Uma catarse à base de
suor e sangue.
Por Rafael Morais
A filmografia de Quentin Tarantino fala por ele.
E mesmo depois de já ter revisto todas as suas obras, já ciente do estilo e das
referências desse cineasta, confesso que o cara conseguiu de novo me
surpreender positivamente.
Em Kill Bill Vol. 1 e 2, Quentin mostrou
todo o seu conhecimento e admiração aos antigos filmes de artes marciais,
inserindo na figura de Pai Mei e na personagem vivida por Uma
Thurman uma homenagem àquelas fitas de Kung-Fu, lembrando Bruce
Lee em O Jogo da Morte, dentre outras produções; já em À Prova de Morte demonstrou o seu amor
pelo cinema B sploitation no
projeto Grindhouse com o seu parceiro Robert Rodriguez;
em Bastardos Inglórios, por sua vez, ele
"simplesmente" alterou o curso da história para prestar uma
modesta reverência aos filmes de guerra, além de oferecer a tão sonhada
vingança que muitos desejavam: matar, ou melhor, metralhar e trucidar Adolf
Hitler.
Diante dessa escalada ao topo do sucesso, festejado e aclamado pela
crítica e por boa parte do público mundo afora, o cineasta chega a Django
Livre trazendo uma expectativa gigantesca em torno da nova
produção. Mais uma vez alguns críticos notoriamente invejosos ou com sangue de
barata - aqueles que não conseguem elogiar mesmo e não dão o braço a torcer -
assim classificaram o filme: "não foi dessa vez que Tarantino fez
um filme ruim". Por que não dizer que o filme é bom?! Ou melhor: que o
filme é excelente! Para alguns, opinar sintetizando o pior de uma obra é sempre
mais fácil do que elogiar.
Essas colocações são oportunas para contextualizar o infeliz e ignorante
comentário do diretor Spike Lee (Malcom X), à época,
quando disse que o filme é desrespeitoso mesmo sem ter assistido; e o pior,
declarou ainda que nem tem a intenção de vê-lo. Jamie Foxx, que saiu em
defesa do diretor, afirmou que esse tipo de declaração é irresponsável e
desrespeitosa, pois falar que algo não presta sem ter conhecimento é o mais
puro preconceito.
Contudo, polêmicas à parte, seja pela facilidade em escrever diálogos e
roteiros tão afiados quanto inteligentes; seja pela forma que o diretor conduz
os seus filmes, tornando cada cena importante à trama, impulsionando a
narrativa sempre para frente e, assim, eficientemente orgânico, Tarantino é
um dos poucos cineastas vivos que consegue me prender na cadeira com tanta
intensidade e vibração. Quando tudo induz e conduz o espectador para se deixar
levar por um possível plano "razoável" apresentado pelos personagens;
quando tudo parece lógico e natural, aí vem o tempero "tarantinesco"
e mostra que nem tudo é o que aparenta. O acaso, o improviso e a vingança
são temáticas-irmãs que dialogam fortemente nos roteiros do idealizador.
Na verdade, o cineasta continua mantendo o humor e as suas gags como
válvula de escape em algumas determinadas sequências, sem esquecer do peso,
seriedade e sobriedade nos momentos dramáticos e violentos. O polêmico sadismo só
aparece quando ele bem quer e na hora exata de acontecer.
Mas é em Django Livre, sua obra com uma
estrutura narrativa mais linear até agora, que revisitamos o velho-oeste,
gênero pelo qual o cineasta é aficionado desde criança. A trama traz Django (Jamie
Foxx) como um escravo libertado pelo alemão Dr. Schultz (Christoph
Waltz, soberbo), um ex-dentista eloquente e malandro que se tornou
caçador de recompensas. Schultz precisa de Django para
um propósito: localizar três criminosos procurados pela Justiça. Em troca, ele
terá sua liberdade.
Contudo, o objetivo final de Django,
após cumprir este trato, é resgatar a esposa Broomhilda (Kerry
Washington) das garras do presunçoso Calvin Candie (Leonardo
DiCaprio), proprietário de Candieland, uma fazenda
algodoeira onde escravos são treinados para participar de lutas ferozes
conhecidas como Mandingo – uma espécie de MMA ultra-violento.
