quarta-feira, 17 de setembro de 2025


 Por Isa Barretto
*com spoilers

O conceito de dois tornarem-se um único nunca foi tão literal quanto em 'Together' (2025), dirigido por Michael Shanks e estrelado por Dave Franco e Alison Brie. A velha promessa romântica da “metade da laranja” ganha aqui contornos de perturbação física e psicológica: não se trata mais de metáfora, mas de corpos que se fundem, de identidades que se diluem, de fronteiras que deixam de existir.

A história apresenta Tim e Millie, um casal em reconstrução, que decide recomeçar a vida no interior. Mas, numa exploração aparentemente banal, eles se deparam com uma força estranha, capaz de uni-los de forma visceral. O que começa como proximidade e cumplicidade logo se transforma em pesadelo: cada gesto de afeto cobra um preço, cada tentativa de autonomia desencadeia dor, e a promessa de nunca mais se separar deixa de soar poética para se tornar uma prisão. A presença do vizinho Jamie, vivido por Damon Herriman, intensifica a tensão — ele é sombra do futuro, espelho do que pode acontecer quando se entrega demais ao mito da fusão absoluta.

O incômodo em Together está justamente em como expõe o romance como um terreno de risco. Shanks aposta em efeitos práticos, texturas úmidas, closes sufocantes e sons que parecem grudar na pele do espectador. A câmera nos força a olhar o que não queremos ver: a intimidade transformada em sufocamento, o carinho confundindo-se com posse. Não há cortes que aliviem, não há romantização. O resultado é a sensação de sermos cúmplices de algo que preferiríamos negar.

Franco e Brie surpreendem ao subverter a própria química de casal. A entrega é intensa e desconfortável: ele transita entre vulnerabilidade e rigidez, criando um personagem imprevisível; ela sustenta o peso emocional, resistindo ao colapso até ser arrastada pela lógica dessa fusão impossível. O trabalho dos dois é corajoso, sem vaidade, disposto a explorar o feio e o doloroso. Já Damon Herriman acrescenta um peso inquietante: seu olhar e sua presença sugerem a ruína de quem já foi consumido por essa mesma lógica, funcionando como aviso em carne viva.

A inovação do longa está em inverter o clichê do amor como salvação. Ser “um só” não é sublime, mas monstruoso. O toque que deveria curar aprisiona; a promessa de inseparabilidade revela-se pacto com o abismo. Esse movimento vai além do terror físico: é comentário incômodo sobre co-dependência, ilusões que sustentam relações e sobre como o medo da solidão pode corroer aquilo que temos de mais humano — a possibilidade de escolha.

No fim, 'Together' não oferece catarse. O que entrega é uma beleza amarga, quase deformada, ao revelar que o amor só sobrevive quando aceita a distância, o espaço e a alteridade. A fantasia de fusão, tão celebrada nas histórias românticas, surge aqui como o verdadeiro horror. É por isso que o filme permanece colado — não apenas na memória, mas na pele — como um lembrete incômodo de que o extraordinário não está em desaparecer no outro, mas em sustentar o encontro permanecendo dois, inteiros!

terça-feira, 16 de setembro de 2025

A Vida de Chuck


Por Isa Barretto 

'A Vida de Chuck' é um filme que se desenha de trás para frente, como quem, diante da morte, decide revisitar cada instante com a clareza do que realmente importa. Mike Flanagan, ao adaptar Stephen King, constrói uma narrativa que não se apoia em sustos ou efeitos, mas naquilo que é mais humano: a consciência de que somos finitos e, justamente por isso, podemos ser grandiosos. O filme começa pelo fim, pelo apagamento do mundo e da vida, e daí regressa à infância do protagonista, revelando não apenas um homem, mas a soma de seus gestos, de seus afetos e de sua escolha em viver de modo extraordinário diante do ordinário.

Tom Hiddleston dá corpo a um Chuck adulto que não se conforma em apenas existir. Ele escolhe encantar, escolhe dançar no meio da rua quando todos se recolhem, escolhe agradecer mesmo quando nada parece restar. E é nessa decisão de ser luminoso no escuro, de criar beleza em meio à ruína, que reside a grandeza do personagem. O extraordinário não surge de poderes sobrenaturais ou de feitos impossíveis, mas da coragem de transformar o banal em epifania, de fazer da própria vida um palco no qual multidões podem se emocionar.

A direção de Flanagan nos lembra, com ritmo contemplativo e imagens carregadas de melancolia, que cada gesto simples é imenso quando visto da perspectiva do fim. O avô vivido por Mark Hamill amplia essa dimensão, ao trazer nas entrelinhas a dor, o amor e os vínculos que moldam quem somos. Há poesia em cada detalhe, na forma como o tempo é tecido ao contrário, como se o filme quisesse nos dizer que só quando olhamos para trás compreendemos a delicadeza de cada camada da existência.

