quinta-feira, 21 de novembro de 2024

Nos Cinemas - AINDA ESTOU AQUI

Por Rafael Morais

*esse texto pode conter spoilers

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Rio de Janeiro, 1970.

Em tempos de ditadura militar, uma calorosa família reside de aluguel em frente à praia enquanto prepara o terreno para construir um novo e próprio lar. Pai, mãe e cinco filhos menores vivem o idílico. Mas o sonho logo se transforma em pesadelo quando o ex-deputado federal Rubens Paiva (vivido por Selton Mello), o patriarca, é levado subitamente de sua casa por homens do governo.

A partir desse ponto, o filme, que é uma adaptação do livro homônimo escrito por Marcelo Rubens Paiva (um dos filhos do casal), ganha ares de suspense e drama, sobretudo.

Se no primeiro ato, somos apresentados ao afeto, ao carinho e ao sentimento ardoroso familiar através de uma fotografia quente, por vezes saturada, e que também se utiliza do tom sépia ao reproduzir memórias nostálgicas captadas pela câmera portátil de 8mm de Verônica (o rebento mais velho); no segundo, já temos um contraponto através do azul, do cárcere, da escuridão e do triste enclausuramento de prisioneiros que nem sabem o motivo de estarem sendo tolhidos de sua liberdade.

Assim, o mar, que antes era sinônimo de liberdade, de acolhimento - em que pese o vaivém das ondas significar também que "nada do que foi será do jeito que já foi um dia" (parafraseando Lulu Santos) - agora é trocado por revoltos baldes d'água que limpam celas desenganadas. O sol, antes esbanjando graciosidade e vida, agora dá lugar à frieza de vê-lo "nascer quadrado", como diz aquele jargão. Indiferença esta representada pelos objetos de cena, adornos e vestimentas. O ambiente de tortura dialoga com o inanimado e a rispidez. Ponto para a esplêndida direção de arte assinada por Carlos Conti, capaz de nos situar com precisão não só na época setentista, mas no contexto histórico-cultural.

De tal modo, a transição entre o "céu" do primeiro ato e o "inferno" do segundo é captada pela bela fotografia de Adrian Teijido. O cinza banha o meio do filme como se não houvesse mais esperança. A sombra se apropria da paleta. Mas é na força e na sensibilidade de Fernanda Torres, interpretando Eunice Paiva, uma mulher forte e que galga seu arco de protagonista ao longo da película, que vislumbramos uma "luz no fim do túnel". Observe como Eunice se coloca ao fotografar um grupo de amigos (sem querer aparecer) ou mesmo quando surge lá no cantinho da foto, após insistência de outra pessoa lhe conferindo importância, como se estivesse fadada à coadjuvância. Entretanto, a vida iria exigir todo o potencial de se reinventar daquela mãe, da mulher, muito mais do que ela imaginaria. O que fazer após ser devastada? Rasgar-se e remendar-se, já dizia o poeta Guimarães Rosa.  

E para que essa jornada de redescoberta do protagonismo funcionasse, a gigante (embora introspectiva) atuação de Fernanda Torres foi primordial. Atuando mais com o olhar, apesar de sempre estar prestes a explodir, a atriz encarna Eunice como a personagem de sua vida. O que é referendado pela cirúrgica participação de sua mãe, a grande Fernanda Montenegro, no desfecho. As lembranças confusas de uma idosa (dona de um olhar perdido) acometida por uma doença degenerativa que corrompe justamente as suas reminiscências aborda o looping-tema desse filme.

Observe como a luz quente volta a aparecer sobre a cabeça do neto de Eunice durante uma reunião. É como se ela lembrasse de Rubens, mesmo que vagamente. À mesa, a linhagem descendente conversa, se diverte e conta histórias; ao passo que a velhinha fica escanteada na pontinha, tal qual a maioria dos nossos avós/bisavós repousam em festinhas de família. Não só isso: quando todos mudam de cômodo, lá fica ela de novo esquecida na sala, até que alguém se lembre de trazê-la de volta pra perto. Até porque é um filme sobre resgate.

