quinta-feira, 25 de setembro de 2025

​Luta de Classes


 Por Isa Barretto 

*com Spoiler

​"Luta de Classes", de Spike Lee, nos pega de surpresa desde a primeira cena. Com uma trilha sonora majestosa e imagens aéreas de uma Nova York cintilante, o filme parece prometer uma celebração à altura dos grandes clássicos de Hollywood. Mas o que se revela é uma ironia afiada. Por trás do espetáculo, Lee nos convida a uma crítica profunda, usando a própria indústria da música e do entretenimento como palco para expor contradições sociais, dilemas morais e as tensões raciais que moldam a sociedade americana.

​É nesse universo que somos apresentados a David King, interpretado por um impecável Denzel Washington. King é um magnata da música, um homem que construiu seu império capitalizando a cultura negra. Sua vida de luxo e poder vira de ponta-cabeça quando o filho de seu motorista é sequestrado por engano, confundido com seu próprio herdeiro. A partir daí, King se vê encurralado por um dilema que nem todo o seu dinheiro pode resolver: pagar um resgate milionário por um garoto que não é seu filho, ou proteger sua fortuna e viver com o peso de sua omissão.

​A genialidade de Lee está em pegar a clássica história de "Céu e Inferno", de Akira Kurosawa, e recriá-la na realidade da indústria musical dos Estados Unidos. Ele não simplesmente transpõe a trama, ele a enriquece com camadas de racismo estrutural e desigualdade social. O diretor usa a câmera para nos forçar a sentir o dilema junto com o protagonista. A repetição de cenas de diferentes ângulos transforma a escolha de King em uma obsessão para o espectador, como se a culpa fosse inescapável. É uma escolha formal que traduz visualmente o peso das decisões e nos coloca no centro da consciência do personagem.

​A trilha sonora do filme também merece destaque, funcionando como um verdadeiro comentário político. O rap, como voz das ruas, traz a resistência e a crítica, enquanto o soul e o jazz servem como ecos da tradição musical negra que foi apropriada pela indústria. 

​No epicentro de tudo isso, Denzel Washington entrega uma performance de precisão cirúrgica. Sua força não está em grandes gestos, mas em detalhes sutis: um olhar hesitante, um silêncio que diz mais que mil palavras, um corpo que treme sob o peso da escolha. Ele constrói um David King complexo, humano demais para ser simplesmente odiado, mas incômodo demais para ser admirado. É essa atuação que sustenta a complexidade moral do filme.

​No final das contas, Spike Lee nos lembra que a verdadeira luta não é apenas a do personagem contra o sequestrador. A cidade continua a brilhar, a música continua a tocar, mas o dilema de King se projeta sobre nós. O diretor, com maestria, nos força a encarar os abismos que a sociedade insiste em ignorar, mostrando que, por trás do brilho e do espetáculo, a batalha por uma sociedade mais justa continua.

quarta-feira, 17 de setembro de 2025


 Por Isa Barretto
*com spoilers

O conceito de dois tornarem-se um único nunca foi tão literal quanto em 'Together' (2025), dirigido por Michael Shanks e estrelado por Dave Franco e Alison Brie. A velha promessa romântica da “metade da laranja” ganha aqui contornos de perturbação física e psicológica: não se trata mais de metáfora, mas de corpos que se fundem, de identidades que se diluem, de fronteiras que deixam de existir.

A história apresenta Tim e Millie, um casal em reconstrução, que decide recomeçar a vida no interior. Mas, numa exploração aparentemente banal, eles se deparam com uma força estranha, capaz de uni-los de forma visceral. O que começa como proximidade e cumplicidade logo se transforma em pesadelo: cada gesto de afeto cobra um preço, cada tentativa de autonomia desencadeia dor, e a promessa de nunca mais se separar deixa de soar poética para se tornar uma prisão. A presença do vizinho Jamie, vivido por Damon Herriman, intensifica a tensão — ele é sombra do futuro, espelho do que pode acontecer quando se entrega demais ao mito da fusão absoluta.

O incômodo em Together está justamente em como expõe o romance como um terreno de risco. Shanks aposta em efeitos práticos, texturas úmidas, closes sufocantes e sons que parecem grudar na pele do espectador. A câmera nos força a olhar o que não queremos ver: a intimidade transformada em sufocamento, o carinho confundindo-se com posse. Não há cortes que aliviem, não há romantização. O resultado é a sensação de sermos cúmplices de algo que preferiríamos negar.

Franco e Brie surpreendem ao subverter a própria química de casal. A entrega é intensa e desconfortável: ele transita entre vulnerabilidade e rigidez, criando um personagem imprevisível; ela sustenta o peso emocional, resistindo ao colapso até ser arrastada pela lógica dessa fusão impossível. O trabalho dos dois é corajoso, sem vaidade, disposto a explorar o feio e o doloroso. Já Damon Herriman acrescenta um peso inquietante: seu olhar e sua presença sugerem a ruína de quem já foi consumido por essa mesma lógica, funcionando como aviso em carne viva.

A inovação do longa está em inverter o clichê do amor como salvação. Ser “um só” não é sublime, mas monstruoso. O toque que deveria curar aprisiona; a promessa de inseparabilidade revela-se pacto com o abismo. Esse movimento vai além do terror físico: é comentário incômodo sobre co-dependência, ilusões que sustentam relações e sobre como o medo da solidão pode corroer aquilo que temos de mais humano — a possibilidade de escolha.

No fim, 'Together' não oferece catarse. O que entrega é uma beleza amarga, quase deformada, ao revelar que o amor só sobrevive quando aceita a distância, o espaço e a alteridade. A fantasia de fusão, tão celebrada nas histórias românticas, surge aqui como o verdadeiro horror. É por isso que o filme permanece colado — não apenas na memória, mas na pele — como um lembrete incômodo de que o extraordinário não está em desaparecer no outro, mas em sustentar o encontro permanecendo dois, inteiros!

terça-feira, 16 de setembro de 2025

A Vida de Chuck


Por Isa Barretto 

'A Vida de Chuck' é um filme que se desenha de trás para frente, como quem, diante da morte, decide revisitar cada instante com a clareza do que realmente importa. Mike Flanagan, ao adaptar Stephen King, constrói uma narrativa que não se apoia em sustos ou efeitos, mas naquilo que é mais humano: a consciência de que somos finitos e, justamente por isso, podemos ser grandiosos. O filme começa pelo fim, pelo apagamento do mundo e da vida, e daí regressa à infância do protagonista, revelando não apenas um homem, mas a soma de seus gestos, de seus afetos e de sua escolha em viver de modo extraordinário diante do ordinário.

Tom Hiddleston dá corpo a um Chuck adulto que não se conforma em apenas existir. Ele escolhe encantar, escolhe dançar no meio da rua quando todos se recolhem, escolhe agradecer mesmo quando nada parece restar. E é nessa decisão de ser luminoso no escuro, de criar beleza em meio à ruína, que reside a grandeza do personagem. O extraordinário não surge de poderes sobrenaturais ou de feitos impossíveis, mas da coragem de transformar o banal em epifania, de fazer da própria vida um palco no qual multidões podem se emocionar.

A direção de Flanagan nos lembra, com ritmo contemplativo e imagens carregadas de melancolia, que cada gesto simples é imenso quando visto da perspectiva do fim. O avô vivido por Mark Hamill amplia essa dimensão, ao trazer nas entrelinhas a dor, o amor e os vínculos que moldam quem somos. Há poesia em cada detalhe, na forma como o tempo é tecido ao contrário, como se o filme quisesse nos dizer que só quando olhamos para trás compreendemos a delicadeza de cada camada da existência.

