quinta-feira, 13 de novembro de 2025

Dica Netflix - Frankenstein

 

Por Isa Barretto

Há quem diga que somos, em grande parte, o resultado daquilo que recebemos — ou deixamos de receber — daqueles que vieram antes de nós.
E a ausência, quando repetida por gerações, cria um ciclo quase automático: quem foi tratado com frieza tende a reproduzir a mesma distância, e quando finalmente tem a chance de ser diferente, muitas vezes falha.
Prefere repetir o padrão conhecido, mesmo que doloroso — e é essa espinha dorsal que atravessa essa releitura de Frankenstein.

Guillermo del Toro sempre enxergou os monstros de um jeito diferente.

Em vez de se deter nas formas e nas deformidades, ele busca o que existe por trás delas — a humanidade, o medo e o afeto escondido sob a pele.

Em Frankenstein, ele retoma esse olhar e transforma o clássico de Mary Shelley em algo mais íntimo: uma história sobre o impulso de criar e o preço de fazê-lo.

Victor Frankenstein, interpretado por Oscar Isaac, não é o cientista enlouquecido de outras versões. É um homem que cria para preencher o vazio, tentando dar sentido à própria solidão. Sua busca pela perfeição se confunde com a incapacidade de aceitar seus próprios limites.

Jacob Elordi, como a Criatura, é o reflexo desse erro. Ele nasce sem culpa, mas é condenado pelo abandono. É um corpo forte com uma alma frágil — e cada olhar carrega o peso de quem foi feito, mas nunca amado.

Entre os dois se constrói a verdadeira tragédia: o criador foge daquilo que fez, e o ser criado busca entender por que existe. Del Toro filma essa relação com calma, deixando o desconforto crescer em silêncio. Não existe vilão, apenas a dor de reconhecer-se no outro.

A fotografia de Dan Laustsen reforça essa ideia. Os tons frios e as sombras longas criam distância, não medo. O visual gótico é elegante, quase contemplativo. Tudo parece girar em torno da culpa — de quem cria e de quem foi criado.

O elenco é preciso. Oscar Isaac entrega um Victor contido, dividido entre o orgulho e o arrependimento. Elordi transforma a Criatura em um ser vulnerável e humano. Mia Goth e Christoph Waltz completam o elenco com atuações que equilibram razão e emoção.

Del Toro preserva o espírito do romance de Shelley, mas fala com a voz do presente.

Se no século XIX o homem tentava ser Deus através da ciência, hoje ele tenta fazer o mesmo através do controle.

O resultado é um filme que não busca sustos, mas reflexão.

Frankenstein é menos sobre monstros e mais sobre o que fazemos com o que criamos.

É sobre o medo de amar o que não compreendemos — e o risco de negar o que se parece demais conosco.

E talvez entender que o verdadeiro monstro pode nao ser quem nasce... mas sim quem abandona.

terça-feira, 11 de novembro de 2025

Dica Amazon Prime Video - Eden

 

Por Isa Barretto

Há algo de profundamente humano na tentativa de começar de novo — de apagar o passado e reescrever o futuro em outro lugar.

Em Éden, Ron Howard nos conduz às Ilhas Galápagos, onde um grupo de europeus decide fundar uma sociedade perfeita, longe da guerra e da corrupção do mundo moderno. Mas a natureza, impassível, apenas observa enquanto o velho roteiro da humanidade se repete: a criação, o conflito e a queda.

Com Jude Law, Ana de Armas, Vanessa Kirby, Sydney Sweeney e Daniel Brühl, o filme mergulha na tensão entre o ideal e o instinto. O paraíso logo revela sua face mais cruel — a de um sonho que apodrece quando o ego toma o lugar de Deus. Howard filma com precisão e paciência, permitindo que o calor, o silêncio e o mar se tornem personagens de um drama que é tanto físico quanto espiritual.

O receio aqui não vem da selva, mas do humano. Cada personagem carrega o próprio Éden dentro de si: um desejo, uma culpa, uma fuga. Quando esses mundos colidem, o isolamento se torna espelho e a utopia, penitência. O filme nos lembra que o inferno não é o lugar para onde somos lançados, mas aquele que construímos quando acreditamos poder controlar o paraíso.

Éden revela que toda utopia nasce condenada — não pela natureza, mas pelo homem.

Porque o verdadeiro fracasso não está em sonhar com o paraíso, mas em acreditar que podemos habitá-lo sem antes encarar o que há de mais imperfeito em nós.

Howard nos mostra que não é o isolamento que destrói — é o espelho que ele cria. E diante dele, o homem descobre que o paraíso nunca foi perdido: foi apenas corrompido por dentro.


quinta-feira, 6 de novembro de 2025

A Longa Marcha: Caminhe ou Morra (2025)


Por Isa Barretto

Em um país afogado na desesperança, cinquenta adolescentes são reunidos para um evento que mistura espetáculo, obediência e morte: caminhar sem parar, sob um ritmo imposto, até que reste apenas um sobrevivente.

