O oitavo filme de Quentin Tarantino pode carregar em seu
título uma metáfora: os "8 odiados", em questão, poderia ser, além da
óbvia indicação numérica dos protagonistas, uma referência à filmografia do
cineasta, pelo ponto de vista de seus detratores?! É certo que muitos torcem o
nariz para o Cinema de Tarantino, talvez por isso a ironia já no título.
De todo modo, a trama da vez gira em torno de uma diligência,
ambientada após a guerra civil americana, onde o carrasco John Ruth (Kurt
Russel) se incumbe de levar a prisioneira Daisy Domergue (Jennifer Jason Leigh)
à cidade de Red Rock, local em que será julgada e condenada à forca em
decorrência de seus crimes cometidos. Mas no caminho, em meio a uma forte
nevasca, os planos de Ruth começam a mudar quando topa com o Major Marquis
Warren (Samuel L. Jackson) no seu caminho, um enigmático caçador de
recompensas, resolvendo dar carona a este sujeito após um longo diálogo de
convencimento. Além de Warren, o aspirante a xerife Chris Mannix (Walton
Goggins) também atravessa o destino da carruagem, embarcando naquela inesperada
expedição.
Dividido em capítulos, como já é comum em algumas de suas
obras, o filme se preocupa em apresentar estes personagens, durante o seu
primeiro ato, estabelecendo as suas intenções através da profundidade que os
detalhados diálogos oferecem. Assim, é no segundo ato que o conflito ganha
forma com a chegada do comboio - fugindo da severa tempestade - no armarinho de
Minnie e Sweet Dave. A partir daí, o longa investe num clima claustrofóbico,
enfatizado por enquadramentos que remetem ao enclausuramento, uma vez que
dentro da cabana conhecemos os demais personagens: o britânico Oswaldo Mobray
(Tim Roth imitando claramente Christoph Waltz), o cowboy Joe Gage (Michael
Madsen), o mexicano Bob (Demian Bichir), o idoso general confederado Sanford
Smithers que lutou contra os rebeldes (Bruce Dern) e o cocheiro O.B Jackson.
Rodado em 70 mm, em câmeras Ultra Panavision, o diretor
consegue ampliar a profundidade de campo, explorando ainda mais o universo
microcosmo daquele inóspito local. Mérito também para a bela e evocativa
fotografia de Robert Richardson, que consegue entregar uma identidade à cabana,
com pouca luz, mas aquecida sempre em tons amarelos, dando ênfase em objetos
importantes na mise en scène, contrastando com o clima gélido e branco da
nevasca lá fora.
Contudo, como não estamos falando de um filme qualquer,
Tarantino trata logo de apresentar as suas "armas" e o sangue não
demora a jorrar, e em profusão, literalmente. Violência gráfica, sarcasmo,
montagem não linear, o perfeito uso de músicas pontualmente inseridas: tudo
grita o estilo “tarantinesco”. Identidade visual não falta ao longa,
definitivamente. E o uso das cores, neste sentido, faz toda a diferença: como
não notar o bule azul, objeto decisivo no roteiro? Como não reparar nos bombons
espalhados pelo chão da cabana, pedindo atenção para cores alegres em meio ao
caos? Ponto também para a minuciosa direção de arte que capricha no design
interior do armazém. Cercado por correntes e ganchos, o ambiente remete não só
à relação da prisioneira, mas de todos os personagens ali envolvidos que de
certo modo também estão encurralados. Sem contar com a ilustre trilha sonora
original composta por ninguém menos que o mestre Ennio Morricone. Compositor
acostumado a criar temas para westerns, Morricone foge do clichê e traz uma
abordagem com notas de tensão, carregada de suspense, que quando entra em cena
toma o filme para si, de tão impactante e icônica. Os prêmios e as indicações
conquistadas não são à toa.
Já quanto à interligação dos filmes, o próprio Tarantino já
declarou que todos fazem parte do mesmo universo. Será que os doces vendidos no
armazém de Minnie têm relação com aqueles mostrados em Django Livre, quando o
vilão Calvin Candie (que remete a Candy, doce), vivido por Leonardo Di Caprio,
aparece com os dentes podres de tanto consumir estas deliciosas balas?!
O certo é que temática e cronologicamente, esta nova película
se passa após as aventuras de Django, já que oficialmente a escravidão já havia
acabado, pelo menos no papel. O racismo, tema recorrente, também está presente
aqui e em suas diversas formas. Perceba, em um olhar mais apurado, que o longa
não se preocupa apenas com o inevitável impasse mexicano - coisa que o diretor
já havia feito em "Cães de Aluguel" - e menos ainda com o tiroteio
desvairado (Django está aí para isso).
Em "Os 8 Odiados", Tarantino vai além e constrói,
alegoricamente, uma visão da sociedade americana baseada na representatividade,
incluindo, sobretudo as minorias: uma mulher marcada para morrer, sem direito à
defesa e julgada por homens, que a maltratam constantemente; um mexicano, que
através da sua mão de obra, participa ativamente da construção do conflito e
mesmo amigo dos americanos sempre é o primeiro a ser acusado, podendo ser
interpretado como um representante da classe de imigrantes daquele país; o
operariado na figura do cocheiro O.B. Jackson, sempre escolhido para os
trabalhos mais pesados e difíceis, exposto ao relento do frio e até mesmo
quando é "sorteado" o sujeito é escolhido; o negro lutando pela sua
igualdade, mesmo que para isso precise se utilizar de mecanismos ilusórios,
atraentes aos olhos dos brancos (e a carta que Warren carrega retrata bem
isso), como uma forma de se aproximar e ganhar respeito, mesmo trapaceando; um
idoso preconceituoso, na figura de um general confederado que já matou inúmeros
homens “pelo bem” da nação; o mercenário, caçador de recompensa que já trucidou
índios durante a guerra; e um homem da lei, o xerife sem estrela, sem
distintivo, apenas na palavra, na persona "inocente" de Mannix.
Sim, estamos diante de uma obra que deve ser apreciada com
paciência e detalhismo, até porque possui quase 3 horas de duração. Enfim,
demonstrando o domínio habitual às suas narrativas, Tarantino, que também
escreveu o roteiro, dar o ar da sua graça em uma participação como sujeito
interlocutório, abusando da metalinguagem, ao narrar uma sequência importante à
história, tirando o espectador de um foco para outro, jogando com a nossa
percepção, ao tempo em que homenageia o mais puro Cinema.
*Avaliação: 4,5 pipocas + 5,0 rapaduras = nota 9,5