Afiado, o roteiro de Murilo HauserHeitor Lorega também confere importância ao fator tempo. É preciso vinte e cinco anos para sair uma certidão de óbito de presumido morto, instante em que o sorriso da certeza, pelo menos de um documento, toma o lugar da tristeza da incerteza. Na verdade, é pesado perceber que quando o cachorrinho da família morre atropelado em frente à casa, somente assim eles puderam viver as fases do luto, verdadeiramente. Mas com o pai/marido não tiveram essa oportunidade. Para seguir em frente é preciso “enterrar”, enlutar e seguir. Etapas foram puladas.

Não menos magistral, a direção de Walter Salles (despida de panfletarismo) joga luz às memórias, sejam elas através de gravações audiovisuais, fotografias - datadas no verso, talvez - ou qualquer outro meio. Sejam elas, inclusive, agradáveis ou obscuras, até porque se entrelaçam com a infância e juventude de pessoas que perderam, precocemente, o convívio com um parente próximo. O filme, então, resgata as sensações, as cores, as músicas e aquilo que foi dito ou deixado de dizer. Memória é história. E Salles, capturando a essência do livro e das recordações de Marcelo, alerta para que nada parecido com aqueles tempos espúrios possa acontecer de novo.

Afinal, um sistema ditatorial arranca toda e qualquer dignidade, direito e/ou garantia fundamental que um cidadão possa ter. Esqueçam o acesso à ampla defesa e o contraditório, é puro devaneio aqui. A violência arbitrária prevalece em um terreno sem Justiça. Nesse ponto, a obra envelheceu bem se revelando bastante atual ao nos depararmos com noticiários, de uns tempos pra cá, sobre a existência de planos escabrosos capazes de "pôr em xeque" o estado democrático de direito como conhecemos.

Por fim, minha recomendação é que você vá ao cinema e sorria. Sim, a atitude de ir ao cinema hoje em dia - ainda mais prestigiando uma obra nacional - e de sorrir, são atos de resistência, resiliência e oposição. Mesmo que contrarie a lógica e a expectativa: sorria, ainda estamos aqui! 

quinta-feira, 14 de novembro de 2024

Aniversariantes Memoráveis - 10 anos de INTERESTELAR

 


Por Isa Barretto

'Interestelar', de Christopher Nolan, faz uma década de existência e entrou em exibição nas salas IMAX, por um curto período, em comemoração simultânea ao UCI Day!

E a intrépida @isabarretto foi assistir ao filme, pela primeira vez, para trazer suas reações aqui. Confira...
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Assistir a "Interestelar" pela primeira vez foi uma experiência e tanto, cheia de reflexões que parecem até mais reais agora. O filme mistura ciência com sentimento de um jeito que pega a gente de jeito, falando de buracos de minhoca, viagens no tempo e os limites do ser humano, tanto na tecnologia quanto nas emoções.

Uma das coisas mais bacanas no filme é como ele mostra a relação entre os humanos e a inteligência artificial. Lá atrás, "Interestelar" já trazia os robôs TARS e CASE como muito mais que máquinas. Com doses de emoções, eles trazem humor e um toque humano pras missões, sendo mais do que simples ferramentas – viram parceiros de verdade nessa jornada solitária.

No fundo, a obra é sobre o amor de um pai e uma filha. Cooper (Matthew McConaughey), o protagonista, é obrigado a deixar a filha, Murph, para tentar salvar a humanidade. Mas o laço entre eles é forte demais pra ser quebrado, desafiando tempo e distância. O nome de Murph, que lembra a “Lei de Murphy” (“o que quer que possa acontecer, vai acontecer”), carrega essa mistura de incerteza e esperança – porque ela representa a resiliência e a capacidade de transformação.

Um dos momentos mais marcantes é quando Cooper, perdido numa dimensão fora do tempo, descobre que ele é o "fantasma" que Murph via na infância. Numa tentativa desesperada, ele tenta se comunicar com ela no passado, guiando-a e dando um aviso. Essa cena, de arrepiar, mostra como o amor deles é tão poderoso que rompe até as barreiras do tempo, criando uma conexão quase espiritual.

Outra parte que mexe é a visão da cientista Amelia Brand (Anne Hathaway), que acredita que o amor é uma força invisível, capaz de guiar nossas escolhas, até na busca por um novo lar. Esse amor, pra ela, vai além de qualquer fronteira e inspira decisões que transcendem à nossa própria existência.