Dirigido por Francis Lawrence e baseado no romance “A Longa Marcha”, de Stephen King (publicado sob o pseudônimo Richard Bachman), o filme apresenta Cooper Hoffman como Ray Garraty e David Jonsson como Peter McVries — dois jovens obrigados a transformar a esperança em resistência.

A metáfora é implacável: todos estamos numa estrada cujo fim conhecemos, mas fingimos ignorar. A juventude nos dá a ilusão da eternidade — até que a realidade impõe seu ritmo. No filme, a escolha de participar parece voluntária, mas logo se revela uma armadilha social, um pacto silencioso com o controle e o desespero. O terror não está nas sombras, mas no passo seguinte. Está em ver o outro cair e ainda assim continuar. O horror aqui é humano, cotidiano, palpável: o som ritmado de pés cansados e o silêncio que cresce onde antes havia voz.

Paradoxalmente, é nesse chão duro da marcha que florescem as amizades mais puras. Quando tudo conspira para o individualismo, o que resiste é o olhar cúmplice de quem caminha ao lado. O gesto de dividir a água, o fôlego compartilhado, o toque que impede a queda — pequenos atos que viram resistência. A amizade, neste contexto, não é prêmio: é a própria sobrevivência.

Lawrence conduz a narrativa com precisão cirúrgica, equilibrando frieza e compaixão. Ele sabe que não é preciso monstros para o medo nascer; basta mostrar o humano diante do limite. Hoffman entrega uma atuação marcante — o corpo que cede, mas o olhar que insiste. Já Jonsson interpreta o despertar amargo de quem entende cedo demais que vencer pode significar perder o que mais importa.

Mais do que uma distopia, A Longa Marcha é uma parábola sobre a vida moderna: a pressão de “vencer”, o espetáculo da dor como entretenimento, o luto silencioso que carregamos sem nomear. Ray caminha por um pai ausente; Peter, por um ideal que desmorona. Ambos representam uma geração exausta, empurrada a continuar mesmo sem saber por quê.

No fim, é sobre como a vida pode ser dura. Às vezes, cruel. E às vezes, ser apenas indiferente.

O terror não está no destino, mas no caminho — na persistência, na solidão, na coragem de dar mais um passo. Porque ali o troféu é ilusório; o que fica mesmo é o rastro deixado pelos que tombaram e a dignidade silenciosa de quem ainda avança.

sexta-feira, 31 de outubro de 2025

Hereditário


Por Isa Barreto

Poucos filmes recentes conseguiram provocar tanto desconforto quanto Hereditário. Dirigido por Ari Aster em sua estreia no cinema, o longa transforma o luto em um ritual de horror, onde o medo não vem de fantasmas, mas da herança invisível que carregamos — nossos traumas, nossas culpas, nossas linhagens de dor.

A história acompanha Annie (Toni Collette), uma artista que constrói miniaturas de sua própria vida, como se tentar controlar o caos pudesse torná-lo suportável. Ao lado do marido Steve (Gabriel Byrne) e dos filhos Peter (Alex Wolff) e Charlie (Milly Shapiro), ela tenta lidar com a morte da mãe — uma mulher enigmática, que deixou mais do que lembranças. O que começa como drama familiar logo se transforma em algo muito mais sombrio: uma herança literal e espiritual que consome cada um dos personagens.

A câmera de Aster observa, mais do que acompanha. Mantém distância nos momentos em que o espectador quer se aproximar, e se aproxima quando o desconforto é insuportável. Os planos fixos e longos — muitas vezes dentro da própria casa — criam uma sensação de aprisionamento, como se estivéssemos dentro das miniaturas de Annie, incapazes de escapar. A fotografia é fria, quase clínica, e a iluminação parece vir de dentro do próprio pesadelo.

Há um terror que se constrói no silêncio: o barulho seco de uma língua estalando, a respiração contida, o vazio entre uma fala e outra. O filme entende que o verdadeiro horror não está no susto, mas na espera. Cada gesto da câmera é uma provocação — ela convida o espectador a olhar de novo, a questionar o que é real e o que é apenas reflexo de um trauma coletivo.

Toni Collette entrega uma atuação devastadora, que vai da contenção ao desespero absoluto. Seu corpo é o campo de batalha do luto — tenso, torto, em colapso. Alex Wolff, como Peter, traduz a culpa e a herança familiar de forma visceral, fazendo do silêncio uma forma de grito. Milly Shapiro, com seu olhar inquietante, encarna o estranhamento da infância, e Gabriel Byrne é o retrato da impotência diante do caos.

