* SEM SPOILERS
O início do terror moderno se
confunde com a estreia de Jordan Peele como cineasta em "Corra!"
Agora, em "Não! Não Olhe!", a fórmula atinge o seu ápice nesse
thriller magnético e alegórico.
O argumento da vez,
aparentemente simples, aborda a vida de uma família que vive no interior da
Califórnia, local que começa a ter eventos estranhos e, ao que tudo indica, extraterrestres. Os irmãos Emerald e OJ Haywood, interpretados por Keke
Palmer e Daniel Kaluuya, possuem um rancho de cavalos e são vizinhos de um
parque de diversões inspirado no velho oeste e em uma série de televisão do personagem Ricky “Jupe” Park, vivido por Steven Yeun.
Assim, a família rancheira
Haywood, na verdade, é tradicional como domadora e adestradora de equinos,
inclusive quando o assunto é Hollywood, uma vez que os seus animais já fizeram
participação em diversos filmes. Aliás, os irmãos são descendentes do jóquei retratado no
curta-metragem de 1878 “O
Cavalo em Movimento”, considerado como um dos primeiros
exemplos de um filme.
Contudo, depois que objetos
aleatórios caem do céu, resultando na morte de seu pai, os protagonistas
fazendeiros tentam capturar evidências em vídeo de um objeto voador não
identificado com a ajuda do vendedor de tecnologia Angel Torres (Brandon
Perea) e do documentarista Antlers Holst (Michael Wincott).
Utilizando a metalinguagem do início ao fim, o que me surpreendeu positivamente, o longa traça paralelos com o backstage do Cinema e a importância de cada elemento de cena, locação e parafernalha para se fazer uma obra audiovisual; bem como a relevância de cada "ator" (no sentido amplo da palavra, daquele que atua para fazer acontecer) que faz a engrenagem funcionar, não somente o elenco/cast em si.
Desta forma, apesar do título ser enfático à mensagem de “Não Olhe!”, o
filme é um convite para olharmos sim, porque somos humanos, porque somos
instigados a isso. E melhor, contemplarmos o extracampo, mirarmos para além do eixo principal. Observar as
entrelinhas, o periférico e a coadjuvação é o objetivo.
Outra abordagem interessante -
afinal estamos falando sobre uma produção de Jordan Peele e apenas uma
interpretação é pouco diante de tanto simbolismo - é a consequência do ato de
olhar demais: o voyeurismo. Sim, o cinéfilo é um voyeur na essência e fica
difícil um pedido para não prestarmos atenção em algo estampado numa tela enorme
bem na nossa frente. O efeito é o extremo oposto da mensagem: nós olhamos por
pura curiosidade. Mesmo que ela seja mórbida. Talvez o sucesso desses programas
policiais que passam na hora do almoço se deva exatamente a isso: é grotesco,
perigoso e sujo, mas eu vou assistir! Com um sanduíche na mão e um controle
sintonizado no "Barra Pesada", confundiremos catchup com sangue como
uma ficção jamais fez.
E se o medo do desconhecido
instiga, esse "Nope" é um prato cheio! Aqui, a espetacularização é o
mote do roteiro. A certa altura do longa, um personagem diz: "tudo que tem
espírito pode ser domado". Da mesma forma que subestimar um animal
selvagem (seja ele o homem ou não) é mexer num vespeiro, é brincar com fogo e
com algo que está prestes a explodir. Não importa se aguçar seres selvagens e
encarar um bicho quase indomável é arriscado. O que importa é o frame perfeito,
a busca pelo contato, pela viralização, quem sabe; muito embora não se tenha a
menor noção de como chegar, de como domar, de qual o costume tem aquele ser.
Conhecer antes de se aproximar
deveria ser a tônica, mas não é. Pelo menos para a maioria. Mas para OJ
(Kaluuya), que lida com animais a vida toda, o respeito à natureza selvagem
está em primeiro lugar. Talvez por isso o seu personagem foi o que primeiro
"descobriu" qual era o modus operandi daquele objeto voador
que ameaçava a todos. “Como se diz milagre ruim?!” Questiona OJ lá pelas tantas
ao testemunhar um fenômeno aterrador incompreensível. Ele pode até não ser
hábil nas palavras, em contrapartida, tem a expertise de compreender o mundo
animal. Afinal, “em terra de cego quem tem um olho é rei!”
Remetendo a obras como
"Sinais" (M. Night Shyamalan) e "Fogo no Céu" (Robert
Lieberman), no aspecto do suspense e toda sua construção, mas sobretudo a
"Guerra dos Mundos" e "Contatos Imediatos de 3⁰ Grau" no
quesito grandiosidade e espetáculo visual, "Não! Não Olhe!" flerta
mesmo é com "Tubarão" - do também idealizador dos dois últimos longas
citados. Steven Spielberg é praticamente homenageado, uma vez que todo filme de
"monstro", ou de nêmesis que representa uma força colossal da
natureza, foi o diretor que concebeu o conceito e a métrica em
"Jaws". Mas se lá, o perigo ameaçador estava sob as águas; aqui,
paira entre as nuvens. É como se o "Tubarão" visitasse uma fita de faroeste.
Não menos fantástica, a edição
e a mixagem de som são um show à parte. O ranger, a gritaria, o desligar dos
objetos, o som bizarro de uma criatura desconhecida: está tudo lá,
perfeitamente imaginado e captado. A sensação é de estar sendo sugado junto, ou
seria abduzido?! Visualmente impecável, a película tem uma fotografia
contemplativa capaz de explorar bem as paisagens abertas, sem deixar de lado os
enquadramentos fechados para dar a sensação de angústia claustrofóbica em
certos momentos apavorantes. A ambientação também é incrível, vale mencionar.
Por fim, a percepção que fica
é de uma obra repleta de metáforas inteligentes que conversa com alguns dilemas
humanos. O público, certamente, irá se divertir ao juntar cada peça do
quebra-cabeça. Fazer o espectador pensar e discutir ao final da sessão já é um
mérito hoje em dia.
*Avaliação: 4,5 Pipocas + 5,0 Rapaduras = 9,5.