No fundo, 'A Vida de Chuck' é menos sobre a morte e mais sobre a escolha de viver de modo inteiro, de ser maravilhoso diante da banalidade, de transformar o ciclo da vida em um espetáculo que merece aplausos. O filme nos lembra que todos carregamos a possibilidade de ser lembrados não pelo que acumulamos, mas pelo que conseguimos transmitir: encantamento, generosidade, humanidade. E quando o fim chega — como chegará para todos — resta a certeza de que o extraordinário aconteceu, porque alguém decidiu enxergá-lo e criá-lo no meio da vida comum.

sábado, 6 de setembro de 2025

Fórmula 1


Por Isa Barretto

As luzes vermelhas se apagam, as bandeiras baixam, e o coração do público dispara junto ao rugido dos motores. Mas aqui não é apenas corrida: é cinema em estado puro de adrenalina. 'Fórmula 1' (2025), dirigido por Joseph Kosinski (Top Gun: Maverick), transforma a velocidade em espetáculo visual e sonoro, colocando o espectador dentro do cockpit, onde cada curva parece uma sentença e cada ultrapassagem, um ato de coragem.

O longa acompanha Brad Pitt como Sonny Hayes, um veterano chamado de volta às pistas para guiar o jovem talento vivido por Damson Idris. A dupla é sustentada por um elenco de peso: Javier Bardem dá corpo ao chefe de equipe, Kerry Condon brilha como a engenheira-chefe, e nomes como Tobias Menzies, Sarah Niles e Kim Bodnia completam esse mosaico de personagens que carregam o drama para além da pista.

O roteiro não se contenta em mostrar carros correndo. Ele fala de legado, de escolhas e do impacto do tempo. Kosinski conduz a narrativa com equilíbrio: deixa o barulho ensurdecedor dos motores falar, mas também nos oferece o silêncio dos boxes e a respiração contida do piloto antes da largada. É nesse contraste que o filme encontra sua força.

Tecnicamente, é um espetáculo. O som dos carros não é apenas ruído — é música, quase um cântico ritual. A fotografia ousada nos joga no meio da ação, fazendo sentir a vibração da pista no corpo. Tudo isso cria uma experiência que não se limita a impressionar, mas que busca emoção genuína.

E quando vemos arquibancadas lotadas, multidões que vibram a cada curva, é impossível não pensar nas arenas da Roma Antiga, quando cidadãos se reuniam para assistir a heróis colocarem a vida em risco diante do público. A Fórmula 1 herda esse espírito: um espetáculo moderno que mistura risco, glória e catarse coletiva.

Para os fãs, essa é uma experiência visceral. Os pilotos surgem como semideuses que desafiam a morte em busca de eternidade. E, para nós brasileiros, ouvir o eco distante do nome Ayrton Senna é reencontrar um herói que permanece vivo na memória, um mito que atravessa gerações.

No fim, 'Fórmula 1' não é apenas sobre carros em alta velocidade. É sobre superação, coragem, sacrifício e a beleza de testemunhar homens que decidiram viver como lendas. Quando os motores rugem e os "deuses" correm, nós acreditamos de novo no impossível.

quinta-feira, 4 de setembro de 2025

Eu Sei o Que Vocês Fizeram no Verão Passado (2025)

 

Por Isa Barretto

Quem não gelou ao ver a figura do pescador de capa de chuva e gancho em punho, transformando a culpa em pesadelo coletivo? Essa imagem fez de Eu Sei o Que Vocês Fizeram no Verão Passado (1997), de Jim Gillespie, um clássico imediato dos slashers dos anos 90. Com Jennifer Love Hewitt, Sarah Michelle Gellar, Freddie Prinze Jr. e Ryan Phillippe, o filme não só surfou na onda de Pânico como consolidou o vilão como ícone de uma geração.

A sequência, Eu Ainda Sei o Que Vocês Fizeram no Verão Passado (1998), de Danny Cannon, ainda segurava a mão no terror adolescente, mesmo com sinais de desgaste narrativo. O público aceitava: afinal, era verão, tinha suspense, tinha gancho, e tinha Jennifer gritando de novo.

Mas em 2025, o que a diretora Jennifer Kaytin Robinson entrega é quase uma piada de mau gosto. Trouxeram de volta Jennifer Love Hewitt e Freddie Prinze Jr. — e aí entra a pergunta: a que preço? O herói improvável das duas primeiras versões, que quase morreu várias vezes para salvar Julie, agora é transformado em… assassino? Sem motivação, sem arco, sem lógica. Que psicologia é essa? Que Freud é esse que justifica virar psicopata do nada?

Enquanto isso, o novo elenco — Madelyn Cline, Chase Sui Wonders, Jonah Hauer-King, Tyriq Withers, Sarah Pidgeon, Billy Campbell e Gabbriette Bechtel — parece ensaiar para um High School Musical versão terror, mas sem coreografia. Atuam como se a morte fosse apenas mais um teste de elenco para série adolescente da Netflix.

Tecnicamente, o filme também tropeça. A fotografia é clara demais para um terror que deveria ser sombrio. A trilha é genérica, incapaz de criar tensão. Os sustos são tão previsíveis que chegam a ser quase didáticos: o público não se assusta, apenas marca ponto no bingo do clichê.

E o pior: a “grande reviravolta” da vítima que vira vilão destrói o DNA da franquia. O original girava em torno de culpa, segredo e paranoia. Aqui, tudo se resume a um twist mal feito, que mata a coerência e sepulta a memória dos filmes anteriores. O pescador com gancho já não assusta — virou objeto de cena, quase decorativo.

Ou seja: o novo Eu Sei o Que Vocês Fizeram no Verão Passado não é apenas ruim. Ele é uma aula involuntária de como desrespeitar uma franquia e ainda tentar vender nostalgia como justificativa. No fim, só resta rir, porque alguns verões deveriam ser lembrados… e outros quem sabe deveriam ser enterrados de vez.

quinta-feira, 28 de agosto de 2025

Amores Materialistas


Por Isa Barretto

Qual é o meu valor no mercado dos encontros? Depende da minha altura, da cor dos meus olhos, do tom do meu cabelo? 'Amores Materialistas' parte dessa provocação: a ideia de que a aparência física e o pacote social que carregamos respondem por 80% das nossas chances de conquistar o “par perfeito”. Mas será que chegamos mesmo a esse ponto? Ou estamos apenas tentando transformar o amor em mais um produto a ser vendido, avaliado e comparado?

Dirigido por Celine Song, o filme acompanha Lucy (Dakota Johnson), uma casamenteira de sucesso que organiza encontros como quem monta uma prateleira de supermercado: altura, renda, estilo de vida e até carisma entram na conta. Só que, fora do trabalho, ela própria acaba presa ao mesmo jogo, dividida entre dois homens que parecem resumir esse dilema: o milionário carismático (Pedro Pascal), que representa estabilidade e status, e o ex-namorado ator (Chris Evans), cheio de falhas, mas carregando a imprevisibilidade do desejo.

Logo no início do filme, uma cena simples já dá o tom: um homem na pré-história corteja uma mulher oferecendo um presente. É apenas um buquê de flores, seguido de uma aliança feita com a mesma flor — mas o importante é o gesto, que carrega um simbolismo profundo: a promessa, o desejo de unir-se a alguém. A partir dali, o filme deixa claro que, por mais que o tempo mude, por mais que os aplicativos e as métricas dominem o “mercado amoroso”, seguimos movidos por símbolos antigos. Decidir casar, se unir, estar com alguém, ainda é menos sobre cálculos e mais sobre a necessidade de compartilhar a vida. Afinal, de nada adianta ter tudo se não existe com quem dividir.

É nesse contraste que a comédia romântica encontra sua força. Porque, entre risadas e diálogos ácidos, o filme cutuca uma ferida real: quantas vezes nós também já reduzimos alguém a um detalhe físico, a uma foto de perfil ou ao número na conta bancária? O desconforto é inevitável, porque Amores Materialistas não fala apenas sobre Lucy, mas sobre todos nós tentando equilibrar amor e conveniência em um mundo que insiste em transformar sentimentos em transações.

O mérito de Song é mostrar que o amor não é fórmula. Não existe planilha capaz de prever os caminhos do coração. Lucy não é fútil, seus pretendentes não são rascunhos de arquétipos: são pessoas tentando amar em meio ao ruído da modernidade. Por isso, o filme diverte, mas também incomoda. Ele nos lembra que, embora possamos criar filtros e critérios, sempre haverá algo de imponderável nos sentimentos — e é justamente isso que os torna reais.