O reencontro entre Cooper e Murph, já idosa e cercada pela família, é de cortar o coração. O amor entre eles é eterno, mas Cooper percebe que a vida avança em frente. Murph construiu seu legado, e ele entende que seu recomeço está em outro lugar, talvez ao lado de Amelia.

"Interestelar" é uma experiência que, mesmo depois de uma década, lembra que o amor é nossa âncora mais forte. Seja no amor entre pai e filha, nas nossas buscas e escolhas, ou na conexão com o universo, é uma história que nos faz sentir que vale a pena lutar pelo que realmente importa, mesmo quando tudo parece perdido.

quarta-feira, 2 de outubro de 2024

Nos Cinemas - CORINGA: DELÍRIO A DOIS


Por Rafael Morais

Qual a razão de existir de uma sequência? Dá pra se extrair mais daquela história? O plot é inteligente e sagaz o bastante para justificar uma reentrada? Ou simplesmente a ideia é espremer até a última gota a atuação de um inspirado ator? Esse ‘Coringa 2’ está mais preocupado com a última provocação, infelizmente. Expectativas foram criadas após o sucesso do filme anterior (inclusive rendendo premiações), mas, é uma pena que essa continuação não apresenta um propósito narrativo para prosseguir contando a história de Arthur Fleck.     

O problema é que o roteiro traz momentos previsíveis do que ocorreu com o palhaço após sua prisão. Maus tratos, tortura e as mais diversas situações complicadas que seria “normal” um prisioneiro passar em Gotham City, ou melhor, no presídio Arkham.

E sim, aqui reside outra problemática desse projeto que eu já havia identificado desde o antecessor: não havia a menor necessidade desse filme se chamar ‘Coringa’ e se passar no universo da DC. Funcionaria até melhor se fosse a mesma história dramática, violenta e recheada de suspense de um comediante fracassado e doente, que vai tomando ódio por uma sociedade que o oprime cada vez mais, do que atrelar isso ao vilão clássico do Batman.

Assim, a sequência apela para a violência gráfica no afã de chocar o público gratuitamente, como se dissesse: “olhem, é o mesmo Joker de 2019 que vocês amaram!”. Aqui, para justificar a transição para o gênero musical, os momentos de insanidade se transmutam em números musicais insossos e deslocados.

As canções me tiraram muito do clímax em momentos imprescindíveis capazes de nos conectar com os protagonistas. Bem na “hora H” entrava uma música cantada pelo nosso vilão (que querem à fina força transformar em herói ou anti-herói), ou pelo seu interesse amoroso. Bem no ponto-chave do diálogo, o script enfiava um número musical. “No god, please nooo!!”. E lá para as tantas, no terceiro ato, o próprio Coringa fala pra Arlequina, quase como se falasse pelo público: “não, não canta mais! Não quero mais cantar nem ouvir você cantar!”. Constrangedor!

Joaquin Phoenix acerta de novo e entrega o que se espera dele na pele, e sobretudo no osso, de Arthur Fleck. O ator oscarizado mantém seu nível de atuação imersiva. Contudo, o seu personagem é vítima de um roteiro perdido que parece não saber como avançar sua história de maneira minimamente relevante.

Já a aparição de Harley Quinn, vivida por Lady Gaga, é promissora (lembro que nos trailers eu achei impactante), mas no resultado final carece de química com o seu “pudinzinho”. Afinal, treino é treino e jogo é jogo. Por sinal, fico me perguntando: será que a escolha da cantora pro cast foi determinante para a drástica mudança no gênero do filme, já que sendo um musical ela poderia agregar muito mais?! Acabou que nem fez tanta diferença assim.

Por seu turno, a direção de Todd Phillips até se esforça para, tecnicamente e visualmente, entregar algo estilizado e grandioso. No entanto, o tédio toma conta e o arrastado da narrativa somado às músicas interrompe o ritmo do filme. É uma quebra de expectativa e de fluxo, do ponto de vista negativo, que eu realmente não esperava.