Hereditário é sobre o medo que herdamos sem perceber. Sobre como o amor pode se deformar quando misturado à perda. Sobre famílias que se desintegram tentando se manter inteiras. O filme não busca apenas assustar — ele deseja permanecer. E permanece.

O calafrio que fica não é o do sobrenatural, mas o da constatação de que às vezes o mal não vem de fora: ele é passado de geração em geração, como um segredo guardado em silêncio.

Vencedor absoluto da Lista “Especial Noites de Medo” — porque depois de Hereditário, o verdadeiro terror é olhar para dentro.

quinta-feira, 30 de outubro de 2025

Especial Halloween

NOSSA LISTA DE HALLOWEEN – Especial Noites de Medo

Por Isa Barretto e Rafael Morais

O cinema de terror é uma viagem pela nossa própria imaginação — aquilo que tememos, negamos ou fingimos não ver. Ele fala de sombras e de silêncios, mas também do que há de mais humano: o medo do desconhecido.

Nesta lista, reuni histórias que desafiam a razão e exploram diferentes formas de horror — psicológico, sobrenatural, simbólico e visceral. São filmes que marcaram época e redefiniram o gênero, cada um à sua maneira.

Prepare a pipoca (e o coração). As luzes vão se apagar.

1) Psicose (1960)
De Alfred Hitchcock, Psicose é o marco do suspense moderno. O diretor transforma o cotidiano em ameaça e cria uma das cenas mais icônicas do cinema — o chuveiro nunca mais seria o mesmo. A tensão cresce em torno de Norman Bates e seu motel isolado, onde o terror nasce não de monstros, mas da mente humana.


2) O Exorcista (1973)
William Friedkin fez história ao adaptar o livro de William Peter Blatty. O Exorcista é um retrato do mal em sua forma mais pura, envolvendo fé, desespero e sacrifício. As atuações intensas e os efeitos práticos realistas tornaram o filme uma experiência quase física — e até hoje ele provoca o mesmo arrepio.


3) A Profecia (1976)
Em épocas de exorcismos e bebês de Rosemary, 'A Profecia' chega com uma proposta já concedida: o anticristo nasceu e está entre nós. Marcado como o filme mais agourento de todos tempos, 'The Omen' vai além e se sobressai superando a superstição e as tragédias dos bastidores. Uma obra indispensável para os fãs do horror.


4) Halloween (1978)
John Carpenter cria o arquétipo do assassino mascarado com Halloween. Michael Myers é o rosto do mal que retorna sem motivo, apenas para matar. A trilha minimalista e a câmera subjetiva dão ritmo ao terror, provando que o medo pode estar logo atrás da porta.


5) Alien, o 8º Passageiro (1979)
Ridley Scott funde ficção científica e terror claustrofóbico num filme revolucionário. A tripulação da nave Nostromo é caçada por uma criatura perfeita, nascida do pesadelo e da biologia. Alien é o medo do desconhecido em estado puro — e a força feminina de Ripley tornou-se um ícone de resistência.


6) O Silêncio dos Inocentes (1991)
Jonathan Demme constrói um suspense psicológico brilhante, conduzido por diálogos afiados e pela presença hipnótica de Anthony Hopkins como Hannibal Lecter. Mais que um thriller, o filme explora o poder e o medo, a fragilidade e a inteligência em um jogo de caça e caçador.


7) A Bruxa de Blair (1999)
Com aparência de documentário, A Bruxa de Blair reinventou o gênero de terror com baixo orçamento e alta tensão. O que não é mostrado é o que mais assusta. A câmera tremida e a ausência de respostas criam uma sensação de realidade inquietante, que marcou toda uma geração.


8) Os Outros (2001)
Alejandro Amenábar transforma o suspense gótico em uma história de luto e revelações. Nicole Kidman entrega uma atuação delicada e intensa como uma mãe presa entre a fé e o medo. Os Outros é uma lição sobre atmosfera — o susto está menos no que se vê e mais no que se imagina.


9) Hereditário (2018)
Ari Aster traz o terror familiar ao extremo. Hereditário é um mergulho na dor, no luto e na herança do mal. O desconforto cresce cena a cena, até explodir em puro desespero. Toni Collette entrega uma das atuações mais intensas do gênero, transformando o trauma em horror.


10) Speak No Evil (2022)
Um filme que incomoda do inicio ao fim. Niilista, a obra nos coloca em posição indefesa diante da maldade e crueldade do próximo. Aqui, aprendemos da pior forma que ser permissivo demais pode ser muito arriscado. Perder a própria essência é apenas o começo do caos.

O medo também é uma forma de conhecer a nós mesmos.

Boo!
Feliz Halloween!

quinta-feira, 23 de outubro de 2025

Dica Netflix - Steve

 

Por Isa Barretto

Há filmes que se constroem como histórias, e há outros que se constroem como experiências. Steve pertence a essa segunda categoria. A câmera não apenas observa — ela respira dentro da escola, tropeça junto com os personagens e revela o retrato de um sistema em colapso. São poucas horas dentro daquele espaço, mas o tempo parece expandir-se, como se a rotina tivesse um peso próprio, sufocante e quase físico.