No fim, 'Amores Materialistas' é sobre essa ironia: podemos até tentar brincar de mercado, mas o coração nunca se deixa precificar. Antoine de Saint-Exupéry em 'O Pequeno Príncipe': “o essencial é invisível aos olhos.”

quarta-feira, 27 de agosto de 2025

Na Netflix - A Noite Sempre Chega


Por Isa Barretto

"Situações extremas exigem medidas desesperadas". Essa máxima não poderia combinar tanto em um filme como em 'A Noite Sempre' Chega (Night Always Comes), dirigido por Benjamin Caron e protagonizado por Vanessa Kirby, que entrega uma atuação intensa e vulnerável. O longa mergulha na escuridão da condição humana ao colocar sua personagem diante de escolhas impossíveis, revelando como a necessidade pode corroer valores e redefinir os limites da sobrevivência.

A trama acompanha uma mulher que, durante uma única noite, precisa levantar o dinheiro necessário para garantir seu futuro, o da mãe e do irmão. O que começa como uma tentativa de resolver uma urgência financeira logo se transforma em uma corrida contra o tempo, marcada por negociações perigosas, dilemas éticos e o peso psicológico de cada decisão. A escolha de Kirby intensifica ainda mais o contraste: loira, magra e com uma beleza marcante, ela destoa do perfil mais comum daqueles que carregam na pele as marcas da desigualdade — e justamente por isso sua presença ressalta o abismo entre aparência e realidade social.

Mas a força do filme não está apenas na urgência material. Quando não se tem nada além das memórias, até onde somos capazes de ir para mantê-las? Para Lynette, a casa não era só paredes e telhado: era a lembrança de um tempo de pureza, de uma infância em que podia ser apenas uma criança antes que os traumas a marcassem. Essa ligação afetiva transforma a busca por dinheiro em algo ainda mais doloroso, pois cada obstáculo não representa apenas o risco de perder um imóvel, mas de ver desmoronar a última lembrança de felicidade que lhe restava.

A protagonista não é nem heroína nem vilã: é uma mulher comum, atravessada por urgências materiais, traumas e falta de opções. O roteiro constrói sua jornada como uma espiral: cada decisão a empurra para um corredor ainda mais estreito, onde a saída parece sempre exigir um preço maior do que o anterior. Essa arquitetura dramática sustenta a tensão e funciona como metáfora amarga: quando o jogo é desigual, até as rotas de fuga já vêm sabotadas de origem.

A cidade noturna assume papel de antagonista. As ruas são vazias e os interiores claustrofóbicos — tudo parece conspirar para aumentar a fricção moral a cada encontro. A fotografia investe em contrastes que transformam a noite em uma presença não só ativa, mas opressiva, enquanto a montagem mantém o pulso acelerado sem perder o fôlego emocional. Kirby ancora o filme com um trabalho de corpo contido e olhar em brasa: ela não “explica” a personagem; ela a encarna.

Como comentário social, o longa prefere o desconforto ao panfleto. Em vez de discursos, oferece circunstâncias em que a necessidade reconfigura a ética, revelando a hipocrisia de sistemas que fabricam o desespero e depois punem quem tenta sobreviver a ele. O incômodo não é só deliberado — é necessário.

Ao final, fica uma sensação áspera: quando as opções se reduzem a nada, qualquer gesto de vida soa como crime. 'A Noite Sempre Chega' não pede absolvição; exige que olhemos para a sombra — e reconheçamos ali o que há de humano nela.

sexta-feira, 22 de agosto de 2025

Extermínio - A Evolução

Por Isa Barretto

Quando pensamos em filmes de zumbis, logo vem à mente o caos absoluto: sobreviventes em fuga, perseguições incessantes e um espetáculo de sangue. O gênero se consagrou nesse frenesi de destruição, mas 'Extermínio: A Evolução', dirigido por Danny Boyle, segue por outro caminho. Sem ignorar a brutalidade, o filme aposta em uma abordagem rara: íntima, intensa e profundamente humana. O medo está presente, mas é o afeto que guia a trama — e é no meio do horror que o amor revela sua força.

No centro dessa história está Spike, interpretado com emoção por Alfie Williams. À primeira vista frágil e inseguro, o garoto se transforma em símbolo de resistência. Ele atravessa a floresta com a mãe debilitada (Jodie Comer) em busca do último médico sobrevivente, vivido por Ralph Fiennes. A cada passo, Spike carrega o medo, mas também a coragem de quem ama. Aaron Taylor-Johnson completa a família no papel do pai — rígido por fora, mas com fissuras de humanidade. Visto por Spike como um herói, ele perde esse posto ao falhar diante da mãe, e essa quebra redefine para sempre a relação entre pai e filho.

O pano de fundo é tão inquietante quanto os dramas pessoais. O vírus evolui, criando diferentes tipos de infectados — rastejantes e alphas brutais. Já os humanos, acuados pela incerteza, se dividem em facções de sobrevivência com regras duras, onde qualquer contato externo é visto como ameaça. O medo da contaminação não só distancia os corpos, mas também fragmenta a convivência.

Ralph Fiennes dá vida a um médico recluso e pragmático — não é salvador nem vilão. Ele oferece o cuidado possível, com humanidade e limites claros, sem prometer milagres. Sua presença sustenta a tensão na medida certa e reforça sua versatilidade como ator.

O roteiro de Boyle e Alex Garland mantém o espectador em uma corda bamba: a esperança surge, mas logo se dissolve. A cada nova virada, parece haver uma chance de futuro — até que ela é arrancada, de repente diante do espectador. Essa oscilação entre a expectativa e o desespero torna a jornada de Spike ainda mais intensa.

A fotografia de Anthony Dod Mantle reforça esse contraste: florestas verdes que de repente se tornam palco de caos, como se a natureza também estivesse em colapso. Em vários momentos, a câmera se aproxima da simplicidade de um documentário, ampliando esse desconforto. A trilha de John Murphy acompanha essa cadência, alternando entre o silêncio contido e explosões sonoras que remetem a gritos, acelerando o coração e transformando a música em parte essencial da narrativa.

'Extermínio: A Evolução' se diferencia justamente por unir o terror físico ao drama humano. O horror não está só nas ruas devastadas, mas também no corpo que muda e na sociedade que se fragmenta. Boyle entrega mais do que um filme de zumbis: ele propõe um retrato direto da nossa natureza, em que medo e esperança se alternam como forças invisíveis.

Agora a pergunta que não quer calar : se o vírus continua a evoluir e a sociedade a se fragmentar, o que nos resta afinal: a esperança de preservar nossa essência ou a certeza de que também estamos destinados a ruir?

quinta-feira, 21 de agosto de 2025

NOS CINEMAS - Faça Ela Voltar


Por Isa Barretto

O que existe entre a vida e a morte?
Talvez seja só o luto. Talvez seja o amor gritando no escuro. Talvez seja o ponto exato onde a dor vira obsessão — e a obsessão vira loucura.

Em 'Bring Her Back', (Faça ela voltar), os irmãos Philippou não nos entregam um monstro. Entregam algo pior: uma mãe incapaz de aceitar que a filha morreu. E que, em vez de enterrar o passado, decide recriá-lo — do jeito mais cruel e silencioso possível. Sally Hawkins é Laura, e sua atuação é um abismo. Ela não grita, não quebra pratos, não corre pelos corredores. Sua loucura é metódica, fria e doce. Laura acolhe, oferece chá, fala baixo... mas a casa que ela construiu é um altar para os mortos. E ninguém que entra ali sai o mesmo.

Andy (Billy Barratt) e Piper (Sora Wong) são as novas presenças nesse teatro do luto. Para Laura, eles não são crianças órfãs — são peças. Partes de um experimento emocional e espiritual para reconstruir a filha que perdeu. Ela os observa, molda seus comportamentos, tenta substituir o que foi embora. E quando a realidade insiste em mostrar sua face, ela fecha as cortinas com mais força.