A confusão é tamanha no tom que é notório quando se coloca em perspectiva a reflexão sobre a marginalização social e os efeitos da falta de empatia da sociedade na obra de 2019; enquanto que nesta continuação o propósito parece perdido entre tentar ser um romance disfuncional, um musical bizarro ou um suspense psicológico. O resultado é um filme que se perde em seu próprio delírio a três, colocando Todd Phillips como o principal responsável (afinal ele tinha carta branca) pela mudança brusca de um filme para o outro. Palhaçada! HaHaHa

*Avaliação: 1,5 Pipocas + 2,5 rapaduras = 4,0.


sexta-feira, 8 de março de 2024

OSCAR 2024 - PALPITES

Por Rafael Morais

- OSCAR 2024 -
Como de costume, seguem os meus palpites nas principais categorias. Serão divididos em "na torcida, quem ganha e correndo por fora". Façam suas apostas...

MELHOR FILME

Na torcida - Oppenheimer
Quem ganha - Oppenheimer
Correndo por fora – Anatomia de Uma Queda

DIRETOR

Na torcida – Christopher Nolan
Quem ganha - Christopher Nolan
Correndo por fora – Christopher Nolan

ATOR

Na torcida – Paul Giamatti (Os Rejeitados)
Quem ganha – Cillian Murphy (Oppenheimer)
Correndo por fora - Jeffrey Wright (Ficção Americana)

ATRIZ

Na torcida – Emma Stone (Pobres Criaturas)
Quem ganha - Emma Stone (Pobres Criaturas)
Correndo por fora - Emma Stone (Pobres Criaturas)

ATOR COADJUVANTE

Na torcida – Robert Downey Jr. (Oppenheimer)
Quem ganha - Robert Downey Jr. (Oppenheimer)
Correndo por fora – Ryan Gosling (Barbie)

ATRIZ COADJUVANTE

Na torcida - Da’Vine Joy Randolph (Os Rejeitados)
Quem ganha - Da’Vine Joy Randolph (Os Rejeitados)
Correndo por fora - Da’Vine Joy Randolph (Os Rejeitados)

ROTEIRO ADAPTADO

Na torcida – Ficção Americana
Quem ganha - Ficção Americana
Correndo por fora - Ficção Americana

ROTEIRO ORIGINAL

Na torcida – Anatomia de Uma Queda
Quem ganha – Anatomia de Uma Queda
Correndo por fora - Anatomia de Uma Queda

TRILHA SONORA ORIGINAL

Na torcida – Ludwig Göransson (Oppenheimer)
Quem ganha - Ludwig Göransson (Oppenheimer)
Correndo por fora – Jerskin Fendrix (Pobres Criaturas)

DOCUMENTÁRIO

Na torcida – 20 Dias em Mariupol
Quem ganha - 20 Dias em Mariupol
Correndo por fora – 20 Dias em Mariupol

FILME INTERNACIONAL

Na torcida – A Sociedade da Neve
Quem ganha – Zona de Interesse
Correndo por fora – Dias Perfeitos

ANIMAÇÃO

Na torcida – O Menino e a Garça
Quem ganha - O Menino e a Garça
Correndo por fora - O Menino e a Garça

FIGURINO

Na torcida – Pobres Criaturas
Quem ganha – Barbie
Correndo por fora – Pobres Criaturas

DESIGN DE PRODUÇÃO/DIREÇÃO DE ARTE

Na torcida – Pobres Criaturas
Quem ganha – Pobres Criaturas
Correndo por fora – Pobres Criaturas

MONTAGEM/EDIÇÃO

Na torcida – Anatomia de Uma Queda
Quem ganha – Oppenheimer
Correndo por fora – Pobres Criaturas

EDIÇÃO DE SOM/SOM

Na torcida – Oppenheimer
Quem ganha – Oppenheimer
Correndo por fora – Oppenheimer

EFEITOS VISUAIS

Na torcida – Godzilla Minus One
Quem ganha – Resistência
Correndo por fora – Guardiões da Galáxia Vol.3

FOTOGRAFIA

Na torcida – Oppenheimer
Quem ganha – Oppenheimer
Correndo por fora – Pobres Criaturas

quinta-feira, 25 de janeiro de 2024

Nos Cinemas - VIDAS PASSADAS

                                        

Por Rafael Morais

"Passado é algo que se pode ver, mas não se pode tocar."
( Filme: Amor à Flor da Pele; Dir.: Wong Kar-Wai)

Escrito e dirigido por Celine Song, 'Vidas Passadas' conta a história de Nora (Greta Lee) e Hae Sung (Teo Yoo), dois amigos de infância com uma conexão profunda, mas que acabam se separando quando a família de Nora decide sair da Coréia do Sul e se mudar para a cidade de Toronto. Vinte anos depois, os dois amigos se reencontram em Nova York e vivenciam uma semana fatídica enquanto confrontam as noções de destino, amor e as escolhas que compõem uma vida.

