quinta-feira, 25 de janeiro de 2024

Nos Cinemas - VIDAS PASSADAS

                                        

Por Rafael Morais

"Passado é algo que se pode ver, mas não se pode tocar."
( Filme: Amor à Flor da Pele; Dir.: Wong Kar-Wai)

Escrito e dirigido por Celine Song, 'Vidas Passadas' conta a história de Nora (Greta Lee) e Hae Sung (Teo Yoo), dois amigos de infância com uma conexão profunda, mas que acabam se separando quando a família de Nora decide sair da Coréia do Sul e se mudar para a cidade de Toronto. Vinte anos depois, os dois amigos se reencontram em Nova York e vivenciam uma semana fatídica enquanto confrontam as noções de destino, amor e as escolhas que compõem uma vida.

O filme de estreia de Song traz claras referências ao estilo Woody Allen na escolha das locações, no caminhar pelas ruas de New York dando ênfase à arquitetura da megalópole em contraponto aos dilemas de seus protagonistas. A melancolia salta aos olhos. Mas é em Richard Linklater - na trilogia 'Antes do Amanhecer'- que enxergo as maiores semelhanças: um casal "lava suas roupas sujas" andando lado a lado pelas ruas de uma grande cidade enquanto discutem o que poderia ter acontecido SE...é o 'What if' da vida real, na veia, sem dó nem pena.

A obra propõe discutir a respeito de pertencimento, relutância, redescoberta e, principalmente, sobre escolhas e consequências. O carrossel cíclico da vida uma hora vai cobrar o preço da viagem.

Mas é na quebra da quarta parede, logo no início do filme, indicando a metalinguagem proposta sobre o jogo do julgamento, que a história já ganhou minha atenção. Nora e o seu esposo são roteiristas e escritores, o que explica essa narrativa tão inteligente se entrelaçando com o enredo proposto. Afinal, aquele trio no bar, lá no comecinho, seria um triângulo amoroso ou o quê?! Dentre as inúmeras possibilidades de relacionamentos, o olhar charmoso, lançado por Na Young (agora Nora), é também questionador e nos coloca contra a parede - enquanto voyeurs, curiosos e julgadores, ao mesmo tempo - como se nos confrontasse dizendo/fitando: "eu sei que você também já fez escolhas pelas quais não está completamente certo. Então, tá olhando o quê?!"

Na verdade, a mulher contemporânea é manipuladora da situação. Não no sentido pejorativo. Como protagonista das relações, é ela quem vai tomar as rédeas e escolher qual caminho seguir. Claro que cada escolha terá uma consequência, e Nora terá que pagar o preço das suas. Há uma linha tênue entre ser escrota/negligente com o possível amor da sua vida e tomar o rumo da carreira de sucesso, do tão sonhado Nobel. Como se ambas as opções jamais pudessem fazer parte do mesmo mundo. Não se pode ter tudo?!

Todavia, a maneira como o roteiro colocou o misticismo por trás do conceito do 'In-Yun', da cultura coreana, não me convenceu muito. É meio jogado lá para tentar explicar uma ligação irremediável entre pessoas. A tal "tampa da panela", conexão inexorável de vidas, na verdade, me pareceu cafona e mal desenvolvida, mas isso não me tirou totalmente do caminho, da proposta que considerei como a principal: os percalços e reviravoltas que a vida dá e como, definitivamente, não somos o "capitão do nosso próprio barco".

‘Past Lives’ é mais um grande acerto do estúdio A24, que vem se notabilizando pela qualidade de suas produções, pensando sempre “fora da caixa”. Aqui, a subversão do gênero traz um romance moderno. A produtora vem se destacando por tratar temas complexos em filmes dirigidos por excelentes cineastas, sejam eles principiantes ou não. A sutileza é marca registrada, ressaltada pela excelente fotografia. Destinos, sucesso profissional x amoroso e solidão urbana são assuntos recheados por simbolismos, alegorias e metáforas. Perceba, em alguns takes, por exemplo, a opressão dos arranha-céus espremendo o “intruso” He Sung. Essa semiótica, o A24 faz como poucos.    

Não menos primorosa, apesar de sutil, a direção de arte "deixa escapar", não por acaso, que um dos livros de cabeceira de Nora é 'Macbeth', de William Shakespeare. A obra é um dos ensaios mais tenebrosos dos dramas shakespearianos. A peça é uma ótima oportunidade para refletir sobre aspectos sombrios e atemporais do comportamento humano, como ganância, traição e culpa. E Lady Macbeth tem um papel fundamental nesta jornada. Liguem os pontos...

He Sung quer que Nora volte a ser Na Young. Mas ela está disposta a isso?!

Como diria o grande filósofo contemporâneo Jr. Neymar (rsrsrs): “Saudades do que a gente não viveu!”

 Avaliação: 4,0 Pipocas + 5,0 Rapaduras = 9,0.


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