Por Rafael Morais
O ano era 1995. Brinquedos ganham vida nos cinemas revolucionando a era digital das animações. Sucesso de crítica e público, "Toy Story" narrava as aventuras de um carismático cowboy, um destemido patrulheiro espacial e uma turminha do barulho (sim, isso pareceu uma chamada de "sessão da tarde"), arrebatando fãs ao redor do mundo; e eu não fiquei incólume.
Passados 24 anos até o novo capítulo, é impressionante como a Pixar evoluiu tecnicamente sem esquecer a emoção como "carro-chefe" de suas obras. Se no capítulo anterior, o nível de emotividade chegou ao limite, nesta sequência temos as consequências do que aconteceu com Woody, Buzz e cia. depois que o seu dono Andy cresceu e foi para faculdade, doando seus brinquedos à doce Bonnie.
Desta vez, a garotinha concebe o seu próprio brinquedo durante o primeiro dia de aula no jardim de infância. O "Garfinho" vem ao mundo através de uma iniciativa de reaproveitamento de materiais descartáveis que, por sua natureza, não seriam mais úteis. Assim, ao se sentir sozinha e amedrontada no inédito ambiente escolar (lembre-se que ela ainda estava na creche no filme passado) Bonnie cria e customiza um amigo ao seu modo: o Garfinho é desajeitado, inseguro e simpático.
Deste modo, é interessante perceber o relevante subtexto ambientalista quando trata a reciclagem pelo aspecto anticonsumista, bem como pelo viés do estímulo à criatividade da criançada. Não à toa, o talherzinho recém-criado tem uma obsessão autodepreciativa combatida por Woody com resiliência. Portanto, é genial a ideia de se reinventar durante a "crise de identidade" de um objeto que nasceu para ser utilizado apenas durante uma refeição e ser descartado logo em seguida. O enredo brinca com o lúdico explorando os conceitos de amizade, família e lealdade no melhor estilo da franquia.
A nova trama coloca toda a trupe reunida numa viagem em família que vai revelar surpresas e confirmar a personalidade de alguns toys. Se Woody está cada vez mais altruísta tornando-se o coração do filme, Buzz Lightyear não demonstra autoconfiança à altura do companheiro, uma vez que busca a "voz interior" para ditar os seus passos, literalmente. Neste contexto, me incomodou também o fato de o script diminuir a participação de personagens clássicos como o Sr. e Sra. Batata, Rex, a cowgirl Jessie e até o próprio Buzz. Eles quase não auxiliam no desenvolvimento da história, sendo meros coadjuvantes de luxo, bem diferente dos outros títulos.
Entretanto, sem querer entrar no terreno dos spoilers, não é novidade pra ninguém que Betty reaparece no longa, isso está nos trailers e no vasto material de divulgação. Feita de porcelana, genuinamente um bibelô, a camponesa teve o seu fechamento de arco digno que aborda também a questão do se reinventar. Aproveitando a onda do "girl power", Betty se transforma desde o figurino mais despojado, passando pelos adornos capazes de identificar a marca do tempo: tudo isso reflete sua nova personalidade. Se antes o seu cajado era imóvel, colado ao seu corpo, servindo apenas como enfeite, agora o bastão é uma poderosa arma nas suas mãos. A expertise que ela ganha no habitat livre justifica toda a mudança de atitude firme e até uma certa marra que adquiriu com o tempo.
Já a direção ficou por conta de Josh Cooley que, apesar de ser o seu primeiro longa no currículo, já era um antigo conhecido e colaborador da Pixar. O cara participou do roteiro de “Divertidamente” (2015, Pete Docter), além de ter desenhado storyboards para “Up - Altas Aventuras” (2009, Pete Docter) e “Ratatouille” (2007, Brad Bird). O estúdio não deu um “tiro no escuro” e acabou acertando na escolha. Cooley enquadra os brinquedos como verdadeiros heróis, contempla a história de amizade dos mesmos através de lindos raccord temporais, demonstrando conhecer a essência de Toy Story imaginada por John Lasseter.
Mas a beleza da animação também perpassa tanto pela talentosa direção artística quanto pela nítida evolução dos efeitos digitais. A película é irretocável no quesito técnico! Tudo é muito lindo, vistoso, colorido nos momentos certos e cinza nos instantes necessários. O antimaniqueísmo reflete na paleta de cores.
Aqui, a perfeição da Pixar em animar seres inanimados chegou ao auge quando um simples garfo conquista o espectador com tamanha empatia. O universo de Toy Story está cada vez mais fotorrealista e não esconde mais os adultos, limitando a câmera à altura do joelho ou da cintura destes, tal qual o primeiro capítulo quando nos remetia à Muppet Babies. Agora, até close-ups são utilizados nos rostos de vários personagens humanos mais velhos, dando a impressão da inevitável integração entre mundos tão diferentes.
Quanto às canções, destaco que “Amigo, Estou Aqui” ainda emociona, sobretudo quando entoa uma sequência que, certamente, mexerá mais com os adultos que cresceram com a obra do que propriamente com a meninada. Por sua vez, a nova música do desconsertado Forky (o Garfinho como foi traduzido por aqui) também tem seu charme, visto que a letra desafia o destino natural das coisas. Para o padrão Disney, no entanto, confesso que senti falta de mais números musicais.
Já o antagonismo ficou por conta de “Gabby Gabby”, uma boneca mandona, centralizadora e sinistra que mora num antiquário. Junto com os seus assombrosos capangas, a anti-heroína (não dá pra chamá-la de vilã clássica) remete aos filmes de horror com bonecos amaldiçoados. Há todo um clima de suspense no ar, nunca antes explorado na jornada da franquia. Prepare-se para jump scares (pulos de sustos) quando os Benson’s aparecem. Outras ótimas adições ao elenco são os ursinhos “Patinho” e “Coelhinho”. Os caras surtam nos mais mirabolantes planos arquitetados pelas suas mentes maquiavélicas. Sem contar o dublê “Duke Caboom” (voz de Keanu Reeves), um sujeito cheio de conflitos e traumas os quais são postos à prova durante uma cena que arrancou aplausos da galera na minha sessão.
Enfim, “Toy Story 4” é engraçado,
dramático, nostálgico e emocionante! O filme chancela a qualidade da Pixar na
questão técnica, bem como traz uma resolução corajosa para o nosso amigo Woody,
muito embora não se importe tanto com os coadjuvantes. Assim, por mais que o
filme faça um estrondoso sucesso nas bilheterias, infelizmente, sinto que o
estúdio irá colocá-lo na geladeira por um bom tempo. Em recente entrevista,
produtores falaram que as continuações tendem a não ter mais prioridades, pois
o futuro reside nas novas marcas, novas histórias. Além do mais, com o esmero
que a Pixar tem com os seus produtos, não é todo dia que um novo enredo vai
convencê-los a mexer com as suas principais pérolas. Mas independente do que
vier por aí, só digo e repito uma coisa:
♫ ♫ ♫
“O tempo vai passar
Os anos vão confirmar
As três palavras que proferi
Amigo, estou aqui!"
*Avaliação: 5,0 Pipocas + 4,0 Rapaduras = 9,0.