Por Rafael Morais
Gravidade, do diretor mexicano Alfonso Cuarón (Filhos da Esperança), fala mais sobre um drama (quase um estudo de personagens), tendo como pano de fundo o suspense, do que propriamente uma ficção científica, diferente do que se especulava antes de seu lançamento. O fato é que ao enfocar questões existenciais/ontológicas, a solidão e o autocentrismo, o cineasta flerta com a subjetividade, dando "asas" à identificação direta do público com as personas apresentadas.
Assim, não estamos diante de um blockbuster qualquer. Foram investidos mais de $100 milhões de dólares em computação gráfica e cada centavo é recompensado visualmente, tornando a obra tecnicamente impecável; além de ajudar na construção e linguagem narrativa.
A história, por sua vez, se passa no hostil, enigmático e belo espaço, na órbita terrestre, a 600 quilômetros de altura. Neste ambiente, onde a vida é impossível - poeticamente paradoxal à proposta do filme e o seu desfecho - uma equipe de astronautas e cientistas faz a manutenção e instalação de algumas peças no telescópio Hubble quando surge o alerta trágico: vários detritos estão chegando em alta velocidade à sua posição. Em minutos, pegando todos os astronautas de surpresa, a catástrofe está consumada, não restando nada seguro a se apegarem, a não ser uns aos outros (literalmente). Diante disto, restam apenas a Dra. Ryan Stone (Sandra Bullock) e o comandante da missão, Matt Kowalsky (George Clooney), à mercê da própria sorte, totalmente indefesos e vagando pelo espaço.
Mas para narrar esta "epopeia" sobre a vida, ou como sobrevivê-la, Cuarón abusa (no bom sentido) de seus já famosos planos-sequência lindamente intermináveis, chegando ao ápice quando aproxima ou distancia o foco/close nos astronautas e os objetos que os cercam. Tudo isso em um mesmo take, como se incluísse o espectador naquela história, forçando-o a confrontá-la de perto, mesmo que não queira - quando há a aproximação - pois não é possível fugir por mais que a câmera se distancie.
Contudo, o que vai imperar durante boa parte da película é a justaposição dos personagens com o espectador, tanto é que em uma belíssima e inesquecível tomada, o cineasta nos transporta para dentro do capacete da Dra. Ryan, onde assumimos o seu ponto de vista e compartilhamos a sua experiência, para depois nos tirar de lá sem um mínimo corte aparente.
A verdade é que tecnicamente não há o que se repreender em Gravidade. A utilização do som, ou falta dele, bem como a contemplação do silêncio, torna o ensaio ainda mais agoniante, uma vez que o diretor aprendeu com os erros das ficções que não respeitavam algumas leis da física, sendo certo que no espaço o som não se propaga. Logo, mesmo diante de todos os impactos dos detritos com os objetos em cena, não escutamos absolutamente nada, apenas sentimos as colisões. E se você acha que ouviu os estrondos desses choques, saiba que, mais uma vez, o Cinema usou da arte de contar uma mentira, ludibriando-o e fazendo-o acreditar que a trilha sonora de Steve Price, inteligentemente diegética, entra no momento certo, levando o público a "erro". Genial!
Não menos brilhante, os efeitos visuais são de tirar o fôlego (especialmente em 3D - lágrimas desprovidas de gravidade se cruzam com as do público, apreciando o encanto da fragilidade humana e sua persistência). Explosões em gravidade zero, além de longos e aflitivos planos sem cortes durante as chuvas de detritos que acontecem a cada 90 minutos - tempo esse que serve de parâmetro para que a Dra. Ryan cronometre o que poderá ser o seu fim - tornando o roteiro ágil ao prender a nossa atenção até o final.
E por falar em roteiro, para boa parte da crítica, este é o único probleminha do filme. Mas como ando longe de ser crítico, não entendo assim. O argumento é perspicaz ao aprofundar - na medida do possível - a personagem principal com o público. Repare que uma simples conversa entre a Dra. Ryan (na pele da surpreendente Sandra Bullock) e o tenente Matt (o sempre competente e talentoso George Clooney) ao ser indagada sobre o seu nome um tanto masculino, a astronauta confessa que o seu pai queria um menino ao invés de menina. É algo simples, mas que faz uma grande diferença em um filme-sobrevivência, onde a vida passará sobre os olhos daqueles que se encontram em uma situação limite. Aliás, Clooney desempenha um papel importantíssimo na trama como um profissional já experiente, servindo como um desafogo a quase insuportável tensão apresentada, praticamente um alívio cômico, ao fazer piadinhas ou emprestar uma voz suave e calma no auxílio à sua colega novata.
Mas é no buscar um sentido para viver, nos "renascimentos" da Dra. Stone - seja em posição fetal ao tirar o seu pesado uniforme, envolta pelas cordas da astronave, tal qual um bebê recebendo o básico para a sua sobrevivência através de um cordão umbilical; seja pelos seus "primeiros"/segundos passos em outro momento da película - que Cuarón encontra no espaço uma beleza para a vida; na natureza física selvagem rebusca um momento para reflexão, onde dirigir, apenas para se deixar levar, sem rumo algum, não nos cabe mais. E não à toa o sobrenome da heroína é Stone, que significa pedra, metáfora para alicerce, matéria-prima de uma fortaleza.
* Avaliação: 5,0 Pipocas + 5,0 Rapaduras
= nota 10.
** A produção concorreu a 10 estatuetas no Oscar de 2014, ganhando 07 no total.