terça-feira, 28 de dezembro de 2021

ANIVERSARIANTES MEMORÁVEIS - 10 anos de A PELE QUE HABITO

    O Frankenstein de Almodóvar.

Por Rafael Morais

Quando o cirurgião plástico Robert Ledgard (Antonio Banderas) perde a sua esposa, em consequência de um acidente de carro, uma "ferida incurável" parece ter brotado na alma do amargurado homem. Isto porque, depois desse evento traumático, Ledgard se dedica, obsessivamente, a produzir uma pele perfeita, imune a quase tudo: picadas de insetos, dores das mais diversas e até mesmo às marcas do tempo; resultado de uma mutação de DNA humano com suíno.

É inevitável pensar, a princípio, que o misterioso doutor estava tentando, na verdade, lidar com o abalo de perder a amada ao recriar a tal "casca" impenetrável, fazendo alusão direta à violência da fatídica tragédia. Entre tecidos costurados e pensamentos sombrios, o protagonista "brinca" de ser deus, desafiando os limites da conduta moral e ética, enquanto que os seus pares ameaçam estragar a "brincadeira" através de uma possível denúncia ao conselho ético da comunidade de médicos. Contudo, não se engane, nada aqui é o que parece. 

Interessante perceber que, por essência, o longa tende a fugir dos clichês do gênero, pelo qual Almodóvar revelou que sua intenção ao adaptar o livro Tarântula - do francês Thierry Jonquet - seria entregar uma obra de horror sem gritos ou sustos. E é exatamente isso que ele faz. Na contramão do jump scare, temos um suspense psicológico dirigido com a elegância de um cineasta ímpar. Imagino que se essa mesma premissa/pitching tivesse caído em mãos menos talentosas, o resultado faria inveja a qualquer exemplar de torture porn. Afinal, a diferença entre o veneno e o remédio está na dosagem.

Assim, o diretor espanhol e sua equipe são igualmente competentes na escolha do elenco, que traz uma linda e intrigante Elena Anaya, como Vera; voltando a trabalhar, depois de tantos anos, com um Banderas inspiradíssimo, por sinal. As fantásticas atuações abordam a estranheza de um relacionamento entre o médico (ou monstro àquela altura?!) e a mulher que ele mantém presa em sua luxuosa mansão. O mistério toma conta a partir do segundo ato até o surpreendente desfecho.

Tecnicamente brilhante, o premiado longa ainda é dono de uma evocativa trilha sonora composta por acordes e canções capazes de imprimir o ritmo necessário no escalonamento da tensão, como também no tom da dramaticidade.

No entanto, o que destoa um pouco nessa genial obra é a forma como o roteiro aborda a relação de Ledgard e o seu irmão, o Tigre. Talvez a inserção de flashbacks abordando as suas infâncias ajudaria a formar o elo necessário para entendermos esse disfuncional envolvimento fraternal entre os dois.

A propósito, alternar as linhas temporais e suas respectivas camadas é algo orgânico na montagem proposta por Almodóvar. Observe, por exemplo, na cena em que Vera está deitada, pronta para dormir, e um flash/parênteses interrompe o tempo presente da história e nos remete, subitamente, a um passado sinistro e perturbador, algo desconcertante no caminhar dos acontecimentos. Estarrecedor! 

Mas como diria um antigo jargão popular: "A vingança é um prato que se come frio". Mais do que isso, A Pele que Habito vai além da vendeta, que viria mais cedo ou mais tarde; a película é um ensaio provocativo e angustiante sobre as diferentes fases do luto, a saúde mental, a sexualidade, entre tantos temas. Definitivamente, é o raro tipo de filme que se revela um estudo de personagens e nos dá calafrio ao lembrar das reviravoltas. É daqueles que tira completamente o espectador do prumo ou de qualquer zona de conforto. Simplesmente obrigatório.

NOTA: 5,0 Pipocas + 5,0 Rapaduras = 10

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