um jovem clássico!

Enquanto Coppola trabalha com um registro romantizado, nostálgico e bastante estilizado, Scorsese é muito mais dinâmico, brutal e realista. E põe realismo nisso, pois, logo na sequência de abertura, já começamos seguindo os três amigos mafiosos (DeNiro, Ray Liotta e Joe Pesci) levando uma vítima que se debate no porta-malas, onde, segundos depois, viria a ser executada a sangue frio. Tudo sem remorso, sem cerimônia, simples assim.  

Para Scorsese, o mafioso, dentre outras características, é aquele sujeito que não se submete às atividades triviais de um cidadão comum. E isso fica claro no arco do personagem de Liotta.

Tecnicamente, o cineasta é impecável na condução da narrativa seja pela montagem dinâmica, que não deixa a história descansar, seja pelo esmero em cada take. É perceptível que os storyboards foram fielmente seguidos na configuração das cenas.

Observe, por exemplo, os belos planos-sequências nas cenas da boate, perpassando todas as figuras envolvidas na trama, pormenorizando o meio/ o habitat daqueles "poderosos" homens. E por falar em boates ("funny how?!", é impossível não lembrar essa fala), destaque para a iluminação, figurino e direção de arte soberbos. 

É Cinema na essência. Observe a cena em que Henry esmurra um sujeito desferindo várias coronhadas no rosto: note que a câmera filma tudo estaticamente nos inserindo como verdadeiros testemunhas voyeurs daquelas atrocidades. Quando assistimos ao filme, percebemos que estamos nas mãos de um mestre.

Baseado em Wise Guys, livro-reportagem de Nicholas Pileggi sobre personagens reais, o filme faz uma espécie de painel da história americana em quase 30 anos através da trajetória do mafioso Henry Hill (Ray Liotta). Ainda garoto, ele se junta à máfia e passa a crescer na organização trabalhando para o chefão do bairro e tornando-se amigo dos "bons companheiros" Jimmy (Robert De Niro) e Tommy (Joe Pesci). É a inserção do anti-herói no mundo dos mafiosos. A partir daí, o que se vê é puro virtuosismo cinematográfico de Scorsese.

A narrativa em off de Henry Hill (Ray Liotta), conversando em tom coloquial com o espectador, é sonoramente primorosa. Aliás, Liotta dá um show de interpretação. À época, o ator enxergou no papel a chance de entrar de vez em Hollywood, em que pese já ter participado do ótimo "Campo dos Sonhos", mas que não havia ganhado tantos holofotes quanto deveria. 

Na verdade, todo o elenco é absurdamente talentoso. É impressionante como Robert DeNiro se expressa diante das câmeras. Em várias cenas, basta um olhar para o espectador "se ligar" no recado do personagem. Claro que o melhor de todos é o baixinho mal-encarado que fica por conta do excelente Joe Pesci (ainda melhor que na continuação descompromissada, “Cassino"). Além da pequena participação do "coringa" Samuel L. Jackson. Todos brilham.

Goodfellas”, de fato, não é um filme comum de gângster. É sobre escolhas e consequências; sobre a introdução, desenvolvimento e desfecho do protagonista que envereda pelo universo do crime, porém, sem o glamour que ele tanto esperava como recompensa. Um verdadeiro soco no estômago do espectador e, principalmente, do sonho americano. 

*Avaliação: 5,0 Pipocas + 5,0 Rapaduras = 10.

terça-feira, 25 de janeiro de 2022

ANIVERSARIANTES MEMORÁVEIS - 05 anos de LOGAN

Por Rafael Morais

Até que enfim uma das figuras mais queridas da cultura pop ganhou uma adaptação à sua altura. “Logan” representa a digna despedida de Hugh Jackman da persona que representou por 17 anos, além de ter trazido frescor aos filmes do gênero através de uma história concentrada no minimalismo.

Depois do fraco “Wolverine Origens” e do mediano “Imortal”, a Fox resolveu apostar as fichas numa versão realista e sombria, focando no lado humano do mito, no estudo de personagens, a começar pelo próprio título. E deu muito certo!

Inserido em um universo em que os mutantes não nascem há mais de 25 anos – lembrando “Filhos da Esperança” de Alfonso Cuarón – o cansado Logan trabalha como motorista de limousine para ganhar a vida ajudando a cuidar do agora idoso e adoentado Charles Xavier (o genial Patrick Stewart).

Assim, o 1º ato é dedicado a narrar o cotidiano do protagonista, inserindo o espectador naquele ambiente desesperançoso e hostil. Todos os elementos de cena reforçam esta ideia de desilusão que o longa propõe. Repare o local onde o prostrado Xavier vive, ou melhor: passa o tempo. Se antes o líder dos “X-Men” tinha a tecnologia ao seu favor, como o “cérebro” gigante e a famosa escola para tomar conta, por exemplo, agora lhe resta as ruínas de uma fábrica, dentro de um tonel desativado para chamar de lar, onde espera a morte chegar.

A fotografia solar também sinaliza o clima árido da região desértica de El Paso, transpirando poeira na tela. O olhar sempre amargurado, banhado em vermelho, o caminhar vacilante, mancando do início ao fim, a barba grande e por fazer, bem como as diversas cicatrizes do herói contribuem para a composição perfeita do caos. Ponto também para a maquiagem, figurino e direção de arte.

Mas tudo muda com a aparição de Laura (a espetacular Dafne Keen), uma garotinha que precisa de ajuda após fugir de uma organização paramilitar. Os “carniceiros”, capangas da vez, estão por todos os lados atrás da fugitiva e não poupam quem estiver no caminho. Contudo, o roteiro de James Mangold (também diretor), Michael Green e Scott Frank não explora os membros mecânico dos inimigos como deveria, já que todos tem alguma parte do corpo formada por exoesqueleto. Tal artifício não serve aqui como arma ou empecilho nos combates. Perceba o líder Donald Pierce (vivido por Boyd Holbrook), o sujeito tem um braço de armadura biônica e nunca o utiliza para esmagar um crânio sequer. Potencial desperdiçado que poderia dar um ar de urgência ou perigo.

Entretanto, com a chegada de Laura, Xavier e Logan saem da zona de conforto e enfrentam um road movie com o objetivo de ajudar a menina. Os principais momentos do filme, fora as sensacionais sequências de ação, ficam por conta do relacionamento do trio. Os diálogos nas viagens de carro, entre outros momentos, só acrescentam. Comovente, a relação avô-pai-filho-neta, mesmo que disfuncional, conquista o espectador segurando toda a narrativa.

