segunda-feira, 11 de julho de 2022

Com Spoilers - OS OITO ODIADOS


Por Rafael Morais

O oitavo filme de Quentin Tarantino pode carregar em seu título uma metáfora: os "8 odiados", em questão, poderia ser, além da óbvia indicação numérica dos protagonistas, uma referência à filmografia do cineasta, pelo ponto de vista de seus detratores?! É certo que muitos torcem o nariz para o Cinema de Tarantino, talvez por isso a ironia já no título.

De todo modo, a trama da vez gira em torno de uma diligência, ambientada após a guerra civil americana, onde o carrasco John Ruth (Kurt Russel) se incumbe de levar a prisioneira Daisy Domergue (Jennifer Jason Leigh) à cidade de Red Rock, local em que será julgada e condenada à forca em decorrência de seus crimes cometidos. Mas no caminho, em meio a uma forte nevasca, os planos de Ruth começam a mudar quando topa com o Major Marquis Warren (Samuel L. Jackson) no seu caminho, um enigmático caçador de recompensas, resolvendo dar carona a este sujeito após um longo diálogo de convencimento. Além de Warren, o aspirante a xerife Chris Mannix (Walton Goggins) também atravessa o destino da carruagem, embarcando naquela inesperada expedição.

Dividido em capítulos, como já é comum em algumas de suas obras, o filme se preocupa em apresentar estes personagens, durante o seu primeiro ato, estabelecendo as suas intenções através da profundidade que os detalhados diálogos oferecem. Assim, é no segundo ato que o conflito ganha forma com a chegada do comboio - fugindo da severa tempestade - no armarinho de Minnie e Sweet Dave. A partir daí, o longa investe num clima claustrofóbico, enfatizado por enquadramentos que remetem ao enclausuramento, uma vez que dentro da cabana conhecemos os demais personagens: o britânico Oswaldo Mobray (Tim Roth imitando claramente Christoph Waltz), o cowboy Joe Gage (Michael Madsen), o mexicano Bob (Demian Bichir), o idoso general confederado Sanford Smithers que lutou contra os rebeldes (Bruce Dern) e o cocheiro O.B Jackson.

Rodado em 70 mm, em câmeras Ultra Panavision, o diretor consegue ampliar a profundidade de campo, explorando ainda mais o universo microcosmo daquele inóspito local. Mérito também para a bela e evocativa fotografia de Robert Richardson, que consegue entregar uma identidade à cabana, com pouca luz, mas aquecida sempre em tons amarelos, dando ênfase em objetos importantes na mise en scène, contrastando com o clima gélido e branco da nevasca lá fora.

Contudo, como não estamos falando de um filme qualquer, Tarantino trata logo de apresentar as suas "armas" e o sangue não demora a jorrar, e em profusão, literalmente. Violência gráfica, sarcasmo, montagem não linear, o perfeito uso de músicas pontualmente inseridas: tudo grita o estilo “tarantinesco”. Identidade visual não falta ao longa, definitivamente. E o uso das cores, neste sentido, faz toda a diferença: como não notar o bule azul, objeto decisivo no roteiro? Como não reparar nos bombons espalhados pelo chão da cabana, pedindo atenção para cores alegres em meio ao caos? Ponto também para a minuciosa direção de arte que capricha no design interior do armazém. Cercado por correntes e ganchos, o ambiente remete não só à relação da prisioneira, mas de todos os personagens ali envolvidos que de certo modo também estão encurralados. Sem contar com a ilustre trilha sonora original composta por ninguém menos que o mestre Ennio Morricone. Compositor acostumado a criar temas para westerns, Morricone foge do clichê e traz uma abordagem com notas de tensão, carregada de suspense, que quando entra em cena toma o filme para si, de tão impactante e icônica. Os prêmios e as indicações conquistadas não são à toa.

Já quanto à interligação dos filmes, o próprio Tarantino já declarou que todos fazem parte do mesmo universo. Será que os doces vendidos no armazém de Minnie têm relação com aqueles mostrados em Django Livre, quando o vilão Calvin Candie (que remete a Candy, doce), vivido por Leonardo Di Caprio, aparece com os dentes podres de tanto consumir estas deliciosas balas?!

O certo é que temática e cronologicamente, esta nova película se passa após as aventuras de Django, já que oficialmente a escravidão já havia acabado, pelo menos no papel. O racismo, tema recorrente, também está presente aqui e em suas diversas formas. Perceba, em um olhar mais apurado, que o longa não se preocupa apenas com o inevitável impasse mexicano - coisa que o diretor já havia feito em "Cães de Aluguel" - e menos ainda com o tiroteio desvairado (Django está aí para isso).

Em "Os 8 Odiados", Tarantino vai além e constrói, alegoricamente, uma visão da sociedade americana baseada na representatividade, incluindo, sobretudo as minorias: uma mulher marcada para morrer, sem direito à defesa e julgada por homens, que a maltratam constantemente; um mexicano, que através da sua mão de obra, participa ativamente da construção do conflito e mesmo amigo dos americanos sempre é o primeiro a ser acusado, podendo ser interpretado como um representante da classe de imigrantes daquele país; o operariado na figura do cocheiro O.B. Jackson, sempre escolhido para os trabalhos mais pesados e difíceis, exposto ao relento do frio e até mesmo quando é "sorteado" o sujeito é escolhido; o negro lutando pela sua igualdade, mesmo que para isso precise se utilizar de mecanismos ilusórios, atraentes aos olhos dos brancos (e a carta que Warren carrega retrata bem isso), como uma forma de se aproximar e ganhar respeito, mesmo trapaceando; um idoso preconceituoso, na figura de um general confederado que já matou inúmeros homens “pelo bem” da nação; o mercenário, caçador de recompensa que já trucidou índios durante a guerra; e um homem da lei, o xerife sem estrela, sem distintivo, apenas na palavra, na persona "inocente" de Mannix.

Sim, estamos diante de uma obra que deve ser apreciada com paciência e detalhismo, até porque possui quase 3 horas de duração. Enfim, demonstrando o domínio habitual às suas narrativas, Tarantino, que também escreveu o roteiro, dar o ar da sua graça em uma participação como sujeito interlocutório, abusando da metalinguagem, ao narrar uma sequência importante à história, tirando o espectador de um foco para outro, jogando com a nossa percepção, ao tempo em que homenageia o mais puro Cinema.

*Avaliação: 4,5 pipocas + 5,0 rapaduras = nota 9,5

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