quarta-feira, 27 de agosto de 2025

Na Netflix - A Noite Sempre Chega


Por Isa Barretto

"Situações extremas exigem medidas desesperadas". Essa máxima não poderia combinar tanto em um filme como em 'A Noite Sempre' Chega (Night Always Comes), dirigido por Benjamin Caron e protagonizado por Vanessa Kirby, que entrega uma atuação intensa e vulnerável. O longa mergulha na escuridão da condição humana ao colocar sua personagem diante de escolhas impossíveis, revelando como a necessidade pode corroer valores e redefinir os limites da sobrevivência.

A trama acompanha uma mulher que, durante uma única noite, precisa levantar o dinheiro necessário para garantir seu futuro, o da mãe e do irmão. O que começa como uma tentativa de resolver uma urgência financeira logo se transforma em uma corrida contra o tempo, marcada por negociações perigosas, dilemas éticos e o peso psicológico de cada decisão. A escolha de Kirby intensifica ainda mais o contraste: loira, magra e com uma beleza marcante, ela destoa do perfil mais comum daqueles que carregam na pele as marcas da desigualdade — e justamente por isso sua presença ressalta o abismo entre aparência e realidade social.

Mas a força do filme não está apenas na urgência material. Quando não se tem nada além das memórias, até onde somos capazes de ir para mantê-las? Para Lynette, a casa não era só paredes e telhado: era a lembrança de um tempo de pureza, de uma infância em que podia ser apenas uma criança antes que os traumas a marcassem. Essa ligação afetiva transforma a busca por dinheiro em algo ainda mais doloroso, pois cada obstáculo não representa apenas o risco de perder um imóvel, mas de ver desmoronar a última lembrança de felicidade que lhe restava.

A protagonista não é nem heroína nem vilã: é uma mulher comum, atravessada por urgências materiais, traumas e falta de opções. O roteiro constrói sua jornada como uma espiral: cada decisão a empurra para um corredor ainda mais estreito, onde a saída parece sempre exigir um preço maior do que o anterior. Essa arquitetura dramática sustenta a tensão e funciona como metáfora amarga: quando o jogo é desigual, até as rotas de fuga já vêm sabotadas de origem.

A cidade noturna assume papel de antagonista. As ruas são vazias e os interiores claustrofóbicos — tudo parece conspirar para aumentar a fricção moral a cada encontro. A fotografia investe em contrastes que transformam a noite em uma presença não só ativa, mas opressiva, enquanto a montagem mantém o pulso acelerado sem perder o fôlego emocional. Kirby ancora o filme com um trabalho de corpo contido e olhar em brasa: ela não “explica” a personagem; ela a encarna.

Como comentário social, o longa prefere o desconforto ao panfleto. Em vez de discursos, oferece circunstâncias em que a necessidade reconfigura a ética, revelando a hipocrisia de sistemas que fabricam o desespero e depois punem quem tenta sobreviver a ele. O incômodo não é só deliberado — é necessário.

Ao final, fica uma sensação áspera: quando as opções se reduzem a nada, qualquer gesto de vida soa como crime. 'A Noite Sempre Chega' não pede absolvição; exige que olhemos para a sombra — e reconheçamos ali o que há de humano nela.

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