O arco do herói, agora com pretensões humildes, tem nos valores da família a sua principal catarse. Sensível, e juro que não esperava mencionar esse adjetivo para esse tipo de filme, “Logan” busca um meio termo entre blockbuster e alternativo ao tratar sobres temas tão espinhosos como o envelhecimento (e aí entra a demência, incapacidade...) e a morte.

Gore, a película não deixa barato o corte das afiadas garras de adamantium fazendo jorrar sangue por todos os lados. A selvageria toma conta dos combates, o que não poderia ser diferente, uma vez que Wolverine é animalesco por excelência! A violência, nem sempre gráfica, remete a filmes como “Kick Ass”, quando a Hit-Girl (X-23 aqui) chuta bundas de adultos espalhando um rastro de morte por onde passa.

Por fim, “Logan” está para a franquia cinematográfica dos “X-Men”, assim como “O Cavaleiro das Trevas” está para o Batman, parafraseando alguém que li na internet.

*Avaliação: 5 pipocas + 4,5 rapaduras = nota 9,5.

segunda-feira, 24 de janeiro de 2022

NO RITMO DO CORAÇÃO (CODA)

Por Rafael Morais

Após um sucesso estrondoso no Festival de Sundance esta produção da Apple TV+, adquirida pelo Amazon Prime Video, é aquele típico feel good movie necessário para os dias atuais.

A jovem Ruby (a cativante Emilia Jones) é a única pessoa capaz de ouvir em uma família de surdos. E quando o negócio de pescaria de seus pais é ameaçado, ela fica dividida entre seu amor pela música e suas obrigações. Ruby é uma CODA (children of deaf adults, ou filha de adultos surdos) - sigla homônima ao título original do filme.

Assim, a diretora e roteirista Sian Heder - que se baseou no filme francês A Família Bélier” - adapta um script que mostra o poder da comunicação, alternando leveza e peso nas horas oportunas. É incrível como, de repente, você se pega sorrindo para, no segundo seguinte, as lágrimas descerem incontrolavelmente. Um musical disfarçado de dramédia.

Na verdade, a condução dos atos e a estrutura da montagem me lembrou ligeiramente “A Pequena Miss Sunshine”. A sequência do concerto escolar é de uma sensibilidade sem igual e se assemelha à referência citada. Optar por excluir a sonora de um local, colocando o espectador diretamente na pele - ou melhor, no tímpano dos personagens - é imersivo e angustiante, mas imperioso à narrativa.

É o longa feito para quem tem um coração de manteiga derretida. Ou para aqueles desprovidos de sentimentos tentarem superar os seus limites. Prepare o lenço, tente não se emocionar e falhe miseravelmente. E o melhor é que a pieguice anda longe da trama, fazendo com que os conflitos genuínos de Ruby e sua família sejam palpáveis. É impossível não se identificar com a protagonista, neste sentido. A garota sofre demais por ter nascido diferente dos demais dentro do próprio lar. Incompreendida – e lutando para que o mundo lá fora compreenda as suas dores e de seus parentes - é como se ela carregasse nos ombros uma culpa que não é dela.

Destaque também para a atuação da mãe de Ruby, Jackie Rossi (a oscarizada Marlee Matlin), o irmão Leo Rossi (Daniel Durant) e, sobretudo a presença marcante do pai Frank Rossi (o impecável Troy Kotsur) em cena; aliás, os últimos dois são, de fato, surdos na vida real.

Não menos interessante, o uso da linguagem de sinais, que os personagens utilizam para se expressar durante toda a projeção, é um elemento narrativo poderoso não só por comprovar que o homem médio não faz ideia de como se comunicar com um deficiente auditivo, mas também por conferir verossimilhança, energia e dramaticidade aos diálogos.

Ao final, "No Ritmo do Coração" é um exercício à empatia, uma fábula acerca do desprendimento, do amadurecimento e, principalmente, sobre pertencimento. Uma obra sutil, humana e representativa que aposta na emoção sem se entregar aos clichês. Trata-se de uma grata surpresa que não apela para o dramalhão barato em momento algum. Uma verdadeira pérola escondida no streaming da "locadora azul".

*Avaliação:5,0 Pipocas + 5,0 Rapaduras = 10.


domingo, 23 de janeiro de 2022

Dica Amazon Prime Video - MEIA-NOITE EM PARIS

 

                     

A embriagante Paris de Woody Allen.

Por Rafael Morais

Paris exala cultura e encanta os seus visitantes, principalmente os apreciadores de arte e que reconhecem os expoentes influenciadores dos mais diversos movimentos artísticos mundo afora. E é exatamente isso que acontece com Gil (Owen Wilson), roteirista de Hollywood que está passando férias com a família da noiva Inez (Rachel McAdams). Sempre que vai à Cidade Luz, Gil busca uma reconexão com a "grande arte", algo bem diferente dos enlatados encomendados que acompanham o seu cotidiano em Los Angeles. Escrever os roteiros americanos, claramente, não inspira o lado artístico do roteirista que, ao desembarcar na capital francesa, pretende terminar de escrever/revisar o seu livro, inspirado pelos ares daquele lugar.

Na verdade, o sonho do protagonista era viver nos anos 1920, quando F. Scott Fiztgerald, Ernest Hemingway e Pablo Picasso viviam os seus ápices como artistas e homens quando circulavam em ateliês e cafés da cidade. Impossível realizar esse sonho? Para a mente inquieta e criativa de Woody Allen, não. Tudo é possível. Pois não é que Gil, não mais que de repente, para ser mais preciso, ao badalar dos sinos da meia-noite embarca nessa viagem do tempo e encontra os seus ídolos literários que sempre o inspiraram?!

Allen insere à trama um realismo fantástico para discutir a questão da valorização do artista ser mais compreendido/reconhecido longe de casa, bem como em tempos áureos de outrora. Paris parece acolher a cultura de todos e entender a arte dos incompreendidos, por isso é igualmente conhecida como uma cidade cosmopolita.

Para o cineasta, a arte não deve ser ostentada, e sim experimentada, uma vez que o personagem de Michael Sheen - amigo de Inez - dá uma de sabe tudo, e Gil, que não se identifica nem um pouco com esse tipo, logo o apelida de "pseudointelectual". Perceba que os passeios culturais, que a noiva do jovem escritor o força a realizar, são apenas momentos para que o erudito e insuportável intelectual "vomite" os seus conhecimentos. 