Aqui, Tarantino não deixa de dar uma
cutucada/criticada nesse esporte que, guardada as proporções, tem a mesma
conotação dos dias atuais daquela apresentada no filme, ou seja, negociar e
patrocinar pessoas como mercadorias. Interpretações à parte, sentindo-se
responsável pelo escravo recém-alforriado, Schultz resolve
acompanhá-lo nesta perigosa jornada que guarda muitas surpresas para ambos.
Curiosamente, o nome do protagonista
foi escolhido em referência a Django, produção
italiana dirigida por Sergio Corbucci em 1966 estrelada por Franco
Nero, que faz uma pequena, divertida e metalinguística participação no
longa. Outras alusões ao faroeste spaghetti estão nos zooms forçados,
letreiros com fontes características do gênero e nas deliciosas faixas musicais
do grande compositor Ennio Morricone – usual
colaborador de Sergio Leone, diretor que difundiu e elevou o
(sub)gênero.
Não menos inusitada foi a decisão de Tarantino - que tem um gosto
bem peculiar para música - em inserir hip-hops e souls na
trilha sonora. A inserção e adaptação dessas levadas black music em
um filme de época ficou interessantemente paradoxal. Anacrônico,
contextualmente, o estilo musical constata e demonstra ao espectador o
progresso, relevância e riqueza da cultura negra, bem como o seu atual status
social, bem diferente, diga-se de passagem, dos tempos de outrora. Observe que
em dado momento, Django cavalga imponente, com nariz empinado
e postura ereta, ao som das batidas de hip hop, comandando alguns
escravos, como se dissesse: vocês estão nessas condições também porque se
permitem estar.
Vencedor de dois Globos de Ouro (Melhor
Roteiro e Melhor Ator Coadjuvante), Django Livre recebeu
cinco indicações ao Oscar: Melhor Filme, Roteiro Original, Fotografia, Edição
de Som e Ator Coadjuvante (Christoph Waltz). Embora Waltz tenha
um desempenho memorável tão intenso quanto o seu Coronel Landa de Bastardos Inglórios (por qual foi premiado), Leonardo
DiCaprio também merecia ser lembrado pelo seu odioso e arrogante Calvin
Candie.
O vilão transita de ingênuo
e idiota até ganhar peso, magnitude e complexidade, explodindo em atitudes
inesperadamente sádicas (detalhe para a sequência da mão cortada, ali DiCaprio se
feriu sem querer e preferiu continuar gravando). Samuel L. Jackson no
papel do subserviente e ardiloso Stephen também não fica
atrás, roubando a cena no epílogo do filme. A Academia, infelizmente, esnobou
ambos.
Outro ponto alto da projeção está na
inspiradora fotografia que contrasta a bela e alvejante plantação de algodão
com a vermelhidão sangrenta borrifada sobre ela. Sem esquecer que os flashbacks trazem
paletas um tanto mais sombrias e cinzentas, como lembranças que Django não
queria ter guardado na memória, mas que estão encrostadas lá.
Ainda no quesito técnico, o
diretor nos surpreende com o uso e abuso de slow motion nas
cenas de ação, drama ou quando cria o clima tenso para logo depois quebrá-lo,
bem ao seu estilo. O curioso é que o cineasta não tinha essa característica
visual no seu repertório.
Dessa forma, Django Livre toca em assuntos delicados, mexe em
"feridas", causa polêmica, reflexão e questionamentos. E quem disse
que isso é prejudicial? Questionar e refletir faz parte do processo
interpretativo-cognitivo de uma arte.
O fato é que no "prensar da
rapadura" e no "saltitar da pipoca", o diretor está mais
preocupado em fazer o que sabe de melhor: entreter a plateia com uma boa
história de vingança recheada da sua já habitual violência gráfica
(advinda da sua famosa e vasta cultura pop), bem como no desenvolvimento dos
personagens antimaniqueístas, capazes de diálogos tão mordazes quanto
divertidos. Tarantino, literalmente, acertou no alvo com precisão,
mais uma vez. Doa a quem doer.
Avaliação: 5,0 Pipocas + 5,0 Rapaduras = 10.