*com Spoiler
"Luta de Classes", de Spike Lee, nos pega de surpresa desde a primeira cena. Com uma trilha sonora majestosa e imagens aéreas de uma Nova York cintilante, o filme parece prometer uma celebração à altura dos grandes clássicos de Hollywood. Mas o que se revela é uma ironia afiada. Por trás do espetáculo, Lee nos convida a uma crítica profunda, usando a própria indústria da música e do entretenimento como palco para expor contradições sociais, dilemas morais e as tensões raciais que moldam a sociedade americana.
É nesse universo que somos apresentados a David King, interpretado por um impecável Denzel Washington. King é um magnata da música, um homem que construiu seu império capitalizando a cultura negra. Sua vida de luxo e poder vira de ponta-cabeça quando o filho de seu motorista é sequestrado por engano, confundido com seu próprio herdeiro. A partir daí, King se vê encurralado por um dilema que nem todo o seu dinheiro pode resolver: pagar um resgate milionário por um garoto que não é seu filho, ou proteger sua fortuna e viver com o peso de sua omissão.
A genialidade de Lee está em pegar a clássica história de "Céu e Inferno", de Akira Kurosawa, e recriá-la na realidade da indústria musical dos Estados Unidos. Ele não simplesmente transpõe a trama, ele a enriquece com camadas de racismo estrutural e desigualdade social. O diretor usa a câmera para nos forçar a sentir o dilema junto com o protagonista. A repetição de cenas de diferentes ângulos transforma a escolha de King em uma obsessão para o espectador, como se a culpa fosse inescapável. É uma escolha formal que traduz visualmente o peso das decisões e nos coloca no centro da consciência do personagem.
A trilha sonora do filme também merece destaque, funcionando como um verdadeiro comentário político. O rap, como voz das ruas, traz a resistência e a crítica, enquanto o soul e o jazz servem como ecos da tradição musical negra que foi apropriada pela indústria.
No epicentro de tudo isso, Denzel Washington entrega uma performance de precisão cirúrgica. Sua força não está em grandes gestos, mas em detalhes sutis: um olhar hesitante, um silêncio que diz mais que mil palavras, um corpo que treme sob o peso da escolha. Ele constrói um David King complexo, humano demais para ser simplesmente odiado, mas incômodo demais para ser admirado. É essa atuação que sustenta a complexidade moral do filme.
No final das contas, Spike Lee nos lembra que a verdadeira luta não é apenas a do personagem contra o sequestrador. A cidade continua a brilhar, a música continua a tocar, mas o dilema de King se projeta sobre nós. O diretor, com maestria, nos força a encarar os abismos que a sociedade insiste em ignorar, mostrando que, por trás do brilho e do espetáculo, a batalha por uma sociedade mais justa continua.