Conhecer e reconhecer as estátuas de Rodin, os jardins de Versalhes, para Inez, já é um turismo cultural, mesmo que pelo período da tarde ela saia com a sua mãe para fazer compras nas lojas mais caras consumindo o supérfluo. Muito embora a Cidade Luz exale cultura, esta não se absorve por osmose.

“Meia-noite em Paris” é um filme delicado, divertido e enriquecedor. Allen volta ao seu melhor estilo charmoso e elegante de filmar. Logo na abertura, somos apresentados às imagens da cidade em movimento, o cartão-postal em transformação. É o antimuseu. Aquilo que o cineasta propõe, veementemente, é colocado em prática aqui, pois a intenção é apreciar a arte em sua dinâmica, longe da exposição estática, na trivialidade do dia a dia.

A trilha sonora suave ajuda a ambientar os personagens na Paris moderna. Da mesma forma que a bela fotografia "oxigena" os pontos turísticos e nos dá ainda mais vontade de conhecer as ruas charmosas e a arquitetura clássica parisiense, ressaltando, significativamente, o espírito do longa.

Repare que a mise-en-scène é fantasticamente orgânica entre as personas do passado e do presente. Aposto que o diretor pediu aos atores que passassem uma reação proveniente do misto de encantamento diante de um ídolo. São hilárias as expressões faciais de espanto e admiração de Owen Wilson quando ver, por exemplo, que Picasso está pintando uma de suas principais obras bem na sua frente.

Ao embarcar nessa "viagem" mágica de Woddy Allen temos a percepção de que os "bons tempos" não voltam mais, porém, podemos fazer valer a pena o presente para sermos lembrados no futuro. Os tempos de hoje poderão ser a Era dourada de amanhã.

Avaliação: 4,0 Pipocas + 5,0 Rapaduras = 9,0.


sábado, 22 de janeiro de 2022

Dica Netflix - RUA CLOVERFIELD 10

 


Por Rafael Morais

Quando foi publicada a prévia de "Rua Cloverfield 10", o mistério que envolvia a produção era notório, uma vez que o seu título carrega uma menção expressa a outro filme: "Cloverfield - Monstro". Contudo, diferente de seu antecessor, esta produção possui uma escala bem menor quando aposta em um suspense psicológico tenso e no estudo de personagens. 

Na verdade, o longa funciona tão bem, e com autonomia até os seus 10 minutos finais, que não havia necessidade de atrelá-lo a outro, numa clara tentativa de estratégia mercadológica para levar um público alvo que já curte aquele universo pré-estabelecido.  

A história narra o conflito de três personagens que se veem às voltas num bunker, enclausurados, por conta de Howard (o extraordinário John Goodman), um sujeito paranoico que constrói esta espécie de abrigo para, segundo ele, se livrar de uma suposta guerra nuclear que assolará o mundo. A moral de Howard é questionada desde o momento em que salva Michelle (a bela Mary Elizabeth Winstead) de um acidente automotivo, mantendo-a em cárcere privado, insistindo que não podem sair por conta dos efeitos nocivos das bombas. 

Também conhecemos o carismático Emmett (John Gallagher Jr.), que diferente de Michelle, quis estar ali dentro, forçando a sua entrada. O cara acredita, piamente, em tudo que Howard diz, sendo totalmente subserviente. Funcionando como alívio cômico, Emmett é figura chave na trama do roteirista Damien Chazelle, uma vez que a sua ingenuidade conduz o arco dramático para um desfecho essencial, impulsionando a história pra frente. 

Assim, o clima claustrofóbico é bem representado não só pelo cenário fechado, conferindo vida própria a cada ambiente - ponto para a caprichada direção de arte - como também por close-up’s que cerram a protagonista constantemente, enquadrando-a tal qual a sua situação naquele lugar.

Dona de diálogos afiados, a película é tomada por uma atmosfera cada vez mais densa, tudo auxiliado por ótimas atuações. A direção de Dan Trachtenberg, por sua vez, é competente ao deixar o espectador na ponta da cadeira, tamanha a tensão instalada. 

Com um terceiro ato que abraça o sci-fi de ação - se aproximando mais de fitas como "Guerra dos Mundos", por exemplo - este "Rua Cloverfield 10" perde um pouco da coragem ao desfocar da proposta de jornada pontual e do suspense intimista, quando se vê obrigado, enquanto franquia que tenta ser, a se entregar à grandiloquência, ao espetáculo do blockbuster. E não que isso seja de todo ruim, mas acaba caindo nas convenções do gênero tornando a experiência com um gostinho de déjá vu.

*Avaliação: 4,5 pipocas + 4,0 rapaduras = 8,5

sexta-feira, 21 de janeiro de 2022

ANIVERSARIANTES MEMORÁVEIS - 10 anos de DJANGO LIVRE

                      Uma catarse à base de suor e sangue.

Por Rafael Morais

A filmografia de Quentin Tarantino fala por ele. E mesmo depois de já ter revisto todas as suas obras, já ciente do estilo e das referências desse cineasta, confesso que o cara conseguiu de novo me surpreender positivamente. 

Em Kill Bill Vol. 1 e 2Quentin mostrou todo o seu conhecimento e admiração aos antigos filmes de artes marciais, inserindo na figura de Pai Mei e na personagem vivida por Uma Thurman uma homenagem àquelas fitas de Kung-Fu, lembrando Bruce Lee em O Jogo da Morte, dentre outras produções;  em À Prova de Morte demonstrou o seu amor pelo cinema B sploitation no projeto Grindhouse com o seu parceiro Robert Rodriguez; em Bastardos Inglórios, por sua vez, ele "simplesmente" alterou o curso da história para prestar uma modesta reverência aos filmes de guerra, além de oferecer a tão sonhada vingança que muitos desejavam: matar, ou melhor, metralhar e trucidar Adolf Hitler

Diante dessa escalada ao topo do sucesso, festejado e aclamado pela crítica e por boa parte do público mundo afora, o cineasta chega a Django Livre trazendo uma expectativa gigantesca em torno da nova produção. Mais uma vez alguns críticos notoriamente invejosos ou com sangue de barata - aqueles que não conseguem elogiar mesmo e não dão o braço a torcer - assim classificaram o filme: "não foi dessa vez que Tarantino fez um filme ruim". Por que não dizer que o filme é bom?! Ou melhor: que o filme é excelente! Para alguns, opinar sintetizando o pior de uma obra é sempre mais fácil do que elogiar.

