O Frankenstein de Almodóvar.
Por Rafael Morais
Quando
o cirurgião plástico Robert Ledgard (Antonio Banderas) perde a sua esposa,
em consequência de um acidente de carro, uma "ferida incurável"
parece ter brotado na alma do amargurado homem. Isto porque, depois desse
evento traumático, Ledgard se dedica, obsessivamente, a
produzir uma pele perfeita, imune a quase tudo: picadas de insetos, dores das
mais diversas e até mesmo às marcas do tempo; resultado de uma mutação de
DNA humano com suíno.
É
inevitável pensar, a princípio, que o misterioso doutor estava tentando, na
verdade, lidar com o abalo de perder a amada ao recriar a tal "casca"
impenetrável, fazendo alusão direta à violência da fatídica tragédia. Entre
tecidos costurados e pensamentos sombrios, o protagonista "brinca" de
ser deus, desafiando os limites da conduta moral e ética, enquanto que os seus
pares ameaçam estragar a "brincadeira" através de uma possível
denúncia ao conselho ético da comunidade de médicos. Contudo, não se engane,
nada aqui é o que parece.
Interessante
perceber que, por essência, o longa tende a fugir dos clichês do gênero, pelo
qual Almodóvar revelou que sua intenção ao adaptar o
livro Tarântula - do francês Thierry Jonquet - seria entregar uma obra de
horror sem gritos ou sustos. E é exatamente isso que ele faz. Na contramão
do jump scare, temos um suspense psicológico dirigido com a
elegância de um cineasta ímpar. Imagino que se essa mesma premissa/pitching tivesse
caído em mãos menos talentosas, o resultado faria inveja a qualquer exemplar
de torture porn. Afinal, a diferença entre o veneno e o remédio
está na dosagem.
Assim,
o diretor espanhol e sua equipe são igualmente competentes na escolha do
elenco, que traz uma linda e intrigante Elena Anaya, como Vera; voltando a
trabalhar, depois de tantos anos, com um Banderas inspiradíssimo, por
sinal. As fantásticas atuações abordam a estranheza de um relacionamento entre
o médico (ou monstro àquela altura?!) e a mulher que ele mantém presa em sua
luxuosa mansão. O mistério toma conta a partir do segundo ato até o surpreendente
desfecho.
Tecnicamente
brilhante, o premiado longa ainda é dono de uma evocativa trilha sonora
composta por acordes e canções capazes de imprimir o ritmo necessário no
escalonamento da tensão, como também no tom da dramaticidade.
No
entanto, o que destoa um pouco nessa genial obra é a forma como o roteiro
aborda a relação de Ledgard e o seu irmão, o Tigre. Talvez a
inserção de flashbacks abordando as suas
infâncias ajudaria a formar o elo necessário para entendermos esse
disfuncional envolvimento fraternal entre os dois.
A
propósito, alternar as linhas temporais e suas respectivas camadas é algo
orgânico na montagem proposta por Almodóvar. Observe, por exemplo, na cena
em que Vera está deitada, pronta para dormir, e um flash/parênteses
interrompe o tempo presente da história e nos remete, subitamente, a um passado
sinistro e perturbador, algo desconcertante no caminhar dos acontecimentos.
Estarrecedor!
Mas
como diria um antigo jargão popular: "A vingança é um prato que se
come frio". Mais do que isso, A Pele que Habito vai
além da vendeta, que viria mais cedo ou mais tarde; a película
é um ensaio provocativo e angustiante sobre as diferentes fases do
luto, a saúde mental, a sexualidade, entre tantos temas. Definitivamente,
é o raro tipo de filme que se revela um estudo de personagens e nos dá calafrio
ao lembrar das reviravoltas. É daqueles que tira completamente o espectador do
prumo ou de qualquer zona de conforto. Simplesmente obrigatório.
NOTA: 5,0 Pipocas + 5,0 Rapaduras = 10