Por Rafael Morais
*texto escrito no Blog em março de 2017 e revisado em janeiro de 2023
Um homem rapta três garotas e as leva a um cativeiro, onde descobriremos quais as suas verdadeiras intenções. Esta premissa de “Fragmentado” seria idêntica a tantas outras caso quem estivesse por trás de sua idealização não fosse o cineasta M. Night Shyamalan. Diretor e roteirista, o indiano surpreendeu o público, no final da década de 90, com “O Sexto Sentido” entregando um dos plot twist (reviravolta) mais memoráveis do Cinema atual. Aliás, a expectativa gerada em cima da sua carreira, após o sucesso estrondoso, acabou deixando-o refém do próprio estilo: o final de cada filme teria que vir acompanhado de uma virada espetacular.
Taxado por parte da crítica como o novo Hitchcok (não apenas por fazer uma ponta no seu próprio filme), e amado pelo público sedento por surpresas - que adora ser enganado, no bom sentido - o cineasta se viu no comando de filmes medíocres como “O Último Mestre do Ar” e “Depois da Terra”, por exemplo, sendo este último encomendado por Will Smith no intuito de promover o seu filho. Enquanto artista autoral, Shyamalan é consciente do Cinema que pretende realizar, porém, se perdeu entre uma produção e outra, graças à tentação ($$$) de Hollywood.
Dito isto, “A Visita” iniciou a parceria com a Blumhouse (selo independente ligado a filmes de terror/horror), ocasião em que o indiano ensaiou um retorno, esperado com ansiedade pelos fãs, trazendo fôlego à sua cambaleante filmografia. Aqui em “Fragmentado”, por sua vez, o roteiro é auxiliado pela magnífica atuação de James McAvoy. Inspirado, o ator interpreta um sujeito perturbado, diagnosticado com TDI (Transtorno Dissociativo de Identidade), passando a desenvolver 23 personalidades distintas, das quais 6 ou 7 são melhores abordadas durante o filme.
E é justamente Dennis, uma de suas personas, responsável pelo sequestro das meninas, bem como por toda a arquitetura do plano, que causa o estopim no interior do vilão/protagonista. A batalha introspectiva entre os diversos tipos que residem na “caixola” do sujeito é admirável graças à composição de McAvoy, dotado de expressões físicas e corporais. Representar, na mesma tomada e sem cortes aparentes, uma transição de uma criança de 09 anos de idade, frágil e vacilante, para um adulto com mania de limpeza, forte e seguro, passando por uma mulher maquiavélica, tudo dentro do mesmo ser, quase simultaneamente, é algo fantástico que só um ator multifacetado consegue fazer.
Deste modo, repare como o intérprete se utiliza de uma simples peça de figurino, o cachecol, para entregar nuances distintas para cada personalidade coexistente. Quando levanta o objeto e desfere um olhar de vaidade, acompanhado de um sorriso e voz suave, temos uma figura feminina; ao passo que quando se cobre com a mesma peça e entrega um ar de medo, insegurança, temos Kevin, o verdadeiro “paciente zero”.
Mérito também para a direção de arte na concepção do ambiente em que as vítimas estão confinadas. Claustrofóbico, o lugar guarda nos detalhes um pouco da identidade de cada persona. Destaque também para a jovem atriz Anya Taylor-Joy (sucesso em “A Bruxa”), na pele de Casey. Personagem feminina inteligente, com atitudes dignas de quebrar convenções do gênero, tendo apenas o seu desenvolvimento prejudicado por conta de flashbacks deslocados que trazem a sua versão infantil passando por traumas de abusos, representada por uma atriz mirim, que não se parece em nada com o seu biotipo na fase adulta, o que acaba nos tirando um pouco do filme, além de quebrar o ritmo da narrativa, essencial no suspense.
Terror psicológico de primeira, “Fragmentado” se revela um interessante
estudo de personagens quando se volta para o confinamento no intuito de
observar a complexidade do ser humano. Daí a explicação para os enquadramentos
fechados nos rostos, desfocando o que estiver ao fundo, ou nas laterais. As
facetas são o que importa para a ideia funcionar, e funciona!
Assim, com um desfecho genial que interliga o universo “shayamalaniano” (a Marvel está fazendo escola) temos uma obra voltada para o nascimento de um poderoso monstro, numa espécie de jornada do vilão, contrapondo, sincronicamente, com outro filme do cineasta, o qual não entrarei em detalhes para evitar spoiler.
*Avaliação: 4,0 pipocas + 4,5 rapaduras = nota 8,5.