quinta-feira, 21 de novembro de 2024

Nos Cinemas - AINDA ESTOU AQUI

Por Rafael Morais

*esse texto pode conter spoilers

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Rio de Janeiro, 1970.

Em tempos de ditadura militar, uma calorosa família reside de aluguel em frente à praia enquanto prepara o terreno para construir um novo e próprio lar. Pai, mãe e cinco filhos menores vivem o idílico. Mas o sonho logo se transforma em pesadelo quando o ex-deputado federal Rubens Paiva (vivido por Selton Mello), o patriarca, é levado subitamente de sua casa por homens do governo.

A partir desse ponto, o filme, que é uma adaptação do livro homônimo escrito por Marcelo Rubens Paiva (um dos filhos do casal), ganha ares de suspense e drama, sobretudo.

Se no primeiro ato, somos apresentados ao afeto, ao carinho e ao sentimento ardoroso familiar através de uma fotografia quente, por vezes saturada, e que também se utiliza do tom sépia ao reproduzir memórias nostálgicas captadas pela câmera portátil de 8mm de Verônica (o rebento mais velho); no segundo, já temos um contraponto através do azul, do cárcere, da escuridão e do triste enclausuramento de prisioneiros que nem sabem o motivo de estarem sendo tolhidos de sua liberdade.

Assim, o mar, que antes era sinônimo de liberdade, de acolhimento - em que pese o vaivém das ondas significar também que "nada do que foi será do jeito que já foi um dia" (parafraseando Lulu Santos) - agora é trocado por revoltos baldes d'água que limpam celas desenganadas. O sol, antes esbanjando graciosidade e vida, agora dá lugar à frieza de vê-lo "nascer quadrado", como diz aquele jargão. Indiferença esta representada pelos objetos de cena, adornos e vestimentas. O ambiente de tortura dialoga com o inanimado e a rispidez. Ponto para a esplêndida direção de arte assinada por Carlos Conti, capaz de nos situar com precisão não só na época setentista, mas no contexto histórico-cultural.

De tal modo, a transição entre o "céu" do primeiro ato e o "inferno" do segundo é captada pela bela fotografia de Adrian Teijido. O cinza banha o meio do filme como se não houvesse mais esperança. A sombra se apropria da paleta. Mas é na força e na sensibilidade de Fernanda Torres, interpretando Eunice Paiva, uma mulher forte e que galga seu arco de protagonista ao longo da película, que vislumbramos uma "luz no fim do túnel". Observe como Eunice se coloca ao fotografar um grupo de amigos (sem querer aparecer) ou mesmo quando surge lá no cantinho da foto, após insistência de outra pessoa lhe conferindo importância, como se estivesse fadada à coadjuvância. Entretanto, a vida iria exigir todo o potencial de se reinventar daquela mãe, da mulher, muito mais do que ela imaginaria. O que fazer após ser devastada? Rasgar-se e remendar-se, já dizia o poeta Guimarães Rosa.  

E para que essa jornada de redescoberta do protagonismo funcionasse, a gigante (embora introspectiva) atuação de Fernanda Torres foi primordial. Atuando mais com o olhar, apesar de sempre estar prestes a explodir, a atriz encarna Eunice como a personagem de sua vida. O que é referendado pela cirúrgica participação de sua mãe, a grande Fernanda Montenegro, no desfecho. As lembranças confusas de uma idosa (dona de um olhar perdido) acometida por uma doença degenerativa que corrompe justamente as suas reminiscências aborda o looping-tema desse filme.

Observe como a luz quente volta a aparecer sobre a cabeça do neto de Eunice durante uma reunião. É como se ela lembrasse de Rubens, mesmo que vagamente. À mesa, a linhagem descendente conversa, se diverte e conta histórias; ao passo que a velhinha fica escanteada na pontinha, tal qual a maioria dos nossos avós/bisavós repousam em festinhas de família. Não só isso: quando todos mudam de cômodo, lá fica ela de novo esquecida na sala, até que alguém se lembre de trazê-la de volta pra perto. Até porque é um filme sobre resgate.

Afiado, o roteiro de Murilo HauserHeitor Lorega também confere importância ao fator tempo. É preciso vinte e cinco anos para sair uma certidão de óbito de presumido morto, instante em que o sorriso da certeza, pelo menos de um documento, toma o lugar da tristeza da incerteza. Na verdade, é pesado perceber que quando o cachorrinho da família morre atropelado em frente à casa, somente assim eles puderam viver as fases do luto, verdadeiramente. Mas com o pai/marido não tiveram essa oportunidade. Para seguir em frente é preciso “enterrar”, enlutar e seguir. Etapas foram puladas.

Não menos magistral, a direção de Walter Salles (despida de panfletarismo) joga luz às memórias, sejam elas através de gravações audiovisuais, fotografias - datadas no verso, talvez - ou qualquer outro meio. Sejam elas, inclusive, agradáveis ou obscuras, até porque se entrelaçam com a infância e juventude de pessoas que perderam, precocemente, o convívio com um parente próximo. O filme, então, resgata as sensações, as cores, as músicas e aquilo que foi dito ou deixado de dizer. Memória é história. E Salles, capturando a essência do livro e das recordações de Marcelo, alerta para que nada parecido com aqueles tempos espúrios possa acontecer de novo.

Afinal, um sistema ditatorial arranca toda e qualquer dignidade, direito e/ou garantia fundamental que um cidadão possa ter. Esqueçam o acesso à ampla defesa e o contraditório, é puro devaneio aqui. A violência arbitrária prevalece em um terreno sem Justiça. Nesse ponto, a obra envelheceu bem se revelando bastante atual ao nos depararmos com noticiários, de uns tempos pra cá, sobre a existência de planos escabrosos capazes de "pôr em xeque" o estado democrático de direito como conhecemos.

Por fim, minha recomendação é que você vá ao cinema e sorria. Sim, a atitude de ir ao cinema hoje em dia - ainda mais prestigiando uma obra nacional - e de sorrir, são atos de resistência, resiliência e oposição. Mesmo que contrarie a lógica e a expectativa: sorria, ainda estamos aqui! 

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