“O homem é produto do meio”
Coringa foi um dos filmes mais politizados do ano de 2019! E isso não é necessariamente um mérito, neste caso. Quão grande foi a minha surpresa, negativa, ao perceber que o longa de Todd Phillips apenas flertava com o terror psicológico para abraçar os entraves políticos, e seus desdobramentos, mesmo que superficialmente, de uma maneira inesperada. A questão é que o roteiro do próprio Phillips, em parceria com Scott Silver, não tem estofo suficiente para abordar estas problemáticas com a complexidade que merece, tornando o discurso muito maniqueísta e até relativamente perigoso.
Mimetizar “Taxi Driver” e “O Rei da
Comédia” é fácil, difícil é ser Martin Scorsese. E com Robert De Niro no
elenco, aliás, temos uma referência direta a estas obras, sem contar os signos
claros percebidos durante a projeção.
Assim, é lamentável observar a abordagem “preto no branco”, as diversas frases de efeito, os estereótipos criados e repisados durante a criação de um “símbolo”. Uma verdadeira ode ao vilão.
Para se ter uma ideia, por diversas vezes, me peguei pensando: quem foi o adolescente raivoso que escreveu este script?! Inacreditável o mau gosto dos roteiristas para desenvolver o gatilho da revolução dos “clowns”. Sério mesmo que “os ricos têm que morrer”, simplesmente por serem abastados; e “aquele que não for bem sucedido na vida é um palhaço”, no sentido mais pejorativo que você possa imaginar?! Sério isso?! Essas situações não me permitiram criar envolvimento com a obra, confesso.
Esperava algo mais delineado, cuidadoso, sagaz e menos direto. O anarquismo visto pelo Joker de Heath Ledger, por exemplo, em “Batman: O Cavaleiro das Trevas” (Christopher Nolan, 2008) caiu como uma luva na época, diferente do que acontece nesta reencarnação do Palhaço. Por mais que o protagonista não tenha a menor noção dos seus atos, isso despertou uma dualidade “adormecida” entre o povo massacrado pela ausência de política pública x os seus algozes (aqui leia-se: políticos, autoridades e a elite), tornando uma narrativa extremamente maniqueísta (repito) e forçada!
A impressão que se dá é de uma sociedade esquizofrênica que necessitava de um representante, a qualquer custo, e escolheu o primeiro que apareceu. E como estamos falando de Gotham City, isso não seria inviável. O Coringa, vítima desta mesma sociedade, um líder por acidente capaz de criar um estopim social de uma hora pra outra, por acaso, realmente não me desceu. Gostava mais do mistério por trás do vilão de outrora, e não a romantização autoindulgente do anti-herói presenciada aqui.
Mas nem tudo é desgraça. Joaquin Phoenix entrega uma atuação forte, desaparecendo dentro do personagem, se contorcendo, literal e gradativamente, num sujeito retraído, triste e solitário prestes a explodir. O bizarro “distúrbio do riso”, por sinal, é algo constrangedor e assustador, ao mesmo tempo, algo que o excelente ator trabalha com genialidade por meio de uma incrível linguagem corporal, encontrando uma saída inteligente para a icônica risada do vilão.
Tudo isso auxiliado pela ótima composição sonora de Hildur Guðnadóttir ao estabelecer tensão na utilização de violoncelos distorcidos, arranhando o juízo do público, bem como ao inserir batidas enervantes de “tic-tac” ao fundo, numa clara alusão a uma “bomba-relógio”.
Nesta pegada, o suspense toma uma crescente angustiante e a plateia sente o peso das ações e suas consequências. Tecnicamente, a direção de Phillips não deixa a desejar, sendo precisa ao captar os movimentos corporais, as expressões faciais e a aflição do anti-herói. Como Arthur está em mutação constante, parecendo não caber mais dentro de si, a fotografia reserva espaço para um frame excepcional: repare que durante um diálogo formal, sentado e segurando um cigarro em uma das mãos, entre as duas pernas inquietantes, temos um truque de câmera simples, mas capaz de metaforizar a situação daquele sujeito que está fumaçando, literalmente, de dentro pra fora, emanando a efervescência de uma mente doentia através de seu corpo cadavérico e cansado de apanhar da vida.
Tão excepcional quanto a performance de Phoenix em seu estudo de personagem, a direção de arte é extremamente cuidadosa nas minúcias, que vão desde a composição dos objetos de cena (os detalhes da modesta casa dos Fleck é uma delas) passando pela ambientação da cidade imersa no lixo; sem esquecer o acertado figurino colorido, envolto numa atmosfera de uma Gotham dessaturada que, aos poucos, o anti-herói vai introduzindo os seus próprios adereços no dia a dia, quase por osmose.
Observe que todos esses adornos, típicos do mundo circense, vão se incorporando a Arthur, naturalmente, durante a sua transformação. A maquiagem exagerada, a cor esverdeada do cabelo, o nariz vermelho, os sapatos enormes. Uma nova identidade surge cada vez mais solta, autoconfiante, dançante, segura e livre das amarras da sanidade.
Em que pese um roteiro superficial,
quando deveria ser complexo o bastante para acreditarmos nessa revolução
proposta, “Joker” é um filme violento, inquietante e perturbador, igual o
protagonista-título.
*Avaliação: 3,5 Pipocas + 4,0 Rapaduras = 7,5.