Essas colocações são oportunas para contextualizar o infeliz e ignorante comentário do diretor Spike Lee (Malcom X), à época, quando disse que o filme é desrespeitoso mesmo sem ter assistido; e o pior, declarou ainda que nem tem a intenção de vê-lo. Jamie Foxx, que saiu em defesa do diretor, afirmou que esse tipo de declaração é irresponsável e desrespeitosa, pois falar que algo não presta sem ter conhecimento é o mais puro preconceito.

Contudo, polêmicas à parte, seja pela facilidade em escrever diálogos e roteiros tão afiados quanto inteligentes; seja pela forma que o diretor conduz os seus filmes, tornando cada cena importante à trama, impulsionando a narrativa sempre para frente e, assim, eficientemente orgânico, Tarantino é um dos poucos cineastas vivos que consegue me prender na cadeira com tanta intensidade e vibração. Quando tudo induz e conduz o espectador para se deixar levar por um possível plano "razoável" apresentado pelos personagens; quando tudo parece lógico e natural, aí vem o tempero "tarantinesco" e mostra que nem tudo é o que aparenta. O acaso, o improviso e a vingança são temáticas-irmãs que dialogam fortemente nos roteiros do idealizador. 

Na verdade, o cineasta continua mantendo o humor e as suas gags como válvula de escape em algumas determinadas sequências, sem esquecer do peso, seriedade e sobriedade nos momentos dramáticos e violentos. O polêmico sadismo só aparece quando ele bem quer e na hora exata de acontecer.    

Mas é em Django Livre, sua obra com uma estrutura narrativa mais linear até agora, que revisitamos o velho-oeste, gênero pelo qual o cineasta é aficionado desde criança. A trama traz Django (Jamie Foxx) como um escravo libertado pelo alemão Dr. Schultz (Christoph Waltz, soberbo), um ex-dentista eloquente e malandro que se tornou caçador de recompensas. Schultz precisa de Django para um propósito: localizar três criminosos procurados pela Justiça. Em troca, ele terá sua liberdade.

Contudo, o objetivo final de Django, após cumprir este trato, é resgatar a esposa Broomhilda (Kerry Washington) das garras do presunçoso Calvin Candie (Leonardo DiCaprio), proprietário de Candieland, uma fazenda algodoeira onde escravos são treinados para participar de lutas ferozes conhecidas como Mandingo – uma espécie de MMA ultra-violento.

Aqui, Tarantino não deixa de dar uma cutucada/criticada nesse esporte que, guardada as proporções, tem a mesma conotação dos dias atuais daquela apresentada no filme, ou seja, negociar e patrocinar pessoas como mercadorias. Interpretações à parte, sentindo-se responsável pelo escravo recém-alforriado, Schultz resolve acompanhá-lo nesta perigosa jornada que guarda muitas surpresas para ambos.

Curiosamente, o nome do protagonista foi escolhido em referência a Django, produção italiana dirigida por Sergio Corbucci em 1966 estrelada por Franco Nero, que faz uma pequena, divertida e metalinguística participação no longa. Outras alusões ao faroeste spaghetti estão nos zooms forçados, letreiros com fontes características do gênero e nas deliciosas faixas musicais do grande compositor Ennio Morricone – usual colaborador de Sergio Leone, diretor que difundiu e elevou o (sub)gênero.

Não menos inusitada foi a decisão de Tarantino - que tem um gosto bem peculiar para música - em inserir hip-hops e souls na trilha sonora. A inserção e adaptação dessas levadas black music em um filme de época ficou interessantemente paradoxal. Anacrônico, contextualmente, o estilo musical constata e demonstra ao espectador o progresso, relevância e riqueza da cultura negra, bem como o seu atual status social, bem diferente, diga-se de passagem, dos tempos de outrora. Observe que em dado momento, Django cavalga imponente, com nariz empinado e postura ereta, ao som das batidas de hip hop, comandando alguns escravos, como se dissesse: vocês estão nessas condições também porque se permitem estar.

Vencedor de dois Globos de Ouro (Melhor Roteiro e Melhor Ator Coadjuvante), Django Livre recebeu cinco indicações ao Oscar: Melhor Filme, Roteiro Original, Fotografia, Edição de Som e Ator Coadjuvante (Christoph Waltz). Embora Waltz tenha um desempenho memorável tão intenso quanto o seu Coronel Landa de Bastardos Inglórios (por qual foi premiado), Leonardo DiCaprio também merecia ser lembrado pelo seu odioso e arrogante Calvin Candie.

O vilão transita  de ingênuo e idiota até ganhar peso, magnitude e complexidade, explodindo em atitudes inesperadamente sádicas (detalhe para a sequência da mão cortada, ali DiCaprio se feriu sem querer e preferiu continuar gravando). Samuel L. Jackson no papel do subserviente e ardiloso Stephen também não fica atrás, roubando a cena no epílogo do filme. A Academia, infelizmente, esnobou ambos.

Outro ponto alto da projeção está na inspiradora fotografia que contrasta a bela e alvejante plantação de algodão com a vermelhidão sangrenta borrifada sobre ela. Sem esquecer que os flashbacks trazem paletas um tanto mais sombrias e cinzentas, como lembranças que Django não queria ter guardado na memória, mas que estão encrostadas lá.

Ainda no quesito técnico, o diretor nos surpreende com o uso e abuso de slow motion nas cenas de ação, drama ou quando cria o clima tenso para logo depois quebrá-lo, bem ao seu estilo. O curioso é que o cineasta não tinha essa característica visual no seu repertório.

Dessa forma, Django Livre toca em assuntos delicados, mexe em "feridas", causa polêmica, reflexão e questionamentos. E quem disse que isso é prejudicial? Questionar e refletir faz parte do processo interpretativo-cognitivo de uma arte.

O fato é que no "prensar da rapadura" e no "saltitar da pipoca", o diretor está mais preocupado em fazer o que sabe de melhor: entreter a plateia com uma boa história de vingança recheada da sua já habitual violência gráfica (advinda da sua famosa e vasta cultura pop), bem como no desenvolvimento dos personagens antimaniqueístas, capazes de diálogos tão mordazes quanto divertidos. Tarantino, literalmente, acertou no alvo com precisão, mais uma vez. Doa a quem doer.

Avaliação: 5,0 Pipocas + 5,0 Rapaduras = 10.


quinta-feira, 20 de janeiro de 2022

ANIVERSARIANTES MEMORÁVEIS - 22 anos de RÉQUIEM PARA UM SONHO

 

Aronofsky expõe os vícios e as fraquezas humanas, ao passo que deixa o espectador psicologicamente destruído. 

