quinta-feira, 10 de novembro de 2011

EM CARTAZ: O PALHAÇO


















Sensibilidade à flor da pele. 
Rafael Morais
08 de novembro de 2011

Em meados de 2009, Selton Mello foi tomado por uma profunda crise de identidade, fazendo-o repensar quais os caminhos profissionais deveria seguir. E em O PalhaçoBenjamim (Selton) busca, incessantemente, pela sua digital, literalmente, já que o circense só tem uma surrada certidão de nascimento. 

Com uma linda sequência de abertura, marcada por desenhos com traços minimalistas, ao som de uma bela trilha sonora original, o filme ganha o espectador nos primeiros quinze minutos de projeção. A apresentação de cada integrante da trupe circense, fotografada ricamente em cores marcantes nas horas certas e desfocadas nos momentos adequados, conta com o carisma da dupla de palhaços Puro Sangue (o magnífico, Paulo José) e Pangaré (Selton), pai e filho que dividem o picadeiro e a rotina do dia a dia. 

Trata-se de um longa-metragem com a estrutura de road movie, ou seja, um filme de estrada com os personagens itinerante-viajantes, sem um local fixo para trabalhar ou morar. Esse estilo guarda uma vantagem significante: a mesmice passa longe ao sermos apresentados às novas "figuras" e locais encantadores.

Logo no primeiro take, constatamos que estamos diante de um filme delicado, tocante e de raro bom gosto. Observe que aqueles cortadores de cana, diante de um sol escaldante e do labor árduo, param alguns segundos o que estão fazendo, para ver a turma do Circo Esperança passar, nome bem sugestivo para um povo sofrido. Naquele mágico instante não há problema, angústia ou cansaço. Nem que pouco depois, a realidade bata-lhe a cara como forma de se mostrar presente.

Confesso que me surpreendi com a sensibilidade e delicadeza de Selton perante as câmeras, até porque ainda não vi o seu primeiro trabalho como diretor (Feliz Natal, 2008). O enquadramento dos personagens, tanto do protagonista quanto dos coadjuvantes, no plano central, revela o amadurecimento do cineasta em dar ênfase a todos de forma paritária, ganhando destaque quase similar conferido ao protagonista. Com isso, o diretor coloca o espectador como a plateia do espetáculo.

O que torna o filme particular, e não só um apanhado de boas referências, é que elas estão servindo em O Palhaço para fazer um elogio autêntico da tradição brasileira do humor verbal, e aqui, mais do que nunca, visual. Os enquadramentos harmônico-geométricos transformam toda situação num palco em potencial. Quando Benjamin e os demais encontram o mecânico ou o delegado (Tonico Pereira e Moacir Franco respectivamente), os personagens são dispostos na cena para que um fique no "palco" (a oficina, a mesa do delegado) e os demais fiquem na "plateia" (o banco dos réus onde Benjamin se senta). 

Ao usar mais da imagem do que da fala para contar a história, Selton consegue fazer cinema como poucos. Fugir do atual cinema "verborrágico" e demasiadamente explicativo é um mérito. Contemplar a cena em que Benjamin se despede de sua família, nos faz pensar: "Valeu a pena vir ao cinema".  Afinal, uma imagem vale mais do que mil palavras.

A construção do arco dramático do protagonista é redonda. O drama do palhaço fora do picadeiro é comovente. ”Pai, acho que não tô dando conta", revela Benjamin ao seu velho, como se pedisse ajuda desesperadamente. "Mas se eu faço os outros rirem, quem vai me fazer rir?", questiona Benjamin, com os olhos marejados, a uma desconhecida (Fabiana Karla, do Zorra Total), que retruca: " Você é engraçado!". As pessoas esquecem que os palhaços também podem ter o seu momento introspectivo e triste.

Já a obsessão do palhaço por ventilador, começa pela necessidade física de ar diante do calor infernal interiorano e, acima de tudo, representa o mínimo de conforto que um ser humano pode ter depois de um duro dia de trabalho. Diante disso, o sujeito sai em busca de um alívio para sua angústia constante, de algo que o faça sorrir e experimentar o mundo com frescor (e novamente o símbolo do ventilador surge relevante). É preciso entender o objeto como um símbolo, uma metáfora, é o sonho de consumo, dos mais modestos, de um trabalhador.  

Não podemos deixar de aplaudir o fabuloso trabalho da direção de arte. O Palhaço cria um universo ao mesmo tempo realista e fabulesco. Os detalhes estão por toda parte, no próprio Circo Esperança, há placas sobre os instrumentistas (“Não atire nos músicos”, diz uma delas); ambientes como a delegacia, comandada pelo personagem de Franco, o delegado Justo como diz a plaqueta sobre a mesa, pura ironia; e como não perceber as guloseimas oferecidas durante o espetáculo (refrescos e paçocas), além da camisa imunda do personagem de Jackson Antunes; não menos interessante é o letreiro: "ofissina". Tudo soa verossímil no mundo de O Palhaço.

Conferindo importância à garotinha Guilhermina (Manoela) ao constantemente enfocar sua reação aos acontecimentos e assim sugerindo que aquela é, de certa forma, sua história, e é. A intenção é fazer com que a inocência de uma criança supere as maledicências de um adulto.       

No fundo, é na homenagem a nomes da comédia nacional e internacional (Didi Mocó, Mazzaropi, Oscarito e Chaplin), que Selton Mello e Benjamin encontram a cura da sua crise. É uma cura pela coletividade, por sentir-se parte de algo, sentimento que tem uma boa expressão justamente no mundo do circo. Isso fica mais do que evidente no plano (também com a ideia de palco) em que Jorge Loredo (o eterno, Zé Bonitinho) conta uma piada, sentado na ponta de uma mesa. Na outra ponta da mesa, de novo em posição de plateia, Benjamin sorri de verdade, pois sabe que enfim encontrou alguém que o fizesse rir.


Selton Mello foi capaz de levar o espectador a se encantar por aquela família e se emocionar com as suas histórias. Concordo com Moacir Franco, que em recente entrevista disse que sente saudade daquela turma que contracenou. Realmente, a inesquecível trupe tem um carisma marcante.
  

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