O filme de estreia de Song traz claras referências ao estilo Woody Allen na escolha das locações, no caminhar pelas ruas de New York dando ênfase à arquitetura da megalópole em contraponto aos dilemas de seus protagonistas. A melancolia salta aos olhos. Mas é em Richard Linklater - na trilogia 'Antes do Amanhecer'- que enxergo as maiores semelhanças: um casal "lava suas roupas sujas" andando lado a lado pelas ruas de uma grande cidade enquanto discutem o que poderia ter acontecido SE...é o 'What if' da vida real, na veia, sem dó nem pena.

A obra propõe discutir a respeito de pertencimento, relutância, redescoberta e, principalmente, sobre escolhas e consequências. O carrossel cíclico da vida uma hora vai cobrar o preço da viagem.

Mas é na quebra da quarta parede, logo no início do filme, indicando a metalinguagem proposta sobre o jogo do julgamento, que a história já ganhou minha atenção. Nora e o seu esposo são roteiristas e escritores, o que explica essa narrativa tão inteligente se entrelaçando com o enredo proposto. Afinal, aquele trio no bar, lá no comecinho, seria um triângulo amoroso ou o quê?! Dentre as inúmeras possibilidades de relacionamentos, o olhar charmoso, lançado por Na Young (agora Nora), é também questionador e nos coloca contra a parede - enquanto voyeurs, curiosos e julgadores, ao mesmo tempo - como se nos confrontasse dizendo/fitando: "eu sei que você também já fez escolhas pelas quais não está completamente certo. Então, tá olhando o quê?!"

Na verdade, a mulher contemporânea é manipuladora da situação. Não no sentido pejorativo. Como protagonista das relações, é ela quem vai tomar as rédeas e escolher qual caminho seguir. Claro que cada escolha terá uma consequência, e Nora terá que pagar o preço das suas. Há uma linha tênue entre ser escrota/negligente com o possível amor da sua vida e tomar o rumo da carreira de sucesso, do tão sonhado Nobel. Como se ambas as opções jamais pudessem fazer parte do mesmo mundo. Não se pode ter tudo?!

Todavia, a maneira como o roteiro colocou o misticismo por trás do conceito do 'In-Yun', da cultura coreana, não me convenceu muito. É meio jogado lá para tentar explicar uma ligação irremediável entre pessoas. A tal "tampa da panela", conexão inexorável de vidas, na verdade, me pareceu cafona e mal desenvolvida, mas isso não me tirou totalmente do caminho, da proposta que considerei como a principal: os percalços e reviravoltas que a vida dá e como, definitivamente, não somos o "capitão do nosso próprio barco".

‘Past Lives’ é mais um grande acerto do estúdio A24, que vem se notabilizando pela qualidade de suas produções, pensando sempre “fora da caixa”. Aqui, a subversão do gênero traz um romance moderno. A produtora vem se destacando por tratar temas complexos em filmes dirigidos por excelentes cineastas, sejam eles principiantes ou não. A sutileza é marca registrada, ressaltada pela excelente fotografia. Destinos, sucesso profissional x amoroso e solidão urbana são assuntos recheados por simbolismos, alegorias e metáforas. Perceba, em alguns takes, por exemplo, a opressão dos arranha-céus espremendo o “intruso” He Sung. Essa semiótica, o A24 faz como poucos.    

Não menos primorosa, apesar de sutil, a direção de arte "deixa escapar", não por acaso, que um dos livros de cabeceira de Nora é 'Macbeth', de William Shakespeare. A obra é um dos ensaios mais tenebrosos dos dramas shakespearianos. A peça é uma ótima oportunidade para refletir sobre aspectos sombrios e atemporais do comportamento humano, como ganância, traição e culpa. E Lady Macbeth tem um papel fundamental nesta jornada. Liguem os pontos...

