quinta-feira, 30 de dezembro de 2021

ANIVERSARIANTES MEMORÁVEIS - 10 anos de O PALHAÇO

   Sensibilidade à flor da pele. 

Por Rafael Morais

Em meados de 2009, Selton Mello foi tomado por uma profunda crise de identidade, fazendo-o repensar por quais caminhos profissionais deveria seguir. E em O Palhaço, o protagonista Benjamim (vivido pelo ator e agora diretor) busca, incessantemente e literalmente, pela sua digital, já que o circense só tem uma surrada certidão de nascimento. 

Com uma linda sequência de abertura, marcada por desenhos com traços minimalistas, ao som de uma bela trilha sonora original, o filme já ganha o espectador nos primeiros quinze minutos de projeção. A apresentação de cada integrante da trupe burlesca - fotografada ricamente em cores marcantes nas horas certas e desfocadas nos momentos adequados - conta com o carisma da dupla de palhaços Puro Sangue (o magnífico Paulo José) e Pangaré (Selton Mello), pai e filho que dividem o picadeiro e a rotina do dia a dia. 

Trata-se de um longa-metragem com a estrutura de road movie, ou seja, um filme de estrada com os personagens itinerante-viajantes, sem um local fixo para trabalhar ou morar. Esse estilo guarda uma vantagem significativa: a mesmice passa longe ao sermos constantemente apresentados às novas "figuras" e locais encantadores.

Logo no primeiro take, constatamos que estamos diante de uma obra delicada, tocante e de raro bom gosto. Observe a cena onde surgem uns cortadores de cana que, diante de um sol escaldante e do labor árduo, param alguns segundos o que estão fazendo para ver a turma do Circo Esperança passar, nome bem sugestivo para um povo sofrido. Naquele mágico instante não há problema, angústia ou cansaço. Nem que pouco depois, a realidade bata-lhe a cara como forma de se mostrar presente.

Confesso que me surpreendi com a sensibilidade e delicadeza de Mello por trás das câmeras, até porque ainda não havia assistido o seu primeiro trabalho como diretor em Feliz Natal, de 2008. O enquadramento dos personagens, tanto do protagonista quanto dos coadjuvantes, no plano central, revela o amadurecimento do cineasta em dar ênfase a todos de forma paritária. Com isso, o realizador coloca o espectador diretamente na arquibancada do espetáculo.

O que torna a película particular, e não apenas um apanhado de boas referências, é que elas estão servindo para fazer um elogio autêntico à tradição brasileira do humor verbal, e aqui, mais do que nunca, visual. Os enquadramentos harmônico-geométricos transformam toda situação num palco em potencial. Quando Benjamin e os demais encontram o mecânico ou o delegado (Tonico Pereira e Moacir Franco, respectivamente), os personagens são dispostos na cena para que um fique no "palanque" (a oficina ou a mesa do delegado) e os demais fiquem na "plateia" (o banco dos réus onde o protagonista se senta). 

Ao usar mais da imagem do que da fala para contar a história, o promissor cineasta consegue fazer Cinema como poucos. Portanto, contemplar a cena em que Benjamin se despede de sua família é daquela que “paga o ingresso”. Valeu a pena sair de casa e ir ao cinema.  Afinal, uma imagem vale mais do que mil palavras.

Assim, a construção do arco dramático do palhaço é redonda. O drama fora do picadeiro é comovente. "Pai, acho que não tô dando conta", revela Benjamin ao seu velho, como se pedisse ajuda desesperadamente. "Mas se eu faço os outros rirem, quem vai me fazer rir?", questiona com os olhos marejados a uma desconhecida, que retruca: "Você é engraçado!". As pessoas esquecem que os saltimbancos também têm o seu momento introspectivo e triste.

Já a obsessão do palhaço por ventilador revela um roteiro preocupado com a metáfora, uma vez que o símbolo representa a necessidade física de vento diante do calor infernal interiorano e, acima de tudo, o mínimo de conforto que um ser humano pode ter após de um duro dia de trabalho. Diante disso, o sujeito sai em busca de um alívio para sua angústia constante - que amenize seu sufoco e areje as suas ideias - e de algo que o faça sorrir ao experimentar o mundo com frescor (e novamente o ventilador surge relevante). É interessante interpretar o objeto como um signo: é o sonho de consumo, dos mais modestos, de um trabalhador.  

Não menos fantástica, a direção de arte é digna de aplausos. O estupendo trabalho de ambientação cria um universo ao mesmo tempo realista e fabulesco. Os detalhes estão por toda parte, seja no próprio Circo Esperança, onde há inusitadas placas fixadas do tipo: “Não atire nos músicos”; seja em ambientes como a delegacia, comandada pelo personagem de Moacir Franco, o delegado que se chama Justo, como informa a plaqueta sobre a mesa - pura ironia. E como não perceber as guloseimas, compostas por refrescos e paçocas, oferecidas durante o espetáculo?! Além do figurino maltrapilho do personagem de Jackson Antunes. Igualmente imersivo é o letreiro "ofissina". Tudo é mambembe e soa verossímil no mundo de O Palhaço.

Conferindo importância à garotinha Guilhermina (a ainda pequenina Larissa Manoela) ao enfocar sua reação aos acontecimentos e assim sugerindo que aquela é, de certa forma, também sua história, a obra se volta ao olhar inocente de uma criança capaz de superar as maledicências de um adulto.   

No fundo, é na homenagem a ícones da comédia nacional e internacional (Didi Mocó, Mazzaropi, Oscarito e Chaplin), que Selton Mello e Benjamin encontram a cura para a sua crise, em forma de autoanálise e reverência. É também na libertação pela coletividade, por sentir-se parte integrante de algo, sentimento este que tem uma boa expressão justamente no mundo circense. Isso fica mais do que evidente no plano (também com a ideia de picadeiro) em que Jorge Loredo (o eterno Zé Bonitinho) conta uma piada, sentado na ponta de uma mesa. Na outra ponta, de novo em posição de plateia, o protagonista sorri de verdade, pois sabe que enfim encontrou alguém que o fizesse rir.

NOTA: 5,0 Pipocas + 5,0 Rapadura = 10

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