Por Rafael Morais

Réquiem significa prece pelos mortos. E é justamente isso que se traduz da película. Darren Aronofsky (roteirista e diretor) clama ao denunciar, de uma forma bem peculiar, todos os tipos de "morte". Para o cineasta, o que está em voga não é necessariamente perder uma vida, mas, sobretudo, o falecimento dos sonhos. Seja de uma juventude transviada ou da solidão de um ser, os sonhos cairão um a um. Assim, em "Réquiem Para um Sonho", os personagens pagarão caro o preço pelas escolhas e padecerão sob as fraquezas da carne e do espírito. Tudo captado pelas aguçadas lentes do cineasta e retratado em diálogos afiadíssimos.

Não é fácil assistir e "digerir" os 102 minutos desse filme. As mãos gélidas traduzem a apreensão de um pobre espectador - tão humano quanto os demais ali apresentados - esperando uma reviravolta e em busca de um final feliz. Pobre ilusão! Ao final, a sensação é de que levamos uma surra, pois presenciamos a degradação humana frente ao vício das drogas (lícitas ou ilícitas). Não há firulas, embelezamentos ou poesia. As sequências são fortes, nuas e cruas, como a vida é. O roteiro descreve diferentes formas de vícios, conduzindo os personagens ao aprisionamento em um mundo ideal, que logo será tomado e devastado pela realidade.

Na verdade, a intensa e tocante trilha sonora de Clint Mansell, interpretada por Kronos Quartet, se tornou icônica, sendo massivamente utilizada por outros filmes. A composição acrescenta à narrativa ao acompanhar os principais pontos do longa e ao criar o crescente clima de angústia. Os contornos e as nuances da música dão a entender que estamos participando de uma marcha fúnebre, onde os personagens devaneiam nas próprias esperanças.   

Inspirada no romance de Hubert Selby Jr., a trama se apresenta de forma simples, onde o ponto central está nos vícios e "pecados" da sociedade moderna, tais como: o uso de drogas (heroína ou qualquer outra), a "TV aberta", a busca insana pelos padrões de beleza, a perversidade sexual e os diversos outros fatores desencadeados pela solidão. A ganância e a inconsequência também ganham destaque neste contexto.  

A obra narra a história de Harry Goldfarb (o metódico Jared Leto), que tem a "brilhante" ideia de revender uma droga alterando sua qualidade, com a ajuda de sua namorada Marion Silver (a sempre estonteante Jennifer Connelly) e seu amigo Tyrone C. Love (o multifacetado Marlon Wayans, conhecido pelas suas comédias "mamão com açúcar"). Juntos, eles iniciam esta parceria no crime, mas as consequências deste universo se tornariam bruscas demais para o trio e quem os rodeia. 

Ponto forte para o talentosíssimo elenco em atuações marcantes, como a de Ellen Burstyn interpretando Sara Goldfarb (mãe de Harry), cujo desempenho lhe rendeu uma indicação ao Oscar na categoria de Melhor Atriz. Injustiça não ter levado a estatueta. Desaparecendo dentro de Sara, a atriz expõe a solidão de uma mulher que nada mais tem na vida a não ser assistir seu programa de TV preferido e tentar emagrecer para entrar em seu velho vestido vermelho, no qual representava o auge da sua beleza e juventude. É para isso que ela toma suas anfetaminas, deteriorando assim o que lhe resta de sanidade.

No fim, a incrível montagem - auxiliada pela memorável trilha sonora - nos envolve em uma atmosfera alucinante onde os medos e delírios são fielmente retratados, proporcionando uma experiência inesquecivelmente perturbadora. 

 Avaliação: 5,0 Pipocas + 5,0 Rapaduras = 10.

quarta-feira, 19 de janeiro de 2022

Dica Disney Plus - VIVA: A VIDA É UMA FESTA

 

Por Rafael Morais

Em “Viva: A Vida é uma Festa”, a Pixar escolheu o México como cenário para nos apresentar uma emocionante história ambientada no tradicional feriado do Dia dos Mortos. A narrativa toma corpo quando o garoto Miguel tenta a aprovação e o apoio de sua família para ser músico, mas sofre tendo em vista traumas do passado.

Interessante destacar a diversidade cultural, de raça, credo e cor que uma produção americana como esta resolveu apostar, acertadamente, todas as suas fichas. Talvez uma forma de criticar o Presidente que tinha à época?! Vide a campanha política de Trump quanto à questão do muro para segregar o México dos EUA e toda sua retórica acerca dos imigrantes. Uma obra desse nível não visa apenas entreter, mas colocar o dedo na ferida de forma artística e suave.

Assim, durante a jornada de Miguel em busca de reconhecimento/benção, a inventividade - marca característica do estúdio - toma conta do filme, sobretudo quando conhecemos o mundo dos mortos pela perspectiva de um vivo. Nada escapa aos olhos atentos da dupla de diretores Lee Unkrich e Adrian Molina, inclusive quando demonstram ter referência de George A. Romero (A Noite dos Mortos-Vivos) na sequência do cemitério.

Não menos fantástica, a direção de arte deita e rola na construção do universo místico, conferindo detalhes na customização dos espectros que ali habitam, desde os cômodos das residências até os figurinos utilizados. Nada é escolhido por acaso, tudo passa uma mensagem através dos simbolismos.

Perceba, por exemplo, os falecidos que são esquecidos pelos familiares, ocasião em que no feriado de finados não lhe rendem uma homenagem sequer, como uma foto exposta em forma de oferenda. Nada. Estes são retratados pela película como marginalizados, desprezados, residindo em verdadeiras favelas, vestindo trapos e debilitados de “saúde”. Até os dentes amarelados, e por vezes ausentes, denotam ainda mais esta comparação de total desprezo.

Enquanto lá, no mundo espiritual, ser lembrado é tudo o que importa para quem “já partiu dessa”; aqui, alguns seres humanos são abandonados em vida. Em contrapartida, os que são recordados costumeiramente, até idolatrados, vivem em palácios e mansões suntuosas. Observem os adornos dourados, a abundância de comida, bebida e presentes localizados no palacete do famoso músico Ernesto dela Cruz (uma espécie de Roberto Carlos), contrapondo o único cômodo do barraco onde vive um senhor esquecido pela família, dormindo em uma rede velha, suja e rasgada. A dualidade do “festejado x abandonado” perpassa pelo conceito de memória. Evocar o legado de quem já fez sua passagem é a chave para a prosperidade mística.