No fundo, 'A Vida de Chuck' é menos sobre a morte e mais sobre a escolha de viver de modo inteiro, de ser maravilhoso diante da banalidade, de transformar o ciclo da vida em um espetáculo que merece aplausos. O filme nos lembra que todos carregamos a possibilidade de ser lembrados não pelo que acumulamos, mas pelo que conseguimos transmitir: encantamento, generosidade, humanidade. E quando o fim chega — como chegará para todos — resta a certeza de que o extraordinário aconteceu, porque alguém decidiu enxergá-lo e criá-lo no meio da vida comum.

sábado, 6 de setembro de 2025

Fórmula 1


Por Isa Barretto

As luzes vermelhas se apagam, as bandeiras baixam, e o coração do público dispara junto ao rugido dos motores. Mas aqui não é apenas corrida: é cinema em estado puro de adrenalina. 'Fórmula 1' (2025), dirigido por Joseph Kosinski (Top Gun: Maverick), transforma a velocidade em espetáculo visual e sonoro, colocando o espectador dentro do cockpit, onde cada curva parece uma sentença e cada ultrapassagem, um ato de coragem.

O longa acompanha Brad Pitt como Sonny Hayes, um veterano chamado de volta às pistas para guiar o jovem talento vivido por Damson Idris. A dupla é sustentada por um elenco de peso: Javier Bardem dá corpo ao chefe de equipe, Kerry Condon brilha como a engenheira-chefe, e nomes como Tobias Menzies, Sarah Niles e Kim Bodnia completam esse mosaico de personagens que carregam o drama para além da pista.

O roteiro não se contenta em mostrar carros correndo. Ele fala de legado, de escolhas e do impacto do tempo. Kosinski conduz a narrativa com equilíbrio: deixa o barulho ensurdecedor dos motores falar, mas também nos oferece o silêncio dos boxes e a respiração contida do piloto antes da largada. É nesse contraste que o filme encontra sua força.

Tecnicamente, é um espetáculo. O som dos carros não é apenas ruído — é música, quase um cântico ritual. A fotografia ousada nos joga no meio da ação, fazendo sentir a vibração da pista no corpo. Tudo isso cria uma experiência que não se limita a impressionar, mas que busca emoção genuína.

E quando vemos arquibancadas lotadas, multidões que vibram a cada curva, é impossível não pensar nas arenas da Roma Antiga, quando cidadãos se reuniam para assistir a heróis colocarem a vida em risco diante do público. A Fórmula 1 herda esse espírito: um espetáculo moderno que mistura risco, glória e catarse coletiva.

Para os fãs, essa é uma experiência visceral. Os pilotos surgem como semideuses que desafiam a morte em busca de eternidade. E, para nós brasileiros, ouvir o eco distante do nome Ayrton Senna é reencontrar um herói que permanece vivo na memória, um mito que atravessa gerações.

No fim, 'Fórmula 1' não é apenas sobre carros em alta velocidade. É sobre superação, coragem, sacrifício e a beleza de testemunhar homens que decidiram viver como lendas. Quando os motores rugem e os "deuses" correm, nós acreditamos de novo no impossível.

quinta-feira, 4 de setembro de 2025

Eu Sei o Que Vocês Fizeram no Verão Passado (2025)

 

Por Isa Barretto

Quem não gelou ao ver a figura do pescador de capa de chuva e gancho em punho, transformando a culpa em pesadelo coletivo? Essa imagem fez de Eu Sei o Que Vocês Fizeram no Verão Passado (1997), de Jim Gillespie, um clássico imediato dos slashers dos anos 90. Com Jennifer Love Hewitt, Sarah Michelle Gellar, Freddie Prinze Jr. e Ryan Phillippe, o filme não só surfou na onda de Pânico como consolidou o vilão como ícone de uma geração.

A sequência, Eu Ainda Sei o Que Vocês Fizeram no Verão Passado (1998), de Danny Cannon, ainda segurava a mão no terror adolescente, mesmo com sinais de desgaste narrativo. O público aceitava: afinal, era verão, tinha suspense, tinha gancho, e tinha Jennifer gritando de novo.

Mas em 2025, o que a diretora Jennifer Kaytin Robinson entrega é quase uma piada de mau gosto. Trouxeram de volta Jennifer Love Hewitt e Freddie Prinze Jr. — e aí entra a pergunta: a que preço? O herói improvável das duas primeiras versões, que quase morreu várias vezes para salvar Julie, agora é transformado em… assassino? Sem motivação, sem arco, sem lógica. Que psicologia é essa? Que Freud é esse que justifica virar psicopata do nada?

Enquanto isso, o novo elenco — Madelyn Cline, Chase Sui Wonders, Jonah Hauer-King, Tyriq Withers, Sarah Pidgeon, Billy Campbell e Gabbriette Bechtel — parece ensaiar para um High School Musical versão terror, mas sem coreografia. Atuam como se a morte fosse apenas mais um teste de elenco para série adolescente da Netflix.

Tecnicamente, o filme também tropeça. A fotografia é clara demais para um terror que deveria ser sombrio. A trilha é genérica, incapaz de criar tensão. Os sustos são tão previsíveis que chegam a ser quase didáticos: o público não se assusta, apenas marca ponto no bingo do clichê.

E o pior: a “grande reviravolta” da vítima que vira vilão destrói o DNA da franquia. O original girava em torno de culpa, segredo e paranoia. Aqui, tudo se resume a um twist mal feito, que mata a coerência e sepulta a memória dos filmes anteriores. O pescador com gancho já não assusta — virou objeto de cena, quase decorativo.

Ou seja: o novo Eu Sei o Que Vocês Fizeram no Verão Passado não é apenas ruim. Ele é uma aula involuntária de como desrespeitar uma franquia e ainda tentar vender nostalgia como justificativa. No fim, só resta rir, porque alguns verões deveriam ser lembrados… e outros quem sabe deveriam ser enterrados de vez.