Por Rafael Morais
Reeditando a parceria de “Na Mira do Chefe” (2008), o trio Colin
Farrell, Brendan Gleeson e o cineasta Martin McDonagh voltam a se encontrar
nesse inusitado ensaio sobre a afeição em “Os Banshees de Inisherin”.
Aclamado pela crítica, e com nove merecidas indicações ao
Oscar deste ano, o filme é todo situado em uma ilha remota na costa oeste da
Irlanda de 1923, tendo como contexto histórico a Guerra Civil Irlandesa. Entretanto,
isso é apenas um pano de fundo para retratar outro embate mais intimista que se avizinha.
A história acompanha os amigos de longa data Pádraic (Colin
Farrell) e Colm (Brendan Gleeson), que se encontram em um impasse quando Colm
inesperadamente põe fim à amizade deles. Um atordoado Pádraic - auxiliado por
sua irmã Siobhán (Kerry Condon) e o problemático jovem ilhéu Dominic (Barry
Keoghan) - se esforça para consertar o relacionamento, recusando-se a aceitar
um não como resposta. Os esforços repetidos de Colm de pôr um fim no
relacionamento apenas fortalecem a determinação de seu ex-amigo de reatá-lo. E
quando Colm entrega um ultimato desesperado, consequências para ambos começam a
acontecer.
Destaque para as excelentes atuações. Colin Farrel se perde na pele de um homem ingênuo (ou seria infantil?) rústico e gentil que reluta diante do iminente fim de uma convivência. Barry Keoghan entrega um Dominic como sendo aquele sujeito interiorano atrapalhado que podemos encontrar em qualquer cidadezinha. Perturbado e dono de um olhar sofrido, o garoto é peça fundamental no desenrolar da história, uma vez que força a amizade com Pádraic e acaba espelhando a relação dos dois protagonistas em pé de guerra. Já Siobhán, a irmã do protagonista, encarnada por Kerry Condon, é a construção de uma persona que sabe balancear bem a razão e a emoção. Doce, amorosa, inteligente e confiável, a mulher estava à frente do seu tempo, porém, o seu amor fraternal a mantinha na ilha.
Neste sentido, o roteiro brilha no desenvolvimento dessas figuras,
encontrando em Colm (Gleeson) o contraponto perfeito para o conflito. O cara é
um músico culto, talvez o único artista local, talentoso e conhecido por todos.
O problema é que, de repente, sem mais nem menos, ele cansa dos papos aleatórios (para não falar besteirol), de jogar uma boa conversa fora e da
companhia de Pádraic. Deste modo, o filme começa a mexer com o espectador quando
entrega um misto de alegrias e tristezas na mesma cena. Confesso que,
bruscamente, deu vontade de rir e chorar, ao mesmo tempo, em algumas situações. É uma
típica comédia dramática, bem “bipolar”, que leva a carência e todo o peso
contido na expressão “meu melhor amigo é fulano” ao extremo.
Apostando na atmosfera bucólica da ilha, a direção de arte
capricha nos detalhes e na retratação da época. As casas e o bar (ponto-chave
para o desenrolar da narrativa), repletos de objetos cenográficos harmônicos e
condizentes, são microcosmos vivos que passam o calor das pessoas que ali
transitam. Há alma, há vida e confraternização transmitida à percepção/sensibilidade
do público. Ao final da sessão, no acender das luzes, a película me deu uma
sensação de estar deixando para trás não somente a sala de cinema, mas também
aquela ilha e os personagens apresentados, tamanha a imersão. Parecia que eu
estava lá com eles o tempo todo.
Não menos espetacular, a trilha sonora evocativa e
regionalista de Carter Burwell nos conduz por paisagens e diálogos
inesquecíveis. A cultura irlandesa parece estar bem representada na linda
composição do músico. Da mesma forma, a fotografia deslumbrante de Ben Davis se
utiliza da luz natural, da própria natureza em si e de panorâmicas para
enquadrar os conflitos e as angústias de maneira poética. Burwell sabe enclausurar
quando tem que fazê-lo e abrir no momento certo.
Assim, tudo que presenciamos de intrigas acaba, metaforicamente,
sendo um paradoxo frente ao que as lentes de Davis captura. Um lindo mar no
horizonte, tendo duas pessoas dialogando ferozmente ao centro, por exemplo, pode ser um
sinônimo de recomeço/esperança em determinada cena. Um “armistício” entre
indivíduos que se atacam e resolvem dar uma trégua, tal qual nações em tempos
de hostilidade?!
Na verdade, “Os Banshees de Inisherin” é um filme contido,
“pequeno”, mas ao mesmo tempo grandioso na sua proposta e resultado. É sobre
rejeição versus gentileza. É sobre como saber lidar com as pessoas, mesmo que algumas
não lhe sejam mais agradáveis, sem ser um otário rude. É atemporal, ao passo que
dialoga com a empatia (ou falta dela), o estresse da sociedade, com os
desencontros, os caminhos opostos, com o paradoxo do tempo, da finitude e da
vontade do homem em se tonar inesquecível. Parece ambicioso, mas não é, acredite. Tudo transcorre deliciosamente natural diante de seus olhos. E quando
menos perceber você terá pensado nesses temas sem se quer fazer esforço.
Em contrapartida, é uma obra que o público precisa “comprar”
a ideia da metáfora literal estabelecida na metade do segundo ato até o
derradeiro: quando um sujeito lá “corta da própria carne”, indo às últimas
consequências. Caso contrário, esse longa-metragem talvez não seja para você.
Contudo, assim como na vida, a amizade também é sobre
“besteiras”. Sobre conversar coisas deslocadas, a respeito da leveza e da
confiança de um no outro para rir de episódios que nem mesmo sabem o motivo de
estar rindo. E se rir de si é o melhor remédio, Colm está precisando desse
antídoto urgente!
Por fim, temos uma pura dramédia irlandesa que discute a
complexidade de uma amizade de forma alegórica, intimista e arrebatadora.
*Avaliação: 4,5 Pipocas + 5,0 Rapaduras = 9,5.