Genial, a animação transborda emoção e consegue transformar esqueletos em seres animados dotados de carisma sem necessariamente flertar com o gótico, já que faz uso de uma paleta de cores vivas e intensas para retratar a relação entre os vivos e os mortos. Na sessão que assisti, vale ressaltar, as crianças não sentiam medo nem desconforto com a caracterização esquelética das personas, pelo contrário. Encantadoramente coloridos, os guias espirituais são uma atração à parte ao tempo em que revelam como a produção entrou de corpo e alma, literalmente, nos meandros de uma cultura diversa.

Visualmente impecável, há um notório aprimoramento na forma de animar seres e objetos. São impressionantes os detalhes da água, como sua curvatura, cristalinidade e efeito; sem falar no balançar dos cabelos, sempre em evolução nas mãos dos animadores; o que dizer então da textura, quase palpável, aplicada no rosto enrugado de uma idosa ou no prazer emitido pela criança ao tocar o seu violão, sentindo a música e passando ao público toda a carga emocional que uma canção pode despertar na memória de quem a escuta.

Igualmente cativante, a trilha sonora embala o filme e impregna nas nossas cabeças, por vezes precipitando em forma de lágrimas, quase inevitáveis, dando a pseudossensação que já conhecíamos aqueles acordes há um bom tempo.

Por fim, se somos feitos de memórias e se os “mortos” só realmente se vão quando deixamos de lembrá-los ou homenageá-los, de uma coisa tenho certeza: esta obra-prima da Pixar representa uma ode à família e estará sempre presente em minhas lembranças de cinéfilo, certamente na prateleira dos filmes especiais, assim como a reminiscência dos meus entes queridos que já se foram. Logo, se depender de mim, estes jamais morrerão...

*Avaliação: 5,0 pipocas + 5,0 rapaduras = nota 10,0. 

terça-feira, 18 de janeiro de 2022

Dica Amazon Prime Video - O Regresso

 

Por Rafael Morais

Em um determinado momento de "O Regresso", um índio surge com uma placa nos seguintes dizeres: "somos todos selvagens". E é nesta máxima que o cineasta Iñárritu (Birdman) encontra refúgio, buscando uma abordagem visceral desde o início da projeção. Assim, somos arrebatados, logo no princípio da película, com um belo e longo plano-sequência (que já virou marca registrada do diretor) capaz de nos ambientar naquele universo proposto através de uma sangrenta batalha entre índios e brancos.

Baseada em fatos, a história data de 1822 quando Hugh Glass (Leonardo DiCaprio) parte para o oeste americano disposto a ganhar dinheiro caçando. Atacado por um urso, o protagonista fica seriamente ferido e é abandonado à própria sorte pelo parceiro John Fitzgerald (Tom Hardy), que ainda rouba seus pertences. Entretanto, mesmo com toda adversidade, Glass consegue sobreviver e inicia uma árdua jornada em busca de vingança.

Contudo, para narrar esta premissa, Iñárritu e o roteirista Mark L. Smith se valem de algumas licenças poéticas para adaptar ao filme um roteiro já derivado de parte de um livro, inserindo ou retirando meias verdades, como o fato do filho de Glass, na verdade, não ter participado da expedição, o que foi modificado com o fito de trazer um personagem motivador/impulsionador na trajetória do pai em busca de sua vendeta.

Visualmente impecável, o filme traz uma fotografia irretocável do mestre Emmanuel Lubezki, responsável por obra como “Árvore da Vida”, por exemplo. E não é à toa que em algumas cenas, como nas passagens de tempo (raccords), no enquadramento das paisagens, na arte de filmar um “tempo morto”, tudo isso nos remete, inevitavelmente, à filmografia de Terrence Mallick, parceiro habitual do fotógrafo. Aqui, Lubezki não se utiliza de luz artificial, apenas da natural, o que acaba se harmonizando com a proposta do longa: a natureza como princípio, meio e fim de tudo; o homem enquanto lobo do próprio homem (ou seria urso? rsrsrs).

E por falar nisso, a já famosa sequência, também sem corte aparente, do ataque do urso a Glass mistura efeitos digitais com práticos - e confesso que não consigo distinguir onde começa um e termina o outro. Graças também à esplêndida performance de DiCaprio. O ator entrega uma atuação forte, de método, sem deixar de ser autoral, carregando nas expressões física e corporal a fórmula para os prêmios conquistados. Durante os momentos mais enervantes, que exigiram bastante, o ator mergulha no personagem ao ponto de atuar basicamente com expressivos olhares, sem necessariamente verbalizar ou mastigar tudo aquilo que sente. Durante as gravações, DiCaprio enfrentou o frio, comeu fígado cru, perdeu peso, enfim, tudo que Hollywood/Oscar adora para premiar. Justiça seja feita: o ator já merecia ganhar a "carequinha dourada" desde “O Lobo de Wall Street”.

Já a trilha sonora, embora fria, não chama atenção para si, sabe silenciar nas horas certas, se utilizando de elementos sonoros diegéticos (sons que fazem parte naturalmente do ambiente) para compor um som baseado em respirações, batimentos cardíacos, tambores de índios, entre outros. Nenhuma novidade para o gênero, o que torna este quesito um dos mais fracos, tecnicamente, pela ausência de criatividade para sair do clichê. Não que a captura dos sons seja ruim. Pelo contrário! A mixagem e desenho do som são impecáveis, e isso não se deve ser confundido com a trilha sonora.

O elenco, por sua vez, merece destaque quando temos um Tom Hardy excepcional na pele de um sujeito inescrupuloso, animalesco e não menos humano por tudo isso. Com os ideais/objetivos deturpados, o Fitzgerald de Hardy também tem os seus medos, fazendo um contraponto ideal ao do protagonista. Sem contar com a ótima presença em cena de Domhnall Gleeson. O seu capitão Bridger surge como um homem íntegro no meio do caos. Mérito também para o modo com que o diretor insere o espectador na história, nos colocando diretamente lá como testemunha, espécie de álibi daqueles animais racionais, que não deixam de ser nossos pares, afinal de contas.

E a “quebra da quarta parede” (quando o personagem olha ou interage diretamente com o público) retrata bem isso. Aproximar com closes e enquadrar os personagens de forma fechada denotam acertos na construção da linguagem narrativa proposta, além de enclausurá-los, apesar das imensas florestas que os cercam. A natureza, aliás, é retratada em “O Regresso” como uma força maior avassaladora, capaz de causar arrepios com suas gigantescas árvores cerradas balançando ao som de ventos uivantes, que observadas de baixo para cima oprimem e encurralam os meros seres que ali transitam.

Tudo isso torna “O Regresso” uma experiência sensorial incrível; e quem assistiu no formato IMAX, assim como eu, teve um grande privilégio. Por fim, seja pelo respingo de sangue que gruda na lente durante uma luta, seja pelo respiro ofegante do protagonista, embaçando a mesma: sim, somos todos selvagens!

