
Por Isa Barretto
Quando o Caçador e a Presa Trocam de Máscara
'Strange Darling' não é apenas um thriller psicológico. É um quebra-cabeça cuidadosamente embaralhado que se recusa a oferecer qualquer pista concreta. Desde os primeiros minutos, o filme lança o espectador em uma dança de percepções — e não demora a deixar claro: aqui, nada é o que parece.
Sob a direção de JT Mollner, a narrativa se constrói em fragmentos, como se estivéssemos observando um mesmo acontecimento refletido por diferentes espelhos quebrados. A estrutura não linear não é apenas um recurso estético, mas a engrenagem central que nos manipula — e que, muitas vezes, revela nossa cumplicidade na confusão.
O roteiro, engenhoso e provocador, nos instiga constantemente: quem está no comando? Quem é a vítima? E, afinal, onde reside a verdadeira ameaça? No centro desse nó narrativo, acompanhamos dois personagens intensos — vividos por Willa Fitzgerald e Kyle Gallner — que tornam a experiência ainda mais hipnótica.
Fitzgerald transita entre vulnerabilidade e controle, sustentando uma presença magnética que nunca entrega tudo de imediato. Já Gallner apresenta uma atuação marcada por uma tensão silenciosa, incômoda na medida certa, que nos faz questionar suas intenções a cada cena. Juntos, eles nos conduzem por um labirinto psicológico onde cada gesto, cada olhar, pode carregar um significado oposto ao esperado.
É aí que Strange Darling se sobressai: ele nos força ao desconforto. Nos obriga a revisar julgamentos apressados. Em uma sociedade moldada por expectativas de gênero — onde o homem é o predador e a mulher, a vítima — o filme desconstrói essa fórmula e expõe que a loucura, o desequilíbrio e a perversidade não têm rosto definido. Nem gênero. A insanidade aqui não segue estereótipos; ela simplesmente existe — crua, imprevisível e assustadora.
Com precisão e ousadia, o filme conduz o espectador por caminhos inesperados, lembrando a sensação provocada por Garota Exemplar (Gone Girl, 2014), ao inverter, desmontar e reconstruir a lógica das relações de poder, culpa e percepção. Mas, enquanto o filme de Fincher se apoia nas reviravoltas do enredo, Strange Darling mergulha mais fundo na essência humana — naquilo que nos faz confiar, desconfiar, rotular.
A direção sabe exatamente quando confundir e quando revelar. É um jogo de ritmo e tensão, onde o espectador é levado a tomar partido, apenas para perceber que talvez não existam lados confiáveis. A câmera se aproxima, mas nunca entrega tudo. Ela insinua. Oculta. Distorce. E é nesse jogo de luz e sombra que o filme se torna mais perturbador.
'Strange Darling' é, no fim, um espelho distorcido da nossa necessidade de impor lógica ao caos. De identificar o mal, de rotular a insanidade. Mas o filme recusa esses atalhos. Ele desconstrói o espectador tanto quanto seus personagens. E quando, enfim, chegamos ao desfecho, a sensação não é de alívio, mas de inquietação. Porque, no fundo, a pergunta que permanece não é “quem era o monstro?”, mas “por que eu achei que sabia a resposta tão cedo?”