He Sung quer que Nora volte a ser Na Young. Mas ela está disposta a isso?!

Como diria o grande filósofo contemporâneo Jr. Neymar (rsrsrs): “Saudades do que a gente não viveu!”

 Avaliação: 4,0 Pipocas + 5,0 Rapaduras = 9,0.


quarta-feira, 24 de janeiro de 2024

Nos Cinemas - POBRES CRIATURAS

                                         

Por Rafael Morais

O Frankenstein, segundo Yorghos Lanthimos. Filme propõe uma fábula sobre a desconstrução de padrões sociais em prol de uma liberdade utópica.

A jovem Bella Baxter (Emma Stone, fabulosa como sempre) é trazida de volta à vida pelo cientista Dr. Godwin Baxter (o espetacular William Dafoe). Querendo ver mais do mundo, ela foge com um advogado e viaja pelos continentes. Livre dos preconceitos de sua época, Bella exige igualdade e libertação. ‘Pobres Criaturas’ é a história de uma mulher que luta contra a opressão e está pronta para questionar tudo e todos. Que nasce desamarrada das convenções, sem filtro total.

Polêmico, subversivo, controverso, e um tanto perturbador, o longa adapta o livro homônimo de Alasdair Gray. Destaque para a parte técnica do filme: a direção de arte é caprichada e realça os volumes, as nuances e as texturas de cada cena. Surrealismo e expressionismo se confundem, dando vazão a diversos cenários e locações que parecem inspiradas em quadros ambulantes. Telas pintadas à mão aparentam saltar do escopo. Simplesmente lindo e imersivo.

Claro que a impulsiva fotografia de Robbie Ryan é tão deslumbrante que só reforça toda a ideia de quadros artísticos em movimento. A sensação é de estarmos dentro do sonho, e por vezes pesadelo, dos personagens. Os enquadramentos hipnóticos brincam com o conceito de tamanhos, formas e cores. Caricatural, os estereótipos são bem capturados pelas lentes de Ryan.

A já famigerada câmera com lente de "olho de peixe", em 180º, emula uma redoma, um confinamento que a protagonista está passando. Perceba que em ambientes fechados esse tipo de técnica mostra a sua função narrativa. E o diretor de fotografia também se utilizou desse formato para captar as intrigas palacianas em ‘A Favorita’.

Não menos fantástico, o figurino também auxilia nessa imersão a um conto de fadas nada convencional. Tudo isso associado à trilha sonora de Jerskin Fendrix, que usa sons destoantes, desafinados e fora de ritmo para enfatizar a condição errática da protagonista, sobretudo na primeira metade do filme. Os acordes de violinos distorcidos e tambores desconexos não só causam desconforto ao público (de maneira proposital), como auxiliam à narrativa. E sim, lá pelas tantas - progredindo em sincronia com o arco de Bella - a música se ajusta harmonicamente e já passa a soar rítmica.

Assim, ‘Poor Things’ tem embalagem de drama, cheiro de suspense, mas, na essência, trata-se de uma comédia bizarra que se sobressai através dos risos involuntários provocados mais pelo constrangimento das cenas do que propriamente pelos diálogos afiados. E aqui não quero desmerecer o ótimo trabalho de Mark Ruffalo na pele de um impagável cafajeste. Pelo contrário. Bobo e canastrão, na medida, Duncan Wedderburn me fez dar boas e genuínas risadas em algumas sequências.

Mas, felizmente, o roteiro de Tony McNamara é sagaz o bastante para se desvencilhar da estranheza (não seria esta a trincheira final de Lanthimos) e aproximar o espectador. Perceba que a expressão “polido” é utilizada de maneira recorrente no script para dar uma ideia de termômetro social daquilo que você deseja falar, mas acaba pensando mil vezes antes e desiste. Coisa que a protagonista já não tem desde a sua “ressureição”. Isso torna Bella cada vez mais humana e próxima da plateia.

Outra sacada inteligente é a forma como a protagonista chama o seu criador: Dr. Godwin, para ela, é simplesmente God. Não à toa, o diminutivo representa a grandiosidade de um “deus” na vida/sobrevida de Bella. O interessante é que esta alcunha surgiu naturalmente no cotidiano da menina, durante sua criação. É o “painho” dela em forma de divindade.

