Por Rafael Morais
O Frankenstein, segundo Yorghos Lanthimos. Filme
propõe uma fábula sobre a desconstrução de padrões sociais em prol de uma
liberdade utópica.
A jovem Bella Baxter (Emma Stone, fabulosa como sempre) é
trazida de volta à vida pelo cientista Dr. Godwin Baxter (o espetacular William
Dafoe). Querendo ver mais do mundo, ela foge com um advogado e viaja pelos
continentes. Livre dos preconceitos de sua época, Bella exige igualdade e
libertação. ‘Pobres Criaturas’ é a história de uma mulher que luta contra a
opressão e está pronta para questionar tudo e todos. Que nasce desamarrada das convenções,
sem filtro total.
Polêmico, subversivo, controverso, e um tