Por Rafael Morais
15 de fevereiro de 2017
Imagine um homem se alistar no exército americano, em plena
segunda guerra mundial, com o intuito puro e simples de salvar o seu próximo.
Em “Até o Último Homem” acompanhamos a trajetória, baseada em fatos, de Desmond
Doss (na pele de Andrew Garfield), um religioso adventista que decide servir à
sua pátria como médico no front de batalha, mas deixando clara a sua intenção
de não tocar em uma arma sequer. Considerado como um dos maiores heróis de
guerra dos Estados Unidos, Doss salvou mais de 75 soldados durante os sangrentos
confrontos ocorridos em Okinawa.
Com Mel Gibson na direção (indicado ao Oscar
por este trabalho), identifica-se o DNA do cineasta – obcecado por cenas gores,
ultraviolência e temas sagrados – apenas na segunda metade da projeção. Isto
porque o filme tem ao todo 139 minutos, mas resguarda os 69 primeiros na
construção do protagonista, e tudo que lhe cerca; enquanto que nos 70 minutos
restantes é reservado para mostrar o combate em si. Apesar de importante a
apresentação dos ideais do herói pacifista que se alista para lutar, nos
oferecendo razões plausíveis para entender a sua motivação, bem como a sua
relação com a família, os dois primeiros atos se arrastam demasiadamente para
chegar naquilo que o público espera de Gibson. Mas o cineasta entrega, como
sempre entregou, e supera as expectativas. É admirável notar a visceralidade do
diretor em rodar cenas de violência extrema com a mesma precisão com que
confere leveza e calmaria em outras. E essa divisão no tom da história só reforça
o talento do idealizador. Perceba, por exemplo, nas diversas sequências onde
cabeças são estouradas e entranhas vazam de corpos, sem cerimônia, a crueza na
condução de Gibson.
Por outro lado, vemos a sua sensibilidade em enquadrar Doss
como um sujeito grandioso, abençoado, diferenciado naquela guerra. E os planos
em contra-plongée reforçam essa ideia (ângulo de baixo pra cima). Assim, o
momento em que o soldado faz uma oração para o grupo, segurando sua pequena e
inseparável bíblia, antes de mais um enfrentamento retrata bem essa estética.
Sem contar na elevação do protagonista, em dado instante apoteótico. As
leituras bíblicas estão lá para quem quiser enxergar, como na passagem em que
Doss “cura a cegueira” de um colega.
No que diz respeito à escolha do elenco, Vince Vaughn não convence como sargento, emulando (ou seria
homenageando?) aquele comandante hostil clássico visto em “Nascido Para Matar”,
concebido por R. Lee Ermey, o que não é
uma má referência. Não menos alusivo, “O Resgate do Soldado Ryan” também é
sentido aqui. “Até o Último Homem” bebe na fonte de Spielberg ao inserir o
espectador dentro do battlefield,
entrincheirados como os combatentes. Já a decisão de trazer Garfield para o
papel principal foi certeira! O ator convence pelo olhar compassivo, pela voz
baixa, tranquila e insegura, contrapondo com as suas corajosas atitudes no
front.
Fugindo de clichês de filmes do gênero, Gibson usa aqui e ali uma trilha
sonora mais clássica, heroica, deixando por conta dos gritos de dor, tiros e explosões a
composição diegética dos sons. O fato é que a biografia desse soldado é tão
inverossímil que o roteiro de Robert Schenkkan e Andrew Knight tiveram que cortar algumas
partes que aconteceram na vida real por serem extravagantes para a ficção.
Nesse contexto, quando ao final do longa surgem os verdadeiros heróis contando
e ratificando tudo o que foi visto, constatamos que realmente a arte imitou a
vida.
*Avaliação: 4,0 pipocas + 5,0 rapaduras = nota 9,0.