No entanto, de acordo com o autor do livro, este é um filme que demorou a sair do papel, a ser adaptado, até que algum cineasta tivesse a coragem e o talento necessário. Vários já haviam ficado pelo caminho e desistido no meio do processo. O próprio autor afirmou que a obra seria polêmica demais. Nisso, entra a figura do grego Yorghos Lanthimos com o know-how suficiente para transformar o creepy perturbador em crítica social.

O filme recebeu ‘classificação indicativa 18+’ totalmente justificável. O final do segundo ato há uma ode ao hedonismo que depois “evolui” para discursos políticos diretos e enfáticos sem saber para onde “atirar”. É uma obra pronta para amealhar indicações em festivais e premiações (como de fato aconteceu), muito mais pela técnica impecável e pelas metáforas visuais do que pelo discurso. 

3,5 Pipocas + 5,0 Rapaduras = 8,5. 

                 

quinta-feira, 11 de janeiro de 2024

Nos Cinemas - OS REJEITADOS

                                 

Por Rafael Morais

Nova “dramédia” de Alexander Payne é um filme de natal diferente das galhofas do gênero que você encontra facilmente ao remexer os streamings da vida.

A trama segue a desventura de um professor mal-humorado (vivido pelo excepcional Paul Giamatti) de uma prestigiada escola americana, forçado a permanecer no campus para cuidar do grupo de alunos que não tem para onde ir durante as festas de fim de ano. Assim, o mestre carrasco acaba criando um vínculo improvável com um deles – um encrenqueiro magoado e muito inteligente – e com a cozinheira-chefe da escola, que acaba de perder um filho no Vietnã.

Logo de início, é fácil constatar a semelhança, quase homenagem, de Payne à filmografia de John Hughes, sobretudo ‘Clube dos Cinco’. A familiarização fica notória quando vemos uma turma de adolescentes (e no início são justamente cinco) tendo que ficar mais tempo do que o esperado na escola, cada um com os seus motivos e personalidades diferentes.

Claro que essa aparência com as fitas de Hughes logo se dissipa quando o filme começa a deixar claro sobre o que quer falar. Inspirado em ‘Merlusse’, longa francês dirigido por Marcel Pagnol em 1935, ‘The Holdovers’ (traduzido aqui como ‘Os Rejeitados’) está mais preocupado no estudo dos seus personagens e entender o motivo pelo qual cada um está naquele estado de espírito, do que propriamente com a comédia casual ou situações inusitadas de jovens dentro de uma escola/internato. Aqui, a ironia vence a gag.

Emocionante, e com arcos narrativos bem delineados, o filme acerta na construção de amizades improváveis e na desconstrução das crenças dos seus personagens. Paul Giamatti brilha demais ao entregar a alma de sua persona ao espectador. Complexo, o professor, de cara, causa ranço, mas aos poucos baixa a guarda e traz humanidade. Tomado pelo tom de cinza, sem espaço para o maniqueísmo, o filme aborda uma “simbiose” entre mentor e aprendiz para falar sobre os relacionamentos entre pais e filhos: sejam aqueles negligenciados ou doloridos pela perda.

A empatia, elemento habitual dos filmes de Payne, aqui ganha um charme diferente ao abordar a relação de admiração e poder entre mestre e pupilo. E quanto um professor pode ser importante, de diversas maneiras, na vida de um aluno. O longa parece querer “colar” os relacionamentos quebrados e isso traz um aconchego ao público. Ao final, ‘Os Remanescentes’ (caso fosse traduzido literalmente) é sobre bondade (em tempos de cólera), amparo e maturidade. É um grupo que remanesce/sobrevive às intempéries da vida e entende que o fardo pode ser mais aliviado ao conhecer melhor quem está no “mesmo barco” que o seu.

A reunião de um professor “caxias”, quase amargurado (e ele tem lá seus motivos); um aluno dono de um olhar perdido, que pede ajuda de diversas maneiras, deixado de lado pela família (justo no natal) – e a cena em que ele remexe um globinho de neve simboliza bem a confusão mental de sua autoestima e dos seus sentimentos - e uma mãe que perdeu um filho recentemente, demonstra que todos eles têm mais em comum do que se imagina.

Avaliação: 3,0 Pipocas + 5,0 Rapaduras = 8,0.