Por Isa Barretto
"Situações extremas exigem medidas desesperadas". Essa máxima não poderia combinar tanto em um filme como em 'A Noite Sempre' Chega (Night Always Comes), dirigido por Benjamin Caron e protagonizado por Vanessa Kirby, que entrega uma atuação intensa e vulnerável. O longa mergulha na escuridão da condição humana ao colocar sua personagem diante de escolhas impossíveis, revelando como a necessidade pode corroer valores e redefinir os limites da sobrevivência.
A trama acompanha uma mulher que, durante uma única noite, precisa levantar o dinheiro necessário para garantir seu futuro, o da mãe e do irmão. O que começa como uma tentativa de resolver uma urgência financeira logo se transforma em uma corrida contra o tempo, marcada por negociações perigosas, dilemas éticos e o peso psicológico de cada decisão. A escolha de Kirby intensifica ainda mais o contraste: loira, magra e com uma beleza marcante, ela destoa do perfil mais comum daqueles que carregam na pele as marcas da desigualdade — e justamente por isso sua presença ressalta o abismo entre aparência e realidade social.
Mas a força do filme não está apenas na urgência material. Quando não se tem nada além das memórias, até onde somos capazes de ir para mantê-las? Para Lynette, a casa não era só paredes e telhado: era a lembrança de um tempo de pureza, de uma infância em que podia ser apenas uma criança antes que os traumas a marcassem. Essa ligação afetiva transforma a busca por dinheiro em algo ainda mais doloroso, pois cada obstáculo não representa apenas o risco de perder um imóvel, mas de ver desmoronar a última lembrança de felicidade que lhe restava.
A protagonista não é nem heroína nem vilã: é uma mulher comum, atravessada por urgências materiais, traumas e falta de opções. O roteiro constrói sua jornada como uma espiral: cada decisão a empurra para um corredor ainda mais estreito, onde a saída parece sempre exigir um preço maior do que o anterior. Essa arquitetura dramática sustenta a tensão e funciona como metáfora amarga: quando o jogo é desigual, até as rotas de fuga já vêm sabotadas de origem.
A cidade noturna assume papel de antagonista. As ruas são vazias e os interiores claustrofóbicos — tudo parece conspirar para aumentar a fricção moral a cada encontro. A fotografia investe em contrastes que transformam a noite em uma presença não só ativa, mas opressiva, enquanto a montagem mantém o pulso acelerado sem perder o fôlego emocional. Kirby ancora o filme com um trabalho de corpo contido e olhar em brasa: ela não “explica” a personagem; ela a encarna.
Como comentário social, o longa prefere o desconforto ao panfleto. Em vez de discursos, oferece circunstâncias em que a necessidade reconfigura a ética, revelando a hipocrisia de sistemas que fabricam o desespero e depois punem quem tenta sobreviver a ele. O incômodo não é só deliberado — é necessário.
Ao final, fica uma sensação áspera: quando as opções se reduzem a nada, qualquer gesto de vida soa como crime. 'A Noite Sempre Chega' não pede absolvição; exige que olhemos para a sombra — e reconheçamos ali o que há de humano nela.