Por Rafael Morais
Durante um fim de semana na praia, em uma casa de veraneio, uma família passa por maus bocados quando se vê cercada por "sósias" ameaçadores. Premissa simples, mas que esconde camadas no desenrolar da trama. "Nós" é o novo trabalho do diretor e roteirista Jordan Peele (do aplaudido "Corra!"). Advindo do Youtube, onde realizava esquetes de humor, o hoje cineasta foi parar na TV com o divertido programa "Kee and Peele", o qual deixo a minha recomendação, desde já.
Repleto de signos, o longa brinca com as expectativas do público a cada cena, subvertendo-as sempre que possível. Não espere por clichês consagrados do gênero, “jump scares” formulaicos e facilitações narrativas. O novel diretor é sofisticado o bastante para criar um estilo próprio, bem seu. E nesta fórmula, ainda há espaço para ótimas referências cinematográficas e da cultura pop, como blusas estampando "Jaws/Tubarão", de Spielberg, e o icônico "Thriller" de Michael Jackson.
A narrativa, com o jeitão Peele de ser, tem no uso da comédia a sua principal característica. Para quem curte o horror clássico, talvez demore a se acostumar com o “terrir”. Falo isso baseado, principalmente, numa sequência em que pais e filhos disputam quem abateu mais inimigos, abrindo até contagem, numa típica piada deslocada. Isso pode tirar o espectador mais hardcore do clima de tensão, do punch e do peso necessário dos acontecimentos. Contudo, por outro lado, atrai um público maior, tornando o terror mais palatável no exagero do alívio cômico.
E por mais que Winston Duke se esforce, no papel do pai de família Gabe, é Lupita Nyong’o quem, definitivamente, rouba a cena na pele da mãe Adelaide. Os trejeitos faciais, a mudança da voz e as expressões corporais da atriz, sobretudo na composição de seu duplo, são sensacionais!
Tecnicamente impecável, a refinada direção de arte é capaz de adornar objetos que se tornarão memoráveis ao simples visualizar do cartaz: as luvas e as tesouras (signo este que significa cortar as convenções/normas), bem como o figurino vermelho (a cor do perigo), em forma de macacão, poderão influenciar cosplays no futuro, anote aí.
A trilha sonora, por sua vez, criada exclusivamente para o filme, não consegue fugir do lugar comum, apelando para violinos distorcidos e batidas desenfreadas, em que pese funcionar bem no crescente estranhamento do público ao descascar as camadas. Já as músicas escolhidas mastigam o que estamos vendo em tela, dando um ar de paródia. Merece destaque, entretanto, o belo jogo de câmeras do cineasta, quando usa e abusa de travellings (giro em 360º) que servem tanto para situar melhor o espectador na geografia da cena, quanto para nos colocar na perspectiva do personagem abordado. A sequência inicial do parque demonstra bem isso.
Assim, esta obra pode ser absorvida como um simples exemplar de horror, em seu primeiro nível. Porém, há espaço para uma leitura sob o ponto de vista psicológico, sobre o terror de não ser único, de ter um duplo me perseguindo, ainda mais numa versão piorada e animalesca de mim mesmo (e a natureza freaky da cópia explicita bem o estado natural - “o homem é o lobo do próprio homem”); sob o viés da repressão e dos padrões sociais, dos quais somos meros ratinhos de laboratório girando em rodas pré-estabelecidas, e quem ousa sair paga o preço; das questões sociais mais emblemáticas (“poucos com muito e muitos com pouco”), traçando paralelos entre as oportunidades e as desigualdades, afinal as sobras alimentam, mas causam rancor; da escancarada crítica ao “american way of life” - e quando perguntam quem são os duplos e o que eles querem, a resposta “somos americanos” entrega demais, tendo em vista que o título “Us” tanto pode traduzir “Nós” para a nossa língua, como significa as iniciais de “United States”, originalmente.
Muito mais audaciosa que “Get Out!”, a película peca exatamente nisso: ao tentar fazer uma obra aberta a várias interpretações, Peele esquece de desenvolver o contexto, chutando o balde para o realismo, como se as metáforas, por si só, fossem suficientes. Desta forma, deslumbrado com a subjetividade, desapegado às amarrações de pontas soltas, o filme, mesmo que interpretado na superficialidade, infelizmente, não funciona como deveria.
Terminada a salada, fica a confusão de juntar tudo isso num liquidificador, bater e servir ao espectador esta pretensiosa combinação. Tá servido?
*Avaliação: 4,0 Pipocas + 3,5 Rapaduras = 7,5.