Baseado no livro Shy, de Max Porter, e dirigido por Tim Mielants, o filme acompanha um único dia na vida de Steve, interpretado com uma intensidade extremamente contida por Cillian Murphy. Diretor de uma escola para adolescentes marginalizados, ele tenta manter o controle de um ambiente que já não responde à autoridade. Entre reuniões, crises e silêncios prolongados, o que desaba diante da câmera não é apenas a instituição — é principalmente o homem que a sustenta.

A narrativa se desenvolve em tempo quase real, e é isso que dá ao filme sua força: o espectador sente o avanço das horas como se estivesse preso dentro daquela escola. A fotografia crua, os planos próximos e o som que mistura vozes e ruídos transformam o cotidiano em tensão pura. A direção não antecipa o caos com música ou truques visuais; ela o insinua. A câmera se aproxima, hesita, muda de foco — e essa inquietação faz o público pressentir o descontrole antes mesmo que ele aconteça.

Cillian Murphy carrega o filme com uma atuação que parece estar sempre ali: à beira do colapso. Cada olhar é uma tentativa de permanecer, cada gesto revela o desgaste de quem acredita demais. Há algo profundamente humano na forma como ele tenta manter a compostura enquanto o mundo à sua volta se fragmenta. Murphy não apenas atua — ele desaba em silêncio, e é nesse silêncio que o filme encontra sua alma.

A direção de Mielants evita qualquer embelezamento: corredores gastos, luz fria, conversas atravessadas, vozes que se sobrepõem. Tudo parece natural, mas nada é casual. Cada enquadramento é pensado para capturar o peso invisível da rotina, o limite da paciência, o ponto em que o humano se dissolve no dever.

O roteiro de Max Porter recusa a ilusão da redenção. Não há vilões nem heróis, apenas pessoas cansadas tentando sobreviver dentro de um sistema que exige demais e devolve pouco. A escola funciona como metáfora da própria vida adulta: um espaço onde todos fingem ter o controle, quando na verdade ninguém tem.

No fim, Steve não quer consolar — quer confrontar. Ele nos faz sentir o que é segurar o mundo com as mãos trêmulas e continuar mesmo quando não há mais força. É um filme que emociona sem melodrama, que provoca sem discurso. Ao encarar o esgotamento como matéria humana, ele pergunta — com honestidade e dor — quem cuida de quem cuida.

Steve é menos um drama e mais um espelho. Um retrato de todos aqueles que seguem, mesmo quando já não sabem mais o por quê.

quarta-feira, 22 de outubro de 2025

Invocação do Mal 4 - O Último Ritual

Por Isa Barretto

Encerrar uma franquia como Invocação do Mal é mais do que concluir uma história — é dar fim a um ciclo que ajudou a redefinir o terror contemporâneo.  

Dirigido por Michael Chaves, o quarto capítulo marca a despedida de Ed e Lorraine Warren, vividos com a habitual intensidade por Patrick Wilson e Vera Farmiga. Desta vez, o mal não habita apenas as casas de estranhos: ele invade o lar dos próprios investigadores, transformando o último caso em um confronto íntimo, onde fé e fragilidade se misturam.

O roteiro revisita os elementos que consagraram a franquia — o embate entre ciência e espiritualidade, o peso psicológico das investigações e o vínculo inabalável entre o casal. Mas há algo diferente aqui: o medo é mais humano, quase doméstico. Os Warren, que dedicaram a vida a salvar famílias assoladas por forças invisíveis, agora precisam lutar pela sua própria filha. O terror, que antes era missão, torna-se herança.

Michael Chaves demonstra segurança na condução. Ele troca o susto fácil pela tensão construída com precisão técnica — explorando o som, o enquadramento e o silêncio como recursos narrativos. A fotografia aposta em contrastes marcados: o claro-escuro traduz o limite entre o divino e o profano, enquanto a trilha sonora opera como uma extensão da angústia, sustentando a sensação de que algo maior se aproxima.

Ainda que previsível em estrutura, 'Invocação do Mal 4' é eficiente em propósito. O filme entende que o encerramento de uma saga não precisa surpreender, mas honrar o caminho percorrido. E faz isso com respeito — tanto à mitologia criada quanto ao público que acompanhou essa história por mais de uma década.

No fim, o que permanece não é o susto, mas o legado. O casal que passou a vida enfrentando o mal para proteger os outros agora luta para proteger o próprio sangue. E nessa inversão, o filme encontra sua força simbólica: a de mostrar que o amor — mesmo cercado de sombras — ainda é a arma mais poderosa contra o que não se pode compreender.