Mas 'Faça ela voltar' não é apenas sobre luto. É sobre os traumas inevitáveis — e o que cada um faz com eles para continuar respirando. Andy, em silêncio, carrega marcas invisíveis das violências do pai. Ele protege Piper, tentando poupá-la da verdade. Mas nada o poupa da perda traumática e irreparável que virá. Piper, por sua vez, vive o peso de ser uma adolescente com deficiência visual, alvo constante de exclusão e bullying. E então há Laura — que, incapaz de sobreviver à morte da filha, decide que, se o mundo não a devolve, ela mesma irá recriá-la. Nem que para isso precise destruir outras vidas.

Nesse cenário, os traumas não são apenas tema — são personagens. Eles estão em cada gesto contido, em cada silêncio pesado, e até mesmo nos sons. O barulho de um chuveiro ligado, o tilintar insistente de uma pulseira batendo na mesa — nada está ali por acaso. Cada som é um gatilho. Uma lembrança. Um assombro. O som aqui é ferida aberta.

A direção dos Philippou é precisa ao construir esse labirinto emocional. A casa de Laura é um personagem por si só: abafada, parada no tempo, cheia de pequenos detalhes que sugerem que o passado nunca foi deixado ir. Mas é na forma como eles nos arrastam para a mente de Laura — nos colocando dentro de sua visão deturpada, porém dolorosamente compreensível — que o filme arrepia de verdade. Não pelo susto, mas pelas circunstâncias.

'Bring Her Back' é sobre o que acontece quando o trauma não cicatriza. Quando o amor ultrapassa o limite do cuidado e se torna prisão. Quando a dor ganha voz e decide escrever o roteiro. Um filme para quem entende que os traumas são inevitáveis — mas que seguir adiante é uma escolha. E que há quem, infelizmente, prefira continuar presa à dor... mesmo que isso custe tudo.

segunda-feira, 11 de agosto de 2025

NOS CINEMAS - A Hora do Mal

 

Por Isa Barretto

Há antigas histórias e contos sobre forças capazes de seduzir e conduzir crianças para longe, retirando-lhes a vontade e o discernimento, como se o mundo ao redor perdesse importância. A 'Hora do Mal' resgata esse imaginário de forma velada, mas inquietante. Desde os primeiros minutos, paira sobre o filme uma sensação de manipulação invisível — algo, ou alguém, move os personagens como peças num tabuleiro que só o “jogador” enxerga por inteiro.

A trama se desenrola em uma cidade aparentemente normal, com todas as suas figuras conhecidas: a escola, o comércio, as famílias, a polícia e até aqueles que vivem à margem da sociedade. Esse cenário “comum” é um dos elementos mais perturbadores do filme, pois os acontecimentos não surgem em um lugar isolado ou exótico — eles nascem no coração do cotidiano, onde todos acreditam estar seguros. Um dia, às 2h17, dezessete crianças somem sem deixar rastros, restando apenas uma sobrevivente, Alex. A partir desse ponto, a trama se abre em diferentes perspectivas, revelando não só o mistério por trás do evento, mas também as culpas, os segredos e a tensão que passam a dominar a comunidade.

O diretor e roteirista Zach Cregger, que veio da comédia — assim como Jordan Peele —, traz para o terror um domínio surpreendente sobre o equilíbrio entre tensão e alívio. Em alguns pontos, insere doses precisas de humor, não para quebrar o clima, mas para torná-lo ainda mais desconfortável. É o tipo de riso que surge em momentos inoportunos, como se a vida seguisse seu curso mesmo quando tudo à volta está prestes a ruir.

Ao explorar diferentes pontos de vista, o filme expõe as fissuras desse microcosmo social. O colégio prefere “abafar” os fatos em vez de encará-los. Os pais carregam arrependimentos, ora por ausência, ora por negligência. Professores se tornam bodes expiatórios, punidos para que outros possam se eximir de responsabilidade. A polícia, falha tanto na aparelhagem quanto no preparo, tropeça diante da urgência. E o morador de rua, símbolo de quem vive à margem da exclusão, carrega informação e intenção de ajudar, mas é silenciado pela invisibilidade social.

O roteiro é paciente e calculado. Não corre para entregar respostas. Dá tempo para que cada personagem se apresente, permitindo que suas contradições e fragilidades venham à tona. É nesse ritmo que cenas aparentemente simples ganham peso simbólico. A corrida — com o corpo projetado para frente, veloz como uma flecha — é uma delas. À distância, parece liberdade; de perto, percebemos que é deslocamento dentro de limites invisíveis, um impulso que nunca leva para fora.

A montagem reforça a sensação de fragmentação. As perspectivas se alternam como peças de um quebra-cabeça imperfeito, onde cada corte revela mais sobre a subjetividade de quem vive a cena do que sobre o fato em si. Isso cria uma tensão constante: a sensação de que a história completa está ali, mas fora do nosso alcance.

A luz, a sombra, o silêncio e a constante sensação de algo à espreita criam um clima de antecipação que inquieta. O medo aqui não vem apenas do que aparece, mas do que se anuncia — e essa espera pelo que está por vir é o que realmente assusta.

Nas atuações, Julia Garner entrega uma personagem vulnerável, dividida entre sucumbir à culpa que lhe é imposta e se afundar num ciclo de autopiedade ou enfrentar o que a cerca e ajudar a desvendar o mistério. Josh Brolin, por sua vez, interpreta um homem imerso na culpa de não ter demonstrado todo o amor que sentia; sua busca por respostas é incessante, e cada pista que encontra é uma tentativa desesperada de se aproximar do filho — nem que seja nos sonhos recorrentes que o assombram. O elenco de apoio sustenta a densidade do filme, com personagens que se integram organicamente à história, cada um trazendo um fragmento de verdade que mantém o espectador em alerta.

No fim, 'A Hora do Mal' é horror em estado puro — não apenas pelo clima de tensão constante, mas também pelas imagens que ficam gravadas na mente, capazes de causar desconforto muito depois de a sessão acabar. É intenso, inquietante e perfeito para ser sentido na sala escura, onde cada som, cada sombra e cada impacto visual ganham força máxima! Fica a dica!

quinta-feira, 7 de agosto de 2025

Filmes da Vida -Orgulho e Preconceito (2005)

 

Por Isa Barreto

Vinte anos atrás, o diretor britânico Joe Wright estreava no cinema com uma missão desafiadora: adaptar um dos romances mais amados da literatura inglesa, 'Orgulho e Preconceito', de Jane Austen. O que poderia ter sido apenas mais uma releitura de época se transformou, nas mãos dele, em uma experiência sensorial e emocional que atravessou o tempo.

De cara, a estética saltava aos olhos. A câmera de Wright deslizava pelos salões e campos com fluidez e ousadia nas sequências de neblinas simbólicas e silêncios significativos. Era um romance de época filmado como se fosse uma coreografia emocional. E foi essa linguagem cinematográfica que dividiu algumas opiniões na época, mas que hoje é o que mais faz esse filme se destacar e se manter tão vivo.

Keira Knightley, aos 20 anos, entregou uma Elizabeth Bennet de espírito indomável, com o olhar afiado e a ironia nos lábios. Uma Lizzie moderna sem ser anacrônica. Forte, mas profundamente humana. Sua atuação lhe rendeu uma indicação ao Oscar de Melhor Atriz — e ajudou a redefinir o que o público esperava de heroínas de época.

Matthew Macfadyen, até então um nome pouco conhecido, reinventou o Sr. Darcy. Ao contrário do Darcy impetuoso e contido eternizado por Colin Firth na BBC em 1995, o de Macfadyen é mais introspectivo, vulnerável, quase hesitante. Mas é justamente essa contenção — esse amor sufocado, esse orgulho desmontado aos poucos — que torna seu Darcy tão memorável. Quando enfim declara: "Você me enfeitiçou de corpo e alma", é impossível não se render.