*Avaliação: 5,0 pipocas + 5,0 rapaduras = 10

segunda-feira, 17 de janeiro de 2022

Dica Netflix - A Bruxa

    Um filme que exala malignidade



Por Rafael Morais

Mergulhado em uma atmosfera macabra - ajudada pela fotografia sombria através da paleta dessaturada - o longa narra a via crucis de uma família cristã, em meados do século XVII, que busca um novo lar após ser expulsa, sem maiores explicações, da colônia onde residia. Com isso, a nova morada escolhida fica à margem de uma tenebrosa floresta que se torna ainda mais assustadora com o repentino sumiço do caçula, o bebê Samuel.

A tensão se instaura de forma crescente e o mal é quase palpável, tudo retratado por sugestivos enquadramentos que valorizam a floresta, quase como uma entidade, dando vida ao cenário por meio de ameaçadores arbustos uivantes. No que pese o primeiro ato ser um pouco arrastado, o mesmo acaba funcionando como preparação para o espectador se ambientar, paulatinamente, à intensidade dos demais atos.

Não menos espetacular, o elenco demonstra toda a sua força em atuações marcantes, capazes de conferir complexidade e tridimensionalidade durante o estudo de personagens. Assim, temas como religiosidade e fé são postos à prova, refletindo em cada membro da família de maneira distinta, mas não menos intensa. Se o patriarca William (Ralph Ineson) é um fiel fervoroso, fundamentalista, não demora a ser tentado dentro de suas fraquezas. E nessa toada, Thomasin (a espetacular Taylor-Joy), a filha adolescente (mais velha) do casal é quem sofre as maiores tentações, uma vez que é acusada de bruxaria pelos seus próprios pares, por atitudes inerentes à sua idade que remete à descoberta da sexualidade e do mundo novo.

Ajudando a criar os seus irmãos menores: os sinistros gêmeos, bem como o pré-adolescente Caleb (o formidável Harvey Scrimshaw, que rouba a cena), Thomasin surge como uma moça, quase mulher, repreendida pelos seus genitores que a enxergam apenas como doméstica. Ainda sobre a prole, Caleb guarda carisma e reserva uma das melhores sequências do filme, entregando uma performance impressionante.

Tecnicamente primoroso, o longa é permeado por uma instigante trilha sonora de Mark Korven, capaz de acentuar o ambiente nefasto diante de acordes dissonantes, variando entre cordas graves e agudas, auxiliando na construção do clímax. Neste quesito, Korven também é consciente no emprego do silêncio ao se abdicar da trilha, nos momentos adequados, por vezes se utilizando de sons diegéticos para compor uma cena, sobretudo as mais tensas, evitando, assim, "mastigar" o que está sendo visto.

Igualmente exuberante, o design de produção capricha na composição do universo macabro mediante figurinos minuciosamente costurados a mão, que retratam bem os costumes da época, especialmente na figura da mulher oprimida. Repare, por exemplo, a catarse da jovem protagonista no ápice final, em que a vestimenta se torna peça essencial na linguagem narrativa. As vestes caídas, que simbolizam as “amarras”, personificam a “liberdade” diante da nova realidade imposta.

Escrito e dirigido com maestria pelo estreante Robert Eggers, "A Bruxa" pode ser interpretado como uma fábula de terror, bebendo na fonte de referências clássicas de contos infantis como: "Chapeuzinho Vermelho" (citações a lobos e capuzes encarnados pipocam na tela); "João e Maria" (aquele casebre com uma chaminé fumegante e a inversão na tentação: se antes era o doce que seduzia as crianças, aqui a sexualidade vence o garoto, em vias da puberdade, hipnotizado por um decote de encher os olhos); passando por "Alice no país das maravilhas", quando deturpa a figura do coelho como iniciador do universo maligno que está por vir.

Recheado de simbolismos, como a maçã expelida por Caleb, podendo ser encarada tanto como uma ligação bíblica, alegoria do pecado; quanto à outra história infantil: como não se lembrar da bruxa que envenenou a princesa através desta fruta? Sim, o filme é um misto acertado de alusões desconstruídas em prol da sugestão do medo, ao invés de explicitá-lo, que foge às convenções do gênero, principalmente daquele terror de blockbuster, apostando num público alvo que flerta mais com o psicológico do que propriamente com o gore. Por isso, não espere sustos gratuitos ou clichês enlatados, pois estamos falando de uma obra que se não valorizada agora, será um clássico cultuado em um futuro próximo.

*Avaliação: 5 pipocas + 5 rapaduras = nota 10

domingo, 16 de janeiro de 2022

ANIVERSARIANTES MEMORÁVEIS - 10 anos de A INVENÇÃO DE HUGO CABRET

Viaje com Scorsese por um mundo que ele conhece como poucos.

Por Rafael Morais

A briga pelo Oscar de melhor filme de 2012 foi protagonizada por duas produções que focavam na mesma dualidade temática: A evolução do Cinema X A preservação de obras clássicas. No entanto, A Invenção de Hugo Cabret narra este contexto histórico de uma forma bem mais encantadora e deslumbrante que o filme francês O Artista (que acabou levando a estatueta de melhor longa e direção), até porque traz Martin Scorsese dirigindo pela primeira vez em câmeras 3D. 

A trama acompanha a trajetória do protagonista Hugo (Asa Butterfield), que depois da morte do seu pai relojoeiro passa a viver na Gare du Nord, a majestosa estação de trem em Paris, cujos relógios o órfão acerta diariamente. Como herança, Hugo ganhou não apenas o talento com engrenagens miúdas, mas também um misterioso autômato que o garoto tenta remontar com peças que ele furta de uma loja de brinquedos na estação. Transcorrem os anos 1930 e ninguém desconfia que o deprimido dono da loja é, na verdade, o velho cineasta Georges Méliès (Ben Kingsley), mas isso Hugo logo descobre, quando o caminho dos dois se cruza. 

Tecnicamente, Scorsese foge do lugar comum no uso da tecnologia proporcionando uma experiência sensorial jamais vista depois de Avatar de James Cameron. O cineasta emprega os efeitos de terceira dimensão a favor da linguagem narrativa ao colocar o espectador dentro do filme, literalmente, de tão imersivo.

