Uma heroína bem ao estilo Fincher.
*resenha escrita em fevereiro de 2012
Assim que saiu a notícia sobre a refilmagem de Os Homens que Não Amavam as Mulheres, ainda sem divulgar o diretor, confesso que fui preconceituoso, pois os rumores davam conta de que seria mais uma investida de Hollywood em obras que não tinham necessidade de serem revisitadas. Mas os burburinhos me ajudaram a pensar negativamente, já que estavam cogitando Brad Pitt no papel de Mikael, me fazendo pensar que a Lisbeth seria Angelina Jolie.
Brincadeiras à parte, mais uma vez eu estava redondamente enganado, a versão de David Fincher fez o sueco soar como uma sessão de SuperCine. A densidade que faltou na primeira versão, dessa vez está na medida. A fotografia dark, ao som de uma trilha sonora digna do enredo, e belas atuações coroam essa obra-prima.
Na verdade, tudo depende da visão peculiar do cineasta sobre uma cena, ou acerca de um personagem. E Fincher não só imprime o ritmo certo à trama, como também anda sobre um "terreno" seguro, onde a realidade, morbidez e detalhismo são os seus pontos fortes. Na versão atual, o diretor adota Lisbeth (a irreconhecível Rooney Mara) como a sua heroína, que mesmo fisicamente fragilizada demonstra uma fortaleza feita de amargura, ressentimentos e desconfianças, principalmente diante do sexo oposto. No entanto, essa carcaça misógina cai por terra quando enxergamos, em alguns momentos, uma menina-mulher, como nas duas cenas em que a personagem está lanchando um Mc Lanche Feliz. É, roubaram a sua infância e isso não volta mais.
Igualmente interessante é a cena em que Lisbeth começa a narrar, diante de fotos no computador, em detalhes, as formas como as vítimas foram mortas; Mikael (o sempre competente, Daniel Craig) pede-a que pare, apesar da visível empolgação da mulher. É a mesma morbidez que, em outro momento, fará a hacker aceitar o jornalista como parceiro sexual digno: logo depois que ela sutura uma ferida na testa de Mikael. O respeito à dor é caro e digno para Lisbeth (repare a indiferença da personagem quando o tatuador avisa que vai doer, e ela "dá de ombros"), como já era esperado de uma heroína vinda de Fincher (Sigourne Weaver em Alien 3, lembra?).
Contudo, o que realmente me deixou impressionado com o filme é a facilidade e o estilo do cineasta ao rodar takes complexos, e que exigem um maior grau de detalhes, como na sequência em que Mikael assinala nos documentos, com um preciso marca-texto que não deixa passar nenhuma observação, demarcando trechos relevantes, e ao fundo imagens surgem ilustrando tudo aquilo. Genial!
Inclusive, a película por diversas vezes nos dá a sensação que estamos lendo o livro, só que ilustrado, no audiovisual, dado o grau de detalhes captados pelo perspicaz olhar de seu idealizador. Claro que o resultado não teria sido excelente, sem o meticuloso trabalho da direção de arte aliada à técnica da mixagem e edição de som. Um show à parte. Como por exemplo disso perceba os dizeres na camiseta de Lisbeth, demonstrando um pouco da sua personalidade; a casa em que Mikael se hospeda; os efeitos de som, perfeitamente orquestrados. Tudo auxilia e dialoga com o suspense psicológico enervante e crescente proposto.
A propósito, a sequência de abertura, acompanhando a trajetória da protagonista, é sensacional ao som de Trent Rezno reembalando o Immigrant Song do Led Zeppelin (ft. Karen O); trilha feita sob encomenda para o longa.
Respeitando o espírito do livro de Stieg Larsson (Millennium: The Girl with the Dragon Tattoo), o roteiro reserva diálogos afiados, viscerais e arrebatadores. É de impressionar a frieza do papo sórdido e doentio de Mikael e Martin no terceiro ato. Ali, temos um vislumbre de onde o jornalista se meteu. Além disso, o estudo de personagem é uma das grandes marcas dessa obra. Desvendar e observar o desenvolvimento de cada integrante daquela nefasta família, bem como do jornalista e da hacker, é um dos méritos do filme.
Enfim, para aqueles que acham que uma adaptação deve seguir fielmente o livro, aconselho repensar a sétima arte, pois um cineasta não deve se prender, alienadamente, a nenhum tipo de paradigma. E Finhcer, modificando um detalhe no desfecho, que, aliás, é de uma sensibilidade sem igual e organicamente harmônico com as sequências vindouras, conseguiu atrair a ira de alguns fãs da obra literária. Não se esqueçam: uma adaptação é baseada livremente na história (já dizia Kubrick quando fez "O Iluminado").
* Avaliação: 5,0 Pipocas + 5,0 Rapaduras = 10,0.