quinta-feira, 27 de fevereiro de 2025

ESPECIAL OSCAR 2025 - O Brutalista

 

Por Isa Barretto

A arquitetura brutalista é marcada pela grandiosidade de suas formas, pela exposição crua dos materiais e por uma estética que impõe presença. Mais do que abrigar pessoas, ela é projetada para resistir ao tempo, independente do que se passa dentro ou ao redor de suas estruturas. No Cinema, 'O Brutalista', dirigido por Brady Corbet, adota essa mesma abordagem: uma história de ambição e sobrevivência em meio à dureza da realidade. No centro dela está László (Adrien Brody), um arquiteto húngaro que, depois da guerra, tenta reconstruir sua vida nos Estados Unidos, mas se vê esmagado por um mundo que não tem espaço para idealismos.

Só que o que começa como uma busca por um recomeço logo se torna um processo de degradação. László carrega marcas profundas dos abusos e maus-tratos que sofreu no passado, além da vergonha de lidar com tudo que ele foi – e do que está se tornando – . O homem que um dia sonhou com grandes obras agora se vê preso a um ciclo de descontrole, afundado em álcool e drogas, sem conseguir sustentar nem sua própria identidade. Quando aceita um projeto misterioso, acredita estar agarrando sua última chance de redenção, mas o que encontra é um caminho ainda mais sombrio, repleto de dilemas morais e renúncias dolorosas.

O "American Dream", tão cantado em músicas e retratado no imaginário coletivo como sinônimo de sucesso e recomeço, não passa de uma miragem para László. A promessa de uma nova vida nos Estados Unidos se dissolve diante da realidade dura e impiedosa. Ele não encontra oportunidades, mas sim barreiras. Não há acolhimento, apenas cobranças. Seu talento não basta, sua resiliência é testada a cada instante e, no fim, seu sonho de construir algo grandioso cede lugar à simples tentativa de sobreviver.

Brody entrega uma atuação brilhante, transmitindo todo o peso de um homem consumido por frustrações e arrependimentos. Seu olhar perdido, seus gestos cansados e sua voz embargada revelam um personagem que luta contra si mesmo, enquanto o mundo ao seu redor continua indiferente.

O filme, no entanto, não fala apenas sobre ele. É um retrato de tantas pessoas que, em algum momento, veem seus sonhos esmagados pela realidade. Até onde conseguimos ir sem abrir mão de quem somos? Como reagimos quando percebemos que talvez nunca sejamos aquilo que imaginamos? São perguntas sem respostas fáceis, mas que permanecem nas entrelinhas, ecoando ao longo da história e muito depois dos créditos finais.

Corbet constrói essa narrativa usando ângulos rígidos, sombras opressivas e uma trilha sonora inquietante que reforça o peso da história. Assim como a arquitetura brutalista, o filme não tenta suavizar nada – ele é duro, incômodo e nos faz sentir cada fissura na vida do protagonista.

Mais do que um drama, 'O Brutalista' é um filme que nos convida a refletir sobre a fragilidade humana diante do tempo, das escolhas e das circunstâncias. Não é uma história de redenção, mas de confronto. E, ao final, fica a pergunta: o que resta quando tudo aquilo que nos sustentava começa a ruir?

terça-feira, 25 de fevereiro de 2025

ESPECIAL OSCAR 2025 - The Nickel Boys


Por Isa Barretto

*contém spoilers!

Algumas histórias parecem tão absurdas que a gente custa a acreditar que realmente aconteceram. 'The Nickel Boys' é uma dessas. O filme, dirigido por RaMell Ross e baseado no livro de Colson Whitehead, traz à tona um pedaço cruel da história americana, mostrando como o preconceito pode ser devastador não só para indivíduos, mas para toda uma comunidade. O mais chocante? Isso aconteceu nos Estados Unidos na mesma época em que Martin Luther King estava lutando por direitos civis. Enquanto a humanidade avançava em ciência e tecnologia, o básico—os Direitos Humanos—continuava sendo ignorado para alguns.

A narrativa, filmada em primeira pessoa, tem uma proposta interessante, mas pode causar certa confusão. Em alguns momentos, o espectador precisa se esforçar para entender em que ponto da história estamos. Talvez essa seja uma escolha proposital, para nos colocar na pele dos garotos da Nickel Academy—perdidos e sem saber o que esperar do próximo dia.

O final é um soco no estômago. Turner, um dos sobreviventes, assume a identidade de seu amigo Elwood, morto na tentativa de fuga. Esse desfecho não é só um truque narrativo, mas um símbolo da anulação de tantas vidas que poderiam ter sido diferentes. Aqueles meninos tinham sonhos e esperança, mas saíram do reformatório sem nada—quando conseguiram sair vivos. A falta de perspectiva apagou possibilidades e destruiu futuros, além de fazer com que talentos se perdessem na brutalidade do sistema.

O preconceito não afeta só indivíduos, mas toda a sociedade. O que aconteceu com os jovens negros da Nickel Academy também ocorreu, de formas diferentes, com judeus, indígenas e minorias ao redor do mundo. E não se trata apenas do passado. Ainda hoje, há grupos que continuam sendo impedidos de ter um futuro digno simplesmente por causa de sua cor, origem ou crença. O racismo, seja onde for, mina a evolução coletiva. Não adianta conquistar o espaço se ainda somos incapazes de garantir humanidade para todos.

segunda-feira, 24 de fevereiro de 2025

ESPECIAL OSCAR 2025 - Duna: Parte 2

 

Por Isa Barretto

Se 'Duna: Parte 1' apresentou Paul Atreides como um jovem dividido entre destino e escolha, a 'Parte 2' leva essa jornada ao seu ápice, mostrando como o poder pode consumir até mesmo aqueles que começam com as melhores intenções.

No primeiro filme, Paul era alguém deslocado, um herdeiro treinado para governar, mas sem a certeza se queria carregar aquele peso. Ele começa sua trajetória hesitante, perdido entre a visão mística que o liga aos Fremen e a política que exige sua liderança. Mas, conforme a tragédia se abate sobre sua família e ele se vê no deserto, Paul aprende a lutar, se adapta e, o mais importante, começa a sentir o gosto da autoridade.

E é aí que a máxima se cumpre: "Quer conhecer um homem? Dê a ele poder". 'Duna: Parte 2' se aprofunda na transformação de Paul, revelando o preço real de sua ascensão. A abdicação do amor é uma das decisões mais impactantes do filme – o Paul que jurava fidelidade a Chani aos poucos dá lugar a um líder que precisa escolher entre o coração e o trono. O dilema é claro: permanecer com os Fremen e lutar como um deles ou tomar para si o destino de imperador e levar sua jihad pelo universo.A escolha que ele faz, sem spoilers diretos, pesa tanto na narrativa quanto nos olhos do espectador, pois Villeneuve constrói cada passo de sua jornada com ares de inevitabilidade.

Visualmente, o filme é uma obra-prima. Villeneuve mantém a estética de desolação e grandiosidade do primeiro filme, mas agora adiciona camadas ainda mais sofisticadas. Os tons de laranja e dourado dominam as paisagens do deserto, contrastando com sombras profundas e uma luz oposta que recorta cada cena como um quadro épico. As tomadas aéreas situam o espectador na vastidão de Arrakis, deixando claro o tamanho do palco em que esse drama se desenrola.

Já as cenas que envolvem Feyd-Rautha, sobrinho dos Harkonnen, apostam num preto e branco que remete a registros históricos do século XX, traçando um paralelo visual com os abusos cometidos por ditadores – um toque de Villeneuve para reforçar o peso da opressão e da crueldade desse personagem.

O ritmo do filme equilibra momentos contemplativos com sequências de ação brutais. Se no Parte Um havia um foco maior na construção do mundo e da política, aqui a guerra se torna real. As batalhas são coreografadas com precisão, usando o deserto como um elemento vivo da narrativa. O som do tambor ressoa como um chamado para algo grandioso e terrível, e a trilha de Hans Zimmer complementa essa grandiosidade com uma intensidade quase hipnótica.

No final, 'Duna: Parte 2' não é apenas uma continuação, mas a concretização de tudo o que foi prometido. Paul Atreides não é mais um jovem buscando seu lugar – ele se torna algo muito maior, e, ao mesmo tempo, muito mais perigoso. A pergunta que fica é: o poder era realmente seu destino ou apenas a armadilha que sempre esteve à sua espera?

sábado, 22 de fevereiro de 2025

ESPECIAL OSCAR 2025 - O Robô Selvagem

 

Por Isa Barretto

Se existe algo que o Cinema de animação faz bem, é traduzir emoções universais em histórias cativantes. 'O Robô Selvagem', baseado no livro de Peter Brown, faz isso com maestria ao explorar o amor materno de uma forma inusitada – não com uma figura tradicional, mas através de uma robô que descobre, aos poucos, o que significa cuidar, proteger e se sacrificar.

Roz, a protagonista, não foi projetada para sentir. No entanto, quando se vê responsável por um filhote órfão de ganso, algo muda. A princípio, ela age por lógica: ele precisa de calor, alimento e segurança. Mas conforme o tempo passa, seu instinto programado dá lugar a algo mais profundo. Ela aprende a ser mãe, não porque foi construída para isso, mas porque a vivência lhe ensina o que é amar. E isso é um dos pontos mais bonitos da história – a ideia de que o amor não é apenas um sentimento, mas também um aprendizado.

Mas 'O Robô Selvagem' vai além do amor materno. O filme fala sobre pertencimento e identidade. Roz não é um animal, mas também não é apenas uma máquina. Em uma ilha onde tudo segue as leis da natureza, ela precisa encontrar seu espaço e entender onde se encaixa. O roteiro desenvolve isso com calma, mostrando que a identidade não é algo fixo – é construída a partir das conexões que formamos e das experiências que acumulamos.

A relação entre tecnologia e natureza também é um tema central. O filme não demoniza a tecnologia, mas questiona até que ponto ela pode coexistir com o mundo natural sem destruí-lo. Roz não chega como uma ameaça, mas como uma forasteira tentando aprender e respeitar o ambiente ao seu redor. No entanto, o conflito surge quando forças externas tentam tirá-la dali, levantando questões sobre liberdade e controle.

Visualmente, a animação traduz bem essa dualidade. A ilha é exuberante, cheia de vida, enquanto Roz, com seu design metálico e movimentos mecânicos, parece deslocada no início. Mas conforme ela se integra ao ambiente, essa diferença se dissolve – um reflexo da sua própria transformação.

No fim, 'O Robô Selvagem' é uma história sobre aprender a sentir, sobre encontrar um lar onde menos se espera e sobre como o amor, mesmo nas formas mais improváveis, tem o poder de mudar tudo. E talvez seja isso que faz a jornada de Roz tão especial: não importa se somos humanos, animais ou máquinas, no fundo, todos estamos buscando conexão.

sexta-feira, 21 de fevereiro de 2025

ESPECIAL OSCAR 2025 - A Substância

 

Por Isa Barretto

Você já parou para pensar até onde a gente vai na tentativa de alcançar um padrão de beleza que, na real, ninguém nunca consegue atingir de verdade? "A Substância" pega essa nossa obsessão coletiva e transforma num terror visceral, daqueles que deixam a gente desconfortável do começo ao fim.

O filme segue Elisabeth Sparkle (Demi Moore), uma apresentadora de TV que vê sua carreira e sua aparência desmoronarem porque, aos olhos da indústria, ela simplesmente "envelheceu". A solução? Um tratamento secreto que promete juventude eterna. Só que, como qualquer "pacto com o diabo", isso tem um preço – e um bem alto.

O que Coralie Fargeat faz aqui é escancarar nossa obsessão com juventude e beleza de um jeito que beira o grotesco. A história joga na nossa cara o quanto a sociedade impõe um ideal inalcançável, especialmente para as mulheres. A cobrança é constante: seja jovem, seja perfeita, seja desejável. E se não for? Bom, você é descartável.

Visualmente, o filme trabalha com uma estética que mistura o glamour artificial com o horror visceral. O brilho exagerado dos estúdios de TV contrasta com os tons opacos e frios dos bastidores, onde Elisabeth encara sua decadência. Já nas cenas mais intensas, o vermelho toma conta da tela, criando uma atmosfera sufocante que reforça a transformação grotesca da protagonista. É como se o próprio visual do filme deixasse claro que, por trás de toda a estética polida da mídia, existe algo muito mais sombrio e destrutivo.

O terror corporal do filme amplifica exatamente essa crítica. Não é só sobre querer se encaixar no padrão, mas sobre o que a gente faz com o próprio corpo para tentar chegar lá. Cirurgias, produtos milagrosos, dietas absurdas... até que ponto estamos dispostos a nos modificar para sermos aceitos? E o mais assustador: será que, depois de tanto mudar, ainda seremos nós mesmos?

No fim, 'A Substância' não é só um filme de horror – é um espelho cruel da nossa realidade. E talvez o mais aterrorizante seja perceber que o verdadeiro monstro da história não é algo sobrenatural, mas sim essa nossa busca incessante por um ideal impossível.

segunda-feira, 17 de fevereiro de 2025

ESPECIAL OSCAR 2025 - Emilia Pérez

 

Por Isa Barretto

*contém spoilers!

'Emilia Pérez', dirigio por Jacques Audiard, é um daqueles filmes que pegam o espectador de surpresa, seja pelo formato, pelos temas ou pela forma como conduz sua narrativa. Fugindo do musical tradicional, ele não aposta em grandes números dançantes nem em canções que interrompem a trama. Aqui, as músicas se misturam ao diálogo, transformando conversas em melodias que refletem emoções. A intenção é clara: trazer um tom quase teatral, onde a música é parte do drama e não um adereço. Mas essa escolha tem seu revés—há momentos em que pequenos espetáculos dentro da história acabam desconectando o público, como se o filme se perdesse um pouco na própria estética.

Além disso, a opção por diálogos musicados nem sempre funciona. Em alguns momentos, a melodia se encaixa bem na carga emocional da cena, mas em outros, acaba soando artificial, como se os personagens estivessem cantando simplesmente por cantar. Há cenas que pediriam uma abordagem mais natural, e o excesso de musicalização tira a força de certas conversas que poderiam ser mais impactantes se faladas normalmente. Esse efeito faz com que algumas passagens do filme pareçam presas a um formato que nem sempre é necessário.

O DNA das novelas mexicanas está lá: muito melodrama, reviravoltas e um protagonista tentando se livrar de um passado sombrio. Mas a jornada de redenção de Juan "Manitas" Del Monte, um chefão do crime que decide largar tudo para viver como Emilia Pérez, levanta uma questão interessante: por que essa busca pela reparação só acontece depois da transição? Existe um subtexto sexista aí? O filme sugere que mudar de nome e gênero pode transformar a essência de alguém, mas será que realmente muda? E quando Emilia se sente ameaçada, sua antiga natureza volta à tona? Essa tensão entre identidade e instinto é um dos pontos mais intrigantes da história.

A grande virada na vida da personagem não é apenas pessoal—ela passa a se dedicar a devolver os corpos de desaparecidos para suas famílias, tentando reparar os danos que não só ela como outros chefões causaram. Isso ressignifica sua transformação e nos faz questionar: até onde vai essa busca por redenção? Os ciclos realmente se fecham? O filme tenta amarrar todas as suas discussões, mas nem sempre com o impacto esperado. Há um certo esvaziamento emocional em algumas resoluções, e a banalização da vida permeia a trama de forma um tanto incômoda. Violência, crime e arrependimento são tratados de maneira que, em alguns momentos, parece simplista para o peso que carregam.

O roteiro também tem suas brechas. Emilia está em transição há dois anos, faz reposição hormonal, desenvolve seios e, ainda assim, sua esposa e filhos não percebem? A forma como isso é conduzido simplifica demais um processo que, na vida real, é muito mais complexo. Além disso, precisava mesmo de um número musical para a vaginoplastia? Algumas músicas funcionam ao adicionar camadas ao drama, mas outras parecem forçar a teatralidade, tornando algumas cenas involuntariamente questionáveis.

O elenco, no entanto, abraça esse melodrama com força. Karla Sofía Gascón brilha como Emilia, trazendo presença e magnetismo. Zoe Saldaña entrega uma atuação carregada de intensidade, enquanto Selena Gomez, em um papel menor, complementa a trama de forma discreta, mas eficaz.

No fim, Emilia Pérez é um filme que provoca, questiona e aposta em um formato diferente—e só por isso vale a experiência. Mas nem sempre suas escolhas narrativas e musicais funcionam de forma coesa. Os diálogos musicados, em especial, são um dos elementos que enfraquecem a obra, tornando algumas cenas menos impactantes do que poderiam ser. Ele abre discussões sobre identidade, redenção e o peso do passado, mas nem todas as respostas são satisfatórias. Se é um acerto ou um tropeço? Depende do olhar de quem assiste.

terça-feira, 11 de fevereiro de 2025

ESPECIAL OSCAR 2025 - A Garota da Agulha

 

Por Isa Barretto

Não é um filme fácil. Perturbador, sufocante e, em muitos momentos, cruel, mas também necessário para compreendermos um contexto histórico onde escolhas impossíveis eram feitas diariamente. Inspirado em fatos reais, o filme nos transporta para o período de guerra e pós-guerra, quando a fome, a miséria e a desesperança dominavam a rotina. Mulheres viúvas, sem amparo e cercadas por filhos que não tinham como sustentar, buscavam alternativas para sobreviver – e, muitas vezes, essas escolhas eram invisibilizadas ou mal compreendidas pela sociedade.

A protagonista, Karoline, interpretada com intensidade por Vic Carmen Sonne, se encaixa nesse cenário devastador. Sem saída, ela acaba se envolvendo com Dagmar (Trine Dyrholm), uma figura ambígua que oferece uma suposta solução para mulheres desesperadas. O filme não tenta suavizar essa relação nem romantizar as decisões tomadas. O horror está não apenas nos atos cometidos, mas na normalidade com que eles ocorrem dentro desse contexto.

Uma das cenas mais marcantes acontece quando Dagmar é presa, cercada por mães que a julgam sem saber que, no fundo, também são vítimas de um sistema cruel. Com frieza, ela as encara e declara: "Eu estou fazendo o que vocês não tiveram coragem de fazer." A frase ressoa ao longo da narrativa, não como uma justificativa, mas como um golpe seco na consciência do espectador.

Essas mulheres, esmagadas pela miséria e pela desesperança, acreditavam estar entregando seus bebês a alguém que poderia oferecer-lhes um futuro melhor – um destino mais digno do que aquele que elas poderiam proporcionar. O horror do filme reside justamente na quebra brutal dessa ilusão: o que parecia um ato de amor e sacrifício era, na verdade, uma sentença de morte. A verdadeira tragédia não está apenas nos atos de Dagmar, mas na forma como uma sociedade falida permitiu que essas práticas existissem, sustentadas pelo desespero e pela falta de opções.

O que "A Garota da Agulha" provoca não é apenas indignação, mas um questionamento profundo sobre moralidade em tempos de caos. Quando todas as escolhas levam à dor, ainda há espaço para condenação? Karoline percorre essa linha tênue entre ignorância e culpa, sendo sugada para um universo onde não há vencedores – apenas sobreviventes tentando agarrar qualquer resquício de esperança.

E, mesmo em meio à brutalidade, o filme sugere uma pequena fagulha de reconstrução. Após tudo, Karoline decide adotar uma criança. Em um ambiente onde vidas foram brutalmente descartadas, esse gesto carrega um peso simbólico imenso. Não se trata de redenção, mas da necessidade humana de seguir em frente, ainda que sobre os escombros do passado.

A direção de Magnus von Horn imprime um olhar preciso e implacável, sem recorrer ao sentimentalismo. A escolha da fotografia em preto e branco não se limita ao fato de ser um filme de época, mas também reforça o peso da temática. A morte de inocentes é um assunto tão denso que parece já carregar um luto embutido na própria imagem. Já imaginou tratar disso em cores? Uma fotografia saturada, solar, vibrante, para retratar algo tão desesperançoso e obscuro? O preto e branco, nesse caso, não apenas reforça a atmosfera sufocante, mas parece traduzir o próprio pesar que a história carrega. O silêncio, os olhares e os enquadramentos fechados dizem mais do que qualquer trilha sonora poderia.

No fim, "A Garota da Agulha" não oferece conforto, mas exige reflexão. Ele nos coloca frente a frente com realidades difíceis e nos obriga a questionar: o que teríamos feito no lugar dessas mulheres?

segunda-feira, 10 de fevereiro de 2025

ESPECIAL OSCAR 2025 - Anora


Por Isa Barretto

Se existe um conto de fadas que atravessa o tempo e se mantém vivo nos imaginários mais diversos, é o de Cinderela. A jovem que sai da pobreza e da exploração para uma vida de luxo ao lado de um príncipe encantado parece um roteiro irresistível para quem acredita que o amor pode ser a solução para todas as dificuldades. Mas o que acontece quando essa fantasia se encontra com a dura realidade?

Sean Baker, conhecido por retratar personagens com um olhar cru e humano, leva essa questão ao extremo em Anora. A protagonista, vivida com intensidade por Mikey Madison, é uma jovem russa que ganha a vida como dançarina em uma boate e já conhece bem as regras do jogo: precisa seduzir, encantar e, acima de tudo, manter o controle. Seu mundo é feito de transações, onde corpos e emoções se misturam na busca por sobrevivência.

Mas então surge ele: um jovem rico que parece oferecer um caminho diferente, um atalho para uma vida de facilidades e diversão. E é aqui que o Complexo de Cinderela entra em cena. A crença de que o amor pode ser um passaporte para uma nova realidade faz com que Anora baixe a guarda, esquecendo por um momento tudo o que aprendeu sobre poder e controle nas relações. O que era sobrevivência se transforma em ilusão – e Baker nos faz questionar até que ponto essa ilusão é criada por ela ou imposta por um mundo que sempre prometeu que príncipes existem.

A força do filme está justamente na forma como ele brinca com essa narrativa clássica, subvertendo expectativas e nos deixando em constante tensão: será que Anora realmente encontrou um conto de fadas? Ou será que, como tantas mulheres antes dela, está prestes a descobrir que a carruagem sempre pode voltar a ser abóbora?

E o mais interessante é que Baker não nos conduz apenas pelo drama e pela tensão. Anora também nos faz rir – e muito. Com sua abordagem realista e sem rodeios, o filme encontra humor no absurdo das situações e nos diálogos afiados, tornando tudo ainda mais envolvente. Entre risadas e momentos de angústia, o longa nos desafia a repensar as fantasias românticas e escancara o abismo entre privilégio e sobrevivência. No mundo real, nem toda história tem um final feliz – e, às vezes, o verdadeiro poder não está em ser resgatada, mas em aprender a resgatar a si mesma.

quinta-feira, 6 de fevereiro de 2025

ANIVERSARIANTES MEMÓRAVEIS – “Seven: Os Sete Crimes Capitais” faz 30 anos em 2025

Por Isa Barretto

“Seven: Os Sete Crimes Capitais” (1995), dirigido por David Fincher, continua sendo uma das experiências mais envolventes e perturbadoras do gênero de thriller policial. Tive a chance de revê-lo em IMAX pela UCI, o que só reforçou o quanto esse clássico permanece impactante desde o seu lançamento. A brutalidade psicológica, a qualidade técnica e a força da narrativa ainda se mantêm firmes.

A história gira em torno dos detetives William Somerset (Morgan Freeman) e David Mills (Brad Pitt), encarregados de investigar um serial killer que se inspira nos sete pecados capitais para cometer seus crimes. Em cada cena, é quase impossível não ser arrastado para a tensão e o desconforto causados pelas ações do assassino.

Algo que chama a atenção é o quanto o filme segue atual. A direção de David Fincher cria um clima sombrio e opressor, fazendo com que a cidade pareça tão sufocante quanto os próprios crimes. Ver essa produção em uma tela gigante realça ainda mais o ambiente pesado, com paletas de cores escuras, um trabalho detalhado de luz e sombra e um design de som que ressalta cada nuance.

As atuações também merecem elogios. Morgan Freeman interpreta um detetive experiente, cansado e cético em relação ao mundo, enquanto Brad Pitt faz o papel do policial jovem, impulsivo e idealista, em contraste com a sobriedade de Somerset. Mas quem realmente se destaca é o vilão John Doe, vivido por Kevin Spacey — meticuloso, assustador e motivado por uma lógica distorcida que transforma cada assassinato em um macabro quebra-cabeças moral.

Mais do que apenas um filme sobre crimes, “Seven” traz uma reflexão sobre a decadência social, a natureza humana e os limites delicados entre justiça e vingança. Fincher pinta um cenário mergulhado na desesperança, com ruas escuras, becos imundos e personagens no limite da ruptura moral. A investigação de Somerset e Mills vai além de procurar por um assassino: ela expõe os conflitos internos de cada um, seus dilemas éticos e a forma como lidam com a violência e o sofrimento. O público se depara com questões incômodas sobre justiça, questionando se a vingança — quando “justificada” por alguma lógica superior — não acaba sendo apenas mais um ato brutal.

“Seven” não esconde o lado mais sombrio da humanidade, evidenciando nossa inclinação à violência, ao julgamento e à busca incessante de sentido em meio ao caos. Por mais revoltante que John Doe seja, ele levanta uma questão perturbadora: até que ponto fechamos os olhos para as nossas próprias falhas e perpetuamos um sistema cheio de hipocrisia e crueldade? Mas a maneira que ele encontra para expor esses pecados é tão brutal quanto equivocada: ao acreditar que a violência pode revelar e corrigir os erros do mundo, ele só alimenta o ciclo de brutalidade que diz condenar. O filme não justifica as ações de Doe, mas usa sua loucura como um espelho desconfortável, levando o espectador a encarar suas próprias contradições e refletir sobre a fragilidade da moralidade humana.

Tenso, bem construído e visualmente marcante, “Seven: Os Sete Crimes Capitais” permanece uma experiência cinematográfica obrigatória, provando mais uma vez que é um clássico incontestável do gênero.

segunda-feira, 3 de fevereiro de 2025

NOS CINEMAS - Aqui

 

Por Isa Barretto

*esta resenha contém SPOILER!

Dirigido por Robert Zemeckis e estrelado pelo talentoso Tom Hanks, 'Aqui' se propõe a ser um drama intimista e reflexivo sobre o tempo, as escolhas e a vida que deixamos escapar. No entanto, apesar da proposta emocionante, o filme não consegue atingir plenamente a conexão que deseja com o espectador.

A narrativa se desenrola em um único ambiente: a mesma sala, filmada repetidamente sob os mesmos ângulos ao longo das décadas. Essa escolha estética pretende reforçar a passagem do tempo e a transformação da vida dentro daquele espaço, desde o nascimento até a morte. Contudo, o efeito acaba por tornar a experiência visualmente repetitiva, o que pode por muitas vezes dispersar o público.

A história acompanha a trajetória do protagonista, interpretado por Hanks, cuja vida se desenrola dentro daquela casa. Inicialmente rejuvenescido por inteligência artificial, vemos sua infância, sua formação, a construção de sua família e, por fim, sua velhice. Ele é um homem que, ao longo da vida, sempre adiou seus sonhos, protelando seus desejos e se acomodando na rotina. Sua procrastinação o distanciou do que realmente queria, até o momento em que sua esposa decide partir, deixando para trás a casa que simbolizava anos de relacionamento.

Somente então, já sozinho e envelhecido, ele decide resgatar sua verdadeira paixão: a pintura – algo que poderia ter sido uma carreira brilhante se não tivesse sido constantemente adiada. Mas agora é tarde. Sua esposa não deseja mais voltar. O que resta são apenas as memórias. Em um dos raros momentos de lucidez causados pelo Alzheimer, ela relembra cenas felizes que viveu ali, revelando que, apesar de tudo, sua vida foi mais plena do que imaginava.

O filme nos entrega uma grande lição sobre o tempo e a maneira como lidamos com ele. Mas a falta de expressividade em certas atuações e a escolha de manter a câmera estática muitas vezes impedem que a emoção alcance o espectador da maneira pretendida.

Ainda assim, a reflexão que fica é poderosa: por que nos contentamos em ser meros coadjuvantes da nossa própria história? Por que insistimos em viver uma felicidade inventada, quando sabemos que nosso coração, espírito e alma precisam de algo mais?

No fim das contas, a vida segue, com ou sem nossas escolhas. A grande questão é: vamos nos adaptar e apenas existir ou finalmente assumir o protagonismo que sempre nos pertenceu?

Isso, sim, é algo a se pensar....