A primeira vez que assisti a 'Orgulho e Preconceito' eu era adolescente. Me deixei levar pela beleza das imagens, pelos diálogos que soavam como flechas gentis, e por aquele romance que surgia devagar, como quem aprende a dançar sem encostar os pés no chão. Tudo parecia mágico, quase inalcançável. Mas foi ao revisitar o filme com outras vivências que entendi sua verdadeira força: não era só sobre beleza — era sobre amadurecimento. Sobre orgulho, sim, mas também sobre coragem. Sobre como a gente muda quando escolhe escutar em vez de reagir. Cada novo olhar trouxe um sentido diferente — e foi nesse processo silencioso que ele se tornou um dos filmes da minha vida.

O roteiro de Deborah Moggach, com polimentos de Emma Thompson , foi certeiro ao manter a essência da obra de Austen, mas trazendo um ritmo mais acessível para novos públicos. Os diálogos fluem com a leveza que esconde a profundidade: uma crítica aos julgamentos apressados, às aparências sociais e às limitações impostas às mulheres.

L

A crítica da época, embora majoritariamente positiva, teve suas ressalvas: alguns disseram que era esteticamente mais bonito do que profundo. Mas o tempo — esse crítico final — mostrou que estavam errados. O filme envelheceu com elegância. Continuou a encantar. E, para muitos, se tornou a versão definitiva da história no cinema.

'Orgulho e Preconceito' (2005) não é apenas um romance.

É um estudo sutil sobre como a gente aprende a amar melhor.

Sobre escutar antes de julgar.

Sobre mudar — não por alguém, mas por merecer ser merecido.

Vinte anos depois, o filme ainda pulsa.

Ainda há quem o reveja só pela cena do campo, com Darcy caminhando na névoa do amanhecer, onde o amor chega não com promessas, mas com presença.

E onde o silêncio fala mais alto que qualquer declaração.

'Orgulho e Preconceito' não envelheceu. Ele amadureceu.

E se tornou um clássico para quem ainda acredita que amor de verdade exige tempo, escuta e coragem.

terça-feira, 5 de agosto de 2025

Nos Cinemas - Quarteto Fantástico: Primeiros Passos

Por Isa Barreto

'Quarteto Fantástico – Primeiros Passos' marca o retorno de uma das equipes mais icônicas dos quadrinhos ao cinema, mas desta vez com um cuidado que nunca antes havia sido visto nas adaptações anteriores.A Marvel entende que não basta mostrar poderes impressionantes: o público precisa sentir quem está por trás deles. E é justamente por esse caminho mais humano, mais emocional e menos frenético, que o filme encontra sua força.

Desde sua criação em 1961, o Quarteto sempre representou algo diferente dentro do universo da Marvel: uma família, um grupo que convive com as próprias falhas, que briga, que se reconcilia, que se transforma — por dentro e por fora. Eles não são os mais poderosos, nem os mais populares, mas são os que mais carregam o peso do que é ser humano diante do desconhecido. E esse espírito está muito presente nesta nova versão.

A direção de Matt Shakman, que já havia explorado com competência emoções profundas em 'WandaVision', aposta novamente no poder do silêncio, do olhar, das conversas difíceis. Ele não tem pressa de mostrar os heróis em ação. Prefere, primeiro, nos fazer sentir suas dores, seus medos, suas rupturas. Isso faz com que a construção da equipe seja gradual, com tempo para o público se conectar a cada personagem individualmente — uma abordagem que, infelizmente, nem sempre tem sido priorizada no Universo Cinematográfico da Marvel.

Pedro Pascal assume o papel de Reed Richards com a serenidade de quem sabe que inteligência não resolve tudo. Seu Senhor Fantástico é um homem dividido, marcado por escolhas que afetam não apenas o mundo, mas as pessoas que ele ama. Vanessa Kirby, como Sue Storm, se torna o centro emocional do filme. Ela é o elo que tenta manter tudo em equilíbrio, mesmo quando tudo está prestes a desmoronar. E faz isso com uma atuação contida, mas poderosa, como se cada gesto carregasse um pedaço da história daquela família. Joseph Quinn, conhecido pelo carisma rebelde em 'Stranger Things', traz para Johnny Storm a chama certa entre provocação e vulnerabilidade. Ele é o mais impulsivo, o mais intenso, mas também o mais perdido. E Ebon Moss-Bachrach entrega uma versão do Coisa que comove sem precisar de exageros. Ben Grimm é força e solidão. É alguém que perdeu sua auto estima para continuar lutando. 

Os efeitos especiais estão lá, sim — e funcionam muito bem diga-se de passagem. Mas é quando o filme nos leva para dentro da dor, da dúvida e da busca de identidade de cada um que ele realmente se destaca. Não é uma história sobre poderes, é sobre como lidar com as consequências deles. E essa é uma escolha narrativa que valoriza o legado original do grupo nos quadrinhos, ao mesmo tempo em que posiciona o filme de forma madura dentro do Universo Cinematográfico da Marvel.

Mas o ponto que realmente humaniza esta história — e que a distancia dos filmes anteriores — é a decisão central dos personagens: eles escolhem a família. Quando Galactus surge como uma ameaça cósmica e impõe uma escolha devastadora, Reed e Sue se negam a entregar seu filho, Franklin, mesmo que isso signifique colocar tudo em risco. É nesse momento que o filme mostra que, acima de tudo, esses heróis são pais, irmãos e amigos. E que o verdadeiro heroísmo, às vezes, está em dizer “não” à lógica, em proteger quem se ama, mesmo diante do incontrolável.

Há ainda presenças importantes para os fãs mais atentos. A introdução de Shalla-Bal, uma versão alternativa da Surfista Prateada vivida por Julia Garner, adiciona camadas cósmicas à trama sem roubar o protagonismo do quarteto. E a figura ameaçadora de Galactus, interpretada por Ralph Ineson, cumpre seu papel como o grande desequilíbrio da balança entre o íntimo e o épico.

'Quarteto Fantástico – Primeiros Passos' pode não ser o filme mais barulhento da Marvel, mas talvez seja um dos mais necessários. Ele resgata a essência de quem esses personagens são, muito além das capas e dos poderes. Com atuações sólidas, uma direção sensível e um roteiro que respeita a inteligência emocional do público, o filme prova que, às vezes, o mais fantástico está em ser real.

sábado, 2 de agosto de 2025

Nos Cinemas - Lilo & Stitch


Por Isa Barretto 

Os desenhos da Disney marcaram gerações. Com traços simples, histórias emocionantes e uma pitada de magia, eles tocaram o coração de milhões de crianças pelo mundo. “Lilo & Stitch”, lançado originalmente em 2002, é um desses clássicos que, mesmo sem a pompa de princesas ou castelos, conquistou com sua essência única: a de uma família quebrada que se reconstrói através do afeto – ainda que esse afeto venha de um alienígena azul altamente destrutivo.

A chegada da versão live action reacendeu a expectativa em dois públicos bem distintos: os adultos que foram crianças naquela época e cresceram com a expressão "ohana significa família", e as crianças de hoje, que talvez estejam tendo seu primeiro contato com a história. O desafio era enorme – afinal, como emocionar novamente sem perder a autenticidade do original?

Mas o resultado infelizmente escorrega em um ponto fundamental: a falta de conexão do roteiro. O que antes era uma história recheada de silêncios cheios de significado, olhares que diziam muito, e uma trilha sonora havaiana embebida em saudade e pertencimento, agora se perde em uma narrativa apressada, onde o impacto emocional é substituído por explicações óbvias e diálogos rasos.

Na animação, Lilo era mais do que uma criança "estranha" – ela era solitária, sensível, desajustada em um mundo que exige encaixe. Sua dor e o esforço de sua irmã Nani em criá-la sozinha após a morte dos pais são palpáveis. Já no live action, essas camadas parecem diluídas. A relação das duas irmãs perde profundidade, e Stitch, que antes conquistava pela dualidade entre caos e afeto, agora é uma criatura digital bem feita , mas que pouco transmite em termos de emoção.

É é aí que o “faz de conta” da animação parece mais verdadeiro do que a tentativa de realismo nessa adaptação. Porque, por mais fantasiosa que seja, a versão animada sabe tocar onde realmente importa: no sentimento.