Observe, por exemplo, na sequência em que o guarda da estação (Sacha Baron Cohen) intimida o garoto Hugo:  ao aproximar o seu rosto da indefesa criança o enquadramento brinca com a proporção e explicita como o adulto é bem maior e imponente frente ao menino. Assim, o diretor não perde a oportunidade de também nos colocar na pele do protagonista e utiliza, de forma orgânica, esta aproximação em 3D. O renomado cineasta ainda consegue potencializar os efeitos dos truques de Méliès no ótimo flashback que relembra o processo do mestre (como a ilusão do tanque de lagostas). 

Quem não conhece Méliès (1861-1938) terá em Hugo Cabret, antes de mais nada, uma tocante introdução aos filmes do diretor de Viagem à Lua (1902). Foi o que aconteceu comigo, que apesar de conhecer esta obra, não tinha ideia de quão grandiosa era a sua cinematografia como um todo. Enquanto os irmãos Lumière - criadores do cinematógrafo - filmavam banalidades do cotidiano em seus curtas, Méliès, veterano do teatro de variedades, levou para o Cinema seus espetáculos de ilusionismo. Com seus truques de montagem e encenação, o francês foi pioneiro não só nos efeitos visuais como originou, com sua produção de mais de 500 filmes, toda a ideia do Cinema como uma fábrica de sonhos. 

E esta magia é retratada de maneira tocante em Hugo. A visão de Scorsese sobre Cinema (o idealizador não esconde sua obsessão sobre o tema), muito além de uma homenagem, é uma analogia ao mundo onírico, pois quando estamos assistindo a um filme é como se estivéssemos sonhando livremente, sem amarras, longe da nossa cruel e indigesta realidade. Fantasia pura!

Enfim, um filme mágico, deslumbrante e imperdível para os amantes da sétima arte.

* NOTA: 5,0 Pipocas + 5,0 Rapaduras = 10.

segunda-feira, 3 de janeiro de 2022

O ÚLTIMO DUELO

 

Por Rafael Morais
03/01/2022

Após passar 10 anos nas mãos de Martin Scorsese, sem avançar no desenvolvimento por falta de tempo do renomado cineasta, os direitos sobre o livro “The Last Duel” foram cair no colo da 20th Century Studios. E a mudança foi bem-vinda, uma vez que o igualmente competente Ridley Scott assumiu a ponta. Experiente e acostumado com os épicos, o diretor não decepciona e entrega o que lhe é esperado: um longa bem filmado, belamente fotografado, que possui a carga dramática no lugar, e com excelentes sequências de batalhas.

O Último Duelo é uma história baseada em fatos e adaptação do romance homônimo de Eric Jager. A trama, ambientada no ano de 1386, narra o embate entre o cavaleiro Jean de Carrouges (Matt Damon) e o escudeiro Jaques Le Gris (Adam Driver), acusado de ter estuprado a Sra. Marguerite de Carrouges (Jodie Comer), esposa do cavaleiro. A luta, decretada por Carlos VI, à época rei da França, marca o emblemático caso de drama, vingança e crime do século XIV.

Assustadoramente contemporânea, a temática acerca de como a sociedade enxerga uma mulher vítima de violação quase não sofreu alteração de lá para cá. E perceba que estamos falando de eventos ocorridos há mais de 630 anos! O preconceito sobre a vítima, colocando-a muitas vezes na posição de culpa - praticamente de caluniadora - revela mais a respeito de quem julga. É angustiante, portanto, presenciar a tristeza, a vergonha e a desolação de um ser humano impotente diante de tantos julgamentos no tocante à sua índole, ainda mais quando se espera o mínimo de empatia da sociedade.

E é aí que Scott destrincha o inteligente roteiro de Nicole Holofcener e Matt Damon quando aborda a história por capítulos. A montagem (apesar de sofrer críticas no sentido de empancar o ritmo da narrativa) transita sob a perspectiva dos principais personagens, convidando o público às revelações minuciosas e intimistas de como cada persona reagiu às mesmas situações apresentadas anteriormente. Exercício de voyeurismo típico da sétima arte.

É estarrecedor acompanhar uma exata passagem sendo narrada novamente, mas por diversas óticas distintas. Os detalhes das atuações e da direção de arte fazem a diferença. De repente, o espectador se vê como o juiz inquisidor daquela lide, porém, com elementos suficientes para julgar o que está diante dos seus olhos.

A força de O Último Duelo está na tríade Damon, Driver e, principalmente, Jodie. Aos poucos Marguerite toma o seu lugar de destaque; e muito se deve à sensacional performance da atriz. Inicialmente tímida e progressivamente fascinante, a atuação vai da vulnerabilidade à autoconfiança em questão de frames. Cenas fortes e diálogos igualmente arrebatadores conferem peso e drama ao arco da também protagonista.          

Não menos fantástica, a ambientação do filme nos remete, naturalmente, a Gladiador (2000) quando Ridley Scott apresenta sequências de ação sublimemente coreografadas, onde o sangue jorra com gosto. Violência gráfica a serviço da verossimilhança da época na qual a história se passa. Não há glamour na batalha, muito pelo contrário. O peso e a letalidade dos homens em situação extrema são representados por figurinos robustos, literalmente pesados, e armas brancas afiadas prontas para fazer sangrar. 

Assim, toda a violência experimentada (seja sexual, física e/ou psicológica) encontra o seu clímax no terceiro ato. O veterano realizador mostra porque é um dos maiores do Cinema, em atividade, ao reger com maestria a culminação dos acontecimentos. Mesmo aos 83 anos de idade, o diretor nos brinda com um vigor descomunal.

Entretanto, ainda sobre o contexto histórico, observe o despautério de um mundo repulsivamente machista que coloca dois sujeitos num confronto mortal para ver quem tem razão. Tudo referendado por um “deus”, é claro. Neste fanatismo religioso, quem se sair vitorioso terá a completa absolvição do coletivo e do divino, ao passo que o derrotado, em contrapartida, não somente terá a morte como última sentença, como também o seu nome e a “sua alma” restarão maculados pela posteridade.

Curiosamente, o crime de estupro, naquele tempo, apesar de ter como vítima direta a mulher, era “sofrido pelo marido”. Era ele quem figurava no polo passivo da demanda. Pasmem! A honra e o orgulho acima de tudo é o mantra de Jean de Carrouges, aliás. Antimaniqueísta, o argumento do script explora os tons de cinza dos personagens através de abordagens humanas, para não dizer primitivas.

Visceral e devastadora, a obra propõe um olhar claustrofóbico ao universo feminino que, historicamente, tem a sua autonomia sufocada pelo patriarcalismo.

NOTA: 4,5 Pipocas + 5,0 Rapaduras = Nota 9,5