quinta-feira, 25 de setembro de 2025

​Luta de Classes


 Por Isa Barretto 

*com Spoiler

​"Luta de Classes", de Spike Lee, nos pega de surpresa desde a primeira cena. Com uma trilha sonora majestosa e imagens aéreas de uma Nova York cintilante, o filme parece prometer uma celebração à altura dos grandes clássicos de Hollywood. Mas o que se revela é uma ironia afiada. Por trás do espetáculo, Lee nos convida a uma crítica profunda, usando a própria indústria da música e do entretenimento como palco para expor contradições sociais, dilemas morais e as tensões raciais que moldam a sociedade americana.

​É nesse universo que somos apresentados a David King, interpretado por um impecável Denzel Washington. King é um magnata da música, um homem que construiu seu império capitalizando a cultura negra. Sua vida de luxo e poder vira de ponta-cabeça quando o filho de seu motorista é sequestrado por engano, confundido com seu próprio herdeiro. A partir daí, King se vê encurralado por um dilema que nem todo o seu dinheiro pode resolver: pagar um resgate milionário por um garoto que não é seu filho, ou proteger sua fortuna e viver com o peso de sua omissão.

​A genialidade de Lee está em pegar a clássica história de "Céu e Inferno", de Akira Kurosawa, e recriá-la na realidade da indústria musical dos Estados Unidos. Ele não simplesmente transpõe a trama, ele a enriquece com camadas de racismo estrutural e desigualdade social. O diretor usa a câmera para nos forçar a sentir o dilema junto com o protagonista. A repetição de cenas de diferentes ângulos transforma a escolha de King em uma obsessão para o espectador, como se a culpa fosse inescapável. É uma escolha formal que traduz visualmente o peso das decisões e nos coloca no centro da consciência do personagem.

​A trilha sonora do filme também merece destaque, funcionando como um verdadeiro comentário político. O rap, como voz das ruas, traz a resistência e a crítica, enquanto o soul e o jazz servem como ecos da tradição musical negra que foi apropriada pela indústria. 

​No epicentro de tudo isso, Denzel Washington entrega uma performance de precisão cirúrgica. Sua força não está em grandes gestos, mas em detalhes sutis: um olhar hesitante, um silêncio que diz mais que mil palavras, um corpo que treme sob o peso da escolha. Ele constrói um David King complexo, humano demais para ser simplesmente odiado, mas incômodo demais para ser admirado. É essa atuação que sustenta a complexidade moral do filme.

​No final das contas, Spike Lee nos lembra que a verdadeira luta não é apenas a do personagem contra o sequestrador. A cidade continua a brilhar, a música continua a tocar, mas o dilema de King se projeta sobre nós. O diretor, com maestria, nos força a encarar os abismos que a sociedade insiste em ignorar, mostrando que, por trás do brilho e do espetáculo, a batalha por uma sociedade mais justa continua.

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