Claro, para quem nunca assistiu à obra original, talvez o live action funcione. É bonitinho, tem momentos engraçados e entrega uma aventura simples. Mas para quem cresceu com a versão de 2002, falta aquela lágrima que caía sem aviso quando Lilo dormia com um retrato rasgado na mão, ou quando Stitch caminhava sozinho pela floresta, murmurando que estava perdido – e pela primeira vez, desejando ser encontrado.

No fim, o novo “Lilo & Stitch” se torna apenas mais uma peça na engrenagem de adaptações que, ao tentar modernizar clássicos, acabam esquecendo que o que nos encantava não era apenas o que os olhos viam, mas o que o coração sentia. Era o afeto bordado em cada cena, como se a história tivesse sido desenhada com emoção, quadro a quadro.

E quando o real não consegue tocar tanto quanto a fantasia, o que antes era sonho se transforma apenas em mais um título no catálogo — bonito, mas esquecível.

quarta-feira, 30 de julho de 2025

Dica Disney Plus - OPERAÇÃO VINGANÇA


Por Isa Barretto

'Operação Vingança' é um thriller de espionagem intenso e surpreendente que mergulha o espectador em uma trama movida por dor, vingança e desespero. Protagonizado por Rami Malek, o filme oferece uma abordagem pouco convencional ao colocar no centro da ação um homem que, diferente dos espiões tradicionais, não é treinado para matar, mas é perigosamente motivado pela perda.

Charles Heller é um criptógrafo da CIA — um profissional analítico, acostumado a decifrar códigos em segurança, longe da linha de frente. Mas quando uma tragédia pessoal abala profundamente sua vida, Heller vê seu mundo desmoronar. Diante da inércia e da frieza institucional, ele se vê consumido por frustração e indignação. Em um gesto desesperado, decide confrontar o próprio sistema em que trabalha, exigindo ser incluído em uma operação de alto risco — mesmo sem o devido treinamento, apenas com sua determinação e inteligência. A partir daí, um civil movido pela emoção passa a operar em um universo onde tudo exige sangue-frio e cálculo — um peixe fora d’água em um mar repleto de tubarões.

Rami Malek entrega uma atuação contida e poderosa. Ele interpreta Heller com a tensão interna de alguém que não nasceu para matar, mas se vê forçado a cruzar limites morais em nome de uma justiça pessoal. Sua performance é carregada de angústia e autenticidade, sem o glamour dos filmes de ação típicos — ele erra, hesita, sofre. E isso é o que torna tudo ainda mais crível e envolvente.

Rachel Brosnahan tem uma participação breve, mas significativa, como a esposa de Heller — sua presença é o fio emocional que impulsiona toda a trajetória do protagonista. Mesmo com pouco tempo em cena, Brosnahan entrega uma atuação sensível, que marca profundamente o desenvolvimento do personagem principal. Já Laurence Fishburne interpreta um veterano da CIA, responsável por  supervisionar a missão envolvendo Heller. Com sua habitual presença imponente, Fishburne representa o peso das decisões institucionais, funcionando como âncora de racionalidade em meio à impulsividade crescente do protagonista. Sua atuação carrega autoridade, mas também um senso de pragmatismo que tensiona a relação entre ética, dever e consequência.

Sob a direção de James Hawes, conhecido por seu trabalho em séries marcantes como Black Mirror e Doctor Who, o filme mergulha em uma atmosfera densa e inquietante. Com uma fotografia de tons frios e enquadramentos que reforçam a sensação de confinamento emocional, a narrativa visual transmite tensão mesmo nos momentos de silêncio. A trilha sonora discreta, quase imperceptível em alguns trechos, intensifica o clima de suspense, instabilidade e vigilância constante.

'Operação Vingança – The Amateur' vai além da ação. Ele questiona as estruturas de poder, critica a letargia institucional e nos coloca diante da pergunta: até onde alguém pode ir quando a justiça falha? Heller não é um herói tradicional. Ele é um homem quebrado po dentro, tentando fazer justiça com as próprias mãos, mesmo sem saber exatamente como. E é justamente essa imperfeição que torna o filme tão humano.

Com performances intensas, uma direção precisa e uma narrativa que entrelaça emoção e intriga com equilíbrio raro, o filme se destaca como um dos thrillers mais envolventes do ano e já está disponível na Disney Plus. É o tipo de obra que não termina com os créditos — ela deixa no ar aquela inquietação típica das boas histórias: em quem confiar quando todos têm algo a esconder?

quinta-feira, 17 de julho de 2025

PARALELOS: 'Click' e 'Questão de Tempo'


Por Isa Barretto

A relação que temos com o tempo é, ao mesmo tempo, fascinante e inquietante. Há dias em que gostaríamos de acelerá-lo, outros em que tudo o que queremos é que ele pare por um instante. Essa tentativa de controlar o tempo — ou pelo menos entendê-lo — é o fio condutor de dois filmes muito diferentes em estilo, mas profundamente conectados em essência: 'Click' (2006), estrelado por Adam Sandler, e 'Questão de Tempo' (About Time, 2013), com Domhnall Gleeson e Rachel McAdams.

Em 'Click', Michael Newman (Adam Sandler) recebe um controle remoto universal que, além de mudar os canais da TV, permite pausar, avançar e rebobinar momentos da sua própria vida. A princípio, parece resolver todos os seus problemas: ele pula discussões com a esposa, doenças, dias difíceis no trabalho e avança direto para o que considera mais importante. Mas, ao deixar que o controle tome decisões automáticas com base em suas escolhas anteriores, Michael começa a pular justamente os momentos que não se repetem — aniversários dos filhos, conversas com o pai, pequenas rotinas que formam a memória afetiva de uma vida. Ao tentar manipular o tempo, ele se distancia da própria existência.

Já em 'Questão de Tempo', Tim (Domhnall Gleeson) descobre que os homens de sua família têm o dom de voltar no tempo, podendo revisitar e alterar momentos passados. Diferente de Michael, ele não busca atalhos para o sucesso, mas sim reviver momentos cotidianos com mais cuidado. Ao longo do filme, ele aprende que o verdadeiro poder não está em corrigir o passado, mas em aproveitar melhor o presente. E, ao contrário de Michael, que tenta acelerar o tempo para chegar a algum lugar, Tim opta por desacelerar para saborear onde está. Seu pai, interpretado por Bill Nighy, o conduz nesse entendimento com uma delicadeza que torna o filme ainda mais reflexivo.

Ambos os protagonistas têm em mãos um tipo de controle — um literal, outro mental — e ambos acreditam que dominar o tempo é uma maneira de viver melhor. No entanto, o que descobrem ao longo da jornada é que, ao tentar controlar o tempo, correm o risco de perder o que ele tem de mais precioso: a presença. 'Click' mostra a consequência de viver no piloto automático; 'Questão de Tempo' revela a beleza de viver com intenção.

No fundo, esses dois filmes nos lembram que o tempo não é algo a ser vencido, e sim compreendido. Que o valor da vida está nos instantes mais simples e nos encontros que não podem ser programados ou repetidos. Talvez a verdadeira sabedoria esteja justamente em viver por inteiro o agora — porque, no fim das contas, por mais que a gente tente, o tempo nunca está sob nosso controle.

terça-feira, 15 de julho de 2025

Bailarina - Do Universo de John Wick


Por Isa Barretto

De um bom filme de ação, esperamos mais do que tiros bem encaixados ou coreografias milimétricas. Esperamos tensão, urgência, personagens em conflito. Esperamos que a adrenalina venha com peso emocional. Que cada golpe carregue motivo. Que a fúria tenha história.

A boa ação, afinal, não é feita só de movimento — é feita de sentido.

Em 'Bailarina', de Len Wiseman, Ana de Armas entrega presença, domínio corporal e uma estética irrepreensível. Cada cena é pensada para impactar visualmente. A atmosfera é elegante, o ritmo é calculado. Mas ainda assim, algo fundamental não acontece: a conexão.

A trama acompanha Eve Macarro, uma jovem criada em uma escola secreta de assassinas após testemunhar o assassinato de seu pai. Anos depois, ela retorna para se vingar dos responsáveis, seguindo pistas que a levam ao submundo onde nada é o que parece. A premissa é simples e promissora — mas o desenvolvimento, limitado.

Os poucos diálogos que surgem não constroem pontes — pelo contrário, esvaziam ainda mais os vínculos. Em vez de aprofundar relações ou revelar camadas, parecem inseridos apenas para preencher o silêncio, sem deixar marcas nem criar conexão real.

Sem trocas entre os personagens, sem pausas que respirem emoção, a trajetória da protagonista se torna um deslocamento mecânico. A dor existe, mas não se compartilha. O vazio não é poético — é apenas vazio.

Mesmo com a presença de Keanu Reeves, o filme não ganha densidade. Ele aparece como figura de reforço, mas a trama não se beneficia desse encontro. Falta história entre eles, falta tensão real. A referência ao universo de ação ao qual o longa pertence está lá, mas não vibra.

É como se o filme soubesse de onde vem — mas não soubesse para onde está indo.

Algumas escolhas de roteiro também comprometem a imersão. Na sequência inicial, durante a invasão de sua casa, apenas dois atiradores armados na defesa. O pai, sem reforços, enfrenta-os sozinho. E quando finalmente ele esconde a filha, volta à luta, sem qualquer estratégia ou chance real de defesa.

O conflito deveria instaurar o trauma que move toda a narrativa... mas a encenação soa apressada. A ameaça parece improvisada, quase simbólica. Em vez de tensão, o que se sente é o peso de uma oportunidade dramática mal explorada.

Len Wiseman, conhecido por 'Anjos da Noite' e 'Duro de Matar 4.0', tem um estilo marcado por ação estilizada e ambientações sombrias. Em 'Bailarina', seu traço visual está presente, mas sem o suporte emocional que poderia transformar imagens em experiências.

O filme impressiona pelo visual, mas não sustenta o que promete.

O longa escolhe a superfície. E se contenta com a estética.

Mas cinema de ação de verdade é mais do que impacto visual: é carne, é nervo, é história em combustão.

E após quase duas horas de tudo isso, a pergunta que não quer calar: o que faz um filme de ação ser inesquecível? A cena perfeita ou o motivo por trás dela?


sexta-feira, 20 de junho de 2025

Dica Apple Tv Plus - Echo Valley

 

Por Isa Barretto

Echo Valley, dirigido por Michael Pearce e roteirizado com precisão por Brad Ingelsby, é um thriller contido, mas de impacto, que prende o espectador pela tensão psicológica e pela força silenciosa de suas protagonistas.

Julianne Moore dá vida a Kate, uma mulher marcada pelo luto e pela solidão, vivendo isolada em uma fazenda. Sua interpretação é poderosa justamente por não exagerar: cada olhar, cada pausa diz muito. Kate é o tipo de personagem que fala pouco, mas que deixa tudo no ar — e Moore domina isso com maestria.

Quem também impressiona é Sydney Sweeney, no papel de Claire, a filha que reaparece com um problema grave e um passado cheio de rachaduras. Sweeney traz intensidade e vulnerabilidade na medida certa, equilibrando fragilidade com impulsividade. A química entre as duas sustenta o filme do início ao fim.

O roteiro é um dos grandes acertos. Construído de forma enxuta e direta, não desperdiça palavras nem cenas. Os diálogos são carregados de tensão, e há um jogo constante entre o que é dito e o que fica subentendido. Ingelsby cria uma narrativa que se desenrola como um novelo — quanto mais o espectador puxa, mais camadas surgem, sem perder o ritmo.

A direção de Pearce mantém o tom sombrio, com uma fotografia fria e silenciosa que reflete bem o estado emocional das personagens. O uso do espaço — especialmente a fazenda tão isolada — amplifica bem o clima de claustrofobia emocional.

Apesar do ritmo mais contido, o filme nunca é arrastado. Ao contrário, ele cresce à medida que os segredos são revelados e o laço entre mãe e filha é testado até os extremos. Echo Valley trata da maternidade de forma dura e realista, mostrando que nem sempre o amor protege — às vezes, ele cega, sufoca e ultrapassa limites.

Sem recorrer a cenas forçadas ou reviravoltas artificiais, Echo Valley constrói sua força em uma tensão contínua e emocionalmente densa. O resultado é um filme que não precisa ensinar nada explicitamente — apenas nos entrega duas atrizes em performances memoráveis, guiadas por um roteiro preciso e sob medida para seu talento.

Echo Valley é um filme que merece ser assistido com atenção — e, depois, digerido com calma.

sexta-feira, 13 de junho de 2025

NOS CINEMAS - Como Treinar o Seu Dragão (live action)

 

Por Isa Barretto

Trazer de volta uma história tão querida quanto 'Como Treinar o Seu Dragão' é, no mínimo, um ato de ousadia. A trilogia animada marcou uma geração — não só por seus voos emocionantes e dragões carismáticos, mas por falar sobre crescimento, perdas, coragem e conexão. Agora, o desafio foi ainda maior: transformar esse universo mágico em algo real, quase palpável. E foi exatamente aí que o live action encontrou seu maior triunfo.

Sob a direção de Dean DeBlois, o mesmo nome por trás da animação original, o filme ganha uma nova roupagem sem perder a alma. A escolha por manter a essência dos personagens, da mitologia e das emoções foi sábia. Mas há algo de diferente aqui — algo mais maduro, mais cru, mais próximo.

Revisitar essa história ao lado do meu filho, agora pré-adolescente, foi especial de um jeito difícil de descrever. Nossa jornada com a franquia começou de forma pouco convencional: assistimos primeiro ao terceiro filme da animação, quando ele tinha apenas quatro anos. Fomos fisgados de trás pra frente — e isso só prova o quanto essa história tem força, não importa por onde se começa.

Naquela época, ele ria alto com as travessuras do Banguela e se empolgava com os voos de Soluço. Desta vez, no entanto, o silêncio dele falou mais do que as palavras. Ele assistiu com um olhar diferente, mais atento, mais tocado. Se emocionou em vários momentos. Talvez porque agora entenda melhor o que é crescer, sentir medo, mas continuar — com coragem, com afeto, com os vínculos que nos seguram quando o mundo parece grande demais.

O elenco ajuda a manter essa conexão ainda mais viva. Mason Thames, no papel de Soluço, é uma grata surpresa — entrega a vulnerabilidade do personagem com autenticidade, sem perder a curiosidade e a bravura que sempre definiram o protagonista. Nico Parker, como Astrid, equilibra força e leveza com naturalidade, construindo uma presença marcante e afetuosa. E é impossível não destacar o “sempre galã” Gerard Butler como Stoico. Sua presença impõe respeito, mas também traz calor emocional às cenas mais delicadas entre pai e filho. Juntos, o trio dá vida a relações que amadurecem diante dos nossos olhos — refletindo, com sensibilidade, as mudanças que também vivemos ao longo da vida.

O humor continua presente, naturalmente — e cumpre bem o papel de suavizar a narrativa nos momentos certos. Mas o verdadeiro coração da história sempre foi o vínculo. A amizade improvável entre um garoto e um dragão, que à primeira vista parecia impossível, permanece sendo o motor que move tudo. Só que agora ela vem com uma nova camada, mais madura, mais profunda. O filme nos lembra, com delicadeza, que até nas conexões mais inesperadas existe espaço para confiança, respeito e afeto genuíno. E é justamente isso que faz essa história continuar tão poderosa.

A fotografia é um espetáculo à parte. As paisagens naturais, com seus penhascos recortados, o mar agitado e o céu encoberto por nuvens densas, criam uma atmosfera que equilibra com delicadeza o épico e o íntimo. A Ilha de Berk, antes vibrante e colorida na animação, agora se apresenta selvagem, imponente e quase solitária, como se estivesse mais próxima do mundo real. Cada enquadramento parece esculpido pela própria natureza, revelando uma beleza crua e cativante . A fotografia não apenas compõe o cenário — ela intensifica a experiência emocional, tornando tudo mais palpável, mais próximo, mas sem jamais abrir mão do encanto da fantasia.

'Como Treinar o Seu Dragão' em live action não é apenas uma nova adaptação — é um reencontro. Com a história, com os personagens e, de certa forma, com aquilo que nos fez encantar por esse universo desde o início. A nova versão resgata a essência da animação e a apresenta com um olhar mais realista, mas ainda preserva o charme e a sensibilidade que tornaram a saga tão especial. Uma prova de que histórias bem contadas permanecem vivas — e continuam conquistando espaço no coração de quem as acompanha.


STRANGE DARLING

Por
Por Isa Barretto
Quando o Caçador e a Presa Trocam de Máscara


'Strange Darling' não é apenas um thriller psicológico. É um quebra-cabeça cuidadosamente embaralhado que se recusa a oferecer qualquer pista concreta. Desde os primeiros minutos, o filme lança o espectador em uma dança de percepções — e não demora a deixar claro: aqui, nada é o que parece.

Sob a direção de JT Mollner, a narrativa se constrói em fragmentos, como se estivéssemos observando um mesmo acontecimento refletido por diferentes espelhos quebrados. A estrutura não linear não é apenas um recurso estético, mas a engrenagem central que nos manipula — e que, muitas vezes, revela nossa cumplicidade na confusão.

O roteiro, engenhoso e provocador, nos instiga constantemente: quem está no comando? Quem é a vítima? E, afinal, onde reside a verdadeira ameaça? No centro desse nó narrativo, acompanhamos dois personagens intensos — vividos por Willa Fitzgerald e Kyle Gallner — que tornam a experiência ainda mais hipnótica.

Fitzgerald transita entre vulnerabilidade e controle, sustentando uma presença magnética que nunca entrega tudo de imediato. Já Gallner apresenta uma atuação marcada por uma tensão silenciosa, incômoda na medida certa, que nos faz questionar suas intenções a cada cena. Juntos, eles nos conduzem por um labirinto psicológico onde cada gesto, cada olhar, pode carregar um significado oposto ao esperado.

É aí que Strange Darling se sobressai: ele nos força ao desconforto. Nos obriga a revisar julgamentos apressados. Em uma sociedade moldada por expectativas de gênero — onde o homem é o predador e a mulher, a vítima — o filme desconstrói essa fórmula e expõe que a loucura, o desequilíbrio e a perversidade não têm rosto definido. Nem gênero. A insanidade aqui não segue estereótipos; ela simplesmente existe — crua, imprevisível e assustadora.

Com precisão e ousadia, o filme conduz o espectador por caminhos inesperados, lembrando a sensação provocada por Garota Exemplar (Gone Girl, 2014), ao inverter, desmontar e reconstruir a lógica das relações de poder, culpa e percepção. Mas, enquanto o filme de Fincher se apoia nas reviravoltas do enredo, Strange Darling mergulha mais fundo na essência humana — naquilo que nos faz confiar, desconfiar, rotular.

A direção sabe exatamente quando confundir e quando revelar. É um jogo de ritmo e tensão, onde o espectador é levado a tomar partido, apenas para perceber que talvez não existam lados confiáveis. A câmera se aproxima, mas nunca entrega tudo. Ela insinua. Oculta. Distorce. E é nesse jogo de luz e sombra que o filme se torna mais perturbador.

'Strange Darling' é, no fim, um espelho distorcido da nossa necessidade de impor lógica ao caos. De identificar o mal, de rotular a insanidade. Mas o filme recusa esses atalhos. Ele desconstrói o espectador tanto quanto seus personagens. E quando, enfim, chegamos ao desfecho, a sensação não é de alívio, mas de inquietação. Porque, no fundo, a pergunta que permanece não é “quem era o monstro?”, mas “por que eu achei que sabia a resposta tão cedo?”
 

quinta-feira, 12 de junho de 2025

MINHA LISTA DE LOVE STORIES | Especial Dia dos Namorados

 

Por Isa Barretto

O cinema tem o dom de transformar sentimentos em imagem, som e silêncio. E quando o tema é o amor, tudo ganha mais cor, mais ritmo e muito mais verdade.

Nesta data que celebra os afetos, reuni histórias que me marcaram — não só por falarem de amor, mas por revelarem suas muitas formas: o que começa sem aviso, o que resiste ao tempo, o que parte, o que retorna.

Não é só uma lista de filmes românticos. É uma jornada entre encontros e desencontros, entre o que poderia ter sido e o que, de fato, ficou.

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*Enquanto Você Dormia (1995)


Lucy vive sua rotina solitária em meio aos trens de Chicago, sonhando com um amor distante — até que, por engano, se vê envolvida com uma família que a acolhe como parte dela. No meio da confusão, é ali, no inesperado e no cuidado silencioso, que ela encontra o que realmente buscava: alguém que a veja de verdade.




*As Pontes de Madison (1995)



Quando Francesca conhece Robert, tudo muda em apenas quatro dias. Eles se cruzam tarde demais, mas profundamente. Sem grandes gestos, sem promessas. Um amor que não sobrevive no tempo, mas permanece eterno na memória.





*Mensagem para Você (1998)



Em tempos de livrarias de bairro e internet discada, dois desconhecidos trocam e-mails cheios de alma, sem saber quem está do outro lado. É aquele tipo de amor que cresce devagar, na sutileza, na troca de palavras. Um filme que aquece o coração e nos faz acreditar nas conexões que nascem primeiro pela escuta.




*Um Lugar Chamado Notting Hill (1999)



Ela é uma das mulheres mais famosas do mundo. Ele, um livreiro tímido em um bairro tranquilo de Londres. Quando seus caminhos se cruzam, o improvável se torna possível — e o amor aparece onde ninguém esperava. Uma história que fala sobre enxergar além das aparências e arriscar, mesmo quando tudo parece fora do alcance.




*E Se Fosse Verdade (2005)



Ele está tentando seguir a vida num novo apartamento, ela aparece do nada — e diz que o lugar ainda é dela. Só tem um detalhe: ela está em coma. Uma história que mistura leveza, humor e emoção, e nos faz lembrar que algumas conexões desafiam até a lógica. Amor, aqui, é presença mesmo sem corpo.




*A Casa do Lago (2006)



Dois moradores da mesma casa se correspondem por cartas… com dois anos de diferença entre eles. Tempo, espaço e realidade se confundem, mas o sentimento cresce com cada palavra escrita. Um filme sobre esperas, sobre encontros desencontrados e sobre a certeza de que, quando é pra ser, o tempo dá um jeito.




*Um Dia (2011)



Emma e Dexter se encontram sempre no mesmo dia, ano após ano. A vida muda, os caminhos se distanciam, mas algo entre eles permanece. Um amor que amadurece junto com os erros e os acertos. É bonito, é agridoce. E mostra que algumas histórias só fazem sentido com o tempo.





*Para Sempre (2012)



Após um acidente, Paige esquece tudo — inclusive o marido. E Leo, ao invés de desistir, decide reconquistá-la, mesmo que ela já não seja mais a mesma. Um amor testado pela memória, mas sustentado principalmente pela escolha diária de permanecer, mesmo sem nenhuma garantia.





*Ele Não Está Tão Afim de Você (2009)



Aqui, a vida real dá as caras. Personagens tentando entender os sinais, forçando situações, esperando respostas que não chegam. Um lembrete sincero (e necessário) de que nem todo sentimento vira história — e tudo bem. Porque reconhecer isso também nos prepara principalmente, para amar melhor depois.




*Um Divã para Dois (2012)



Depois de anos de casamento, a rotina vira silêncio. Mas e se o amor ainda estiver lá, quieto, esperando ser reencontrado? Com humor e delicadeza, esse filme mostra que às vezes é preciso reaprender a conversar, a tocar, a querer. Amar, aqui, é continuar escolhendo o outro, mesmo quando parece mais fácil desistir.




O amor não segue roteiro. Ele surpreende, desafia e, de algum jeito, sempre transforma!

Feliz Dia dos Namorados a todos!