Em “It Follows” (aqui estranhamente e genericamente traduzido para “Corrente do Mal”), o diretor David Robert Mitchell se apropria de metáforas e simbolismos para criar um filme de terror sui generis. Imagine que algo assombroso está rondando uma turma de jovens e uma espécie de maldição está circulando entre eles. Mas esse subtexto não seria uma novidade para o gênero, caso não envolvesse a temática sexual e as suas consequências, como a repressão e a culpa, por exemplo.
É bem verdade que nos slasher movies de outrora, as primeiras vítimas escolhidas pelo psicopata sempre recaía sobre aquele casal que se retirava mais cedo para “dormir”. Perdi a conta de quantas vezes assisti a Jason (em sexta-feira 13) “atrapalhar” um ato sexual com uma facada atravessando as entranhas de quem estava praticando. Mas o Cinema indie de terror, atualmente, aborda este tema, ainda tão intocado por algumas famílias, revelando uma sociedade que prefere fazer vista grossa aos filhos, que crescem, inevitavelmente, sem prepará-los para a iminente explosão de hormônios que os tomará.
E não é à toa que Jay (vivida pela atriz Maika Monroe com uma performance sensualmente inocente), a jovem protagonista de 19 anos, revela apenas às amigas, no máximo à sua irmã, que está prestes a perder a virgindade com Hugh, o seu novo namorado. O que ela não sabia, entretanto, era que após o enlace sexual passaria a ser perturbada por entidades malignas, maldição essa transmitida pelo seu namorado através do próprio ato. Se por um lado, os jovens estão descobrindo o sexo, o corpo e os prazeres, no auge da puberdade - e isso é invocado quando Jay se olha no espelho e se admira, num ritual um tanto narcisista, típico dessa idade, além de se tocar constantemente, contemplando a descoberta do novo, do "proibido" - por outro lado, temos o peso de uma culpa por se permitir praticar sexo, algo tão reprimido e julgado por seus pais.
Assim, fica fácil perceber que os "fantasmas" que os perseguem assumem diferentes formas humanas, de preferência com a fisionomia de seus genitores e/ou antecessores. Ou seria uma mera coincidência o fato de algumas entidades representarem a forma da figura paterna de uma das personagens, ao julgar e atirar, literalmente, raiva, decepção e repressão contra suas presas fáceis?!
Revelando uma boa base de referências
cinematográficas, Mitchell se vale de Wes Craven, em "A Hora do
Pesadelo", ao apresentar ruas ao ermo e os perturbados jovens de Detroit,
lembrando a dinâmica de Elm Street e a sua juventude impedida de sonhar. Outra
notória referência vem de John Carpenter, o mestre do horror, quando o diretor
brinca de quem é quem, ao inserir figurantes ao fundo, extraquadro, que de
repente podem se transformar em inimigos/vilões em potencial, como se nada
passasse despercebido das lentes do diretor. Câmera esta que prefere os cortes
lentos, com raccords de tempo contemplativos, utilizando os travellings em
360°, inteligentemente, auxiliando à linguagem narrativa do filme, quando
mostra ao espectador que o perigo pode chegar de qualquer lado.
Não menos inovadora e corajosa é a fotografia escolhida para a fita. Observe que a paleta colorida e solar destoa da escuridão costumeiramente escolhida nos filmes de terror convencionais, e uma das principais sequências do filme acontece em plena luz do dia, quando menos se espera. Se bem que para a ameaça se aproximar, bastava algum olhar mais quente capaz de aflorar um desejo entre os personagens, corroborando com a nossa tese da repressão sexual.
Por outro prisma, o ponto baixo da produção fica por conta da personificação destas ameaças em forma humana, fugindo do plano metafísico para o físico, propriamente dito, já que os “fantasmas” podem ser acertados por objetos, socos e até tiros de revólver. E aí vem o pior, talvez na ânsia de tornar o produto em mãos algo mais palatável ao grande público, o diretor torna os seus vilões passíveis de tomar um tiro na cabeça, guardando nesta região o seu ponto fraco e “vital”. Alguém aí se lembrou dos mortos-vivos, de Romero a Walkind Dead, ou só eu mesmo? Talvez neste quesito o filme tire o espectador mais saudosista do foco, pois, em outros exemplares do gênero, um espírito ou entidade jamais seria acertado por algum objeto, com exceção de Ghost, é claro rsrsrs.
Contudo, merece destaque a caprichada direção de arte que nos remete à década de 70 ao inserir aparelhos de TV’s antigos, quadros e pôsteres da época. Tudo isso é ajudado com a intensa trilha sonora à base de sintetizadores monofônicos que, apesar de simples, passam um ar vintage. Porém, uma das personagens, amiga de Jay, utiliza um aparelho anacrônico para a época sugerida, uma espécie de leitor de e-book, ou tablet, em formato de maquiagem, que também serve como lanterna, acredite, objeto dotado de tecnologia impensável para aquele momento. Ora, daí extrai-se uma leitura no sentido de acreditar que aquela personagem, além de alívio cômico, está à frente do seu tempo. Em momento algum ela se transforma em alvo, se distanciando da persona feminina de suas amigas, românticas e ainda inocentes.
E nesse quesito, é emocionante perceber a romantização de Jay após a perda de sua virgindade, ao recitar, quase que poeticamente, os seus sonhos e ideais de um amor puro, como caminhar de mãos dadas com o namorado em uma tarde de outono. E o desfecho do filme, sensivelmente, nos remete a esse momento. Na verdade, o filme também dialoga com o perigo das relações desprotegidas e a proliferação das DST's (doenças sexualmente transmissíveis).
Desse modo, aquela garota que ilumina a vida de seus amigos com sua poderosa maquiagem multiuso, deslocada em seu tempo, destoando dos demais, já parece saber que, em um futuro próximo, a prevenção seria o melhor remédio para não sermos perseguidos por "monstros", sejam eles frutos da sociedade, implacavelmente hipócrita e julgadora, da promiscuidade ou da nossa própria culpa.
* Avaliação: 4,5 pipocas + 4,5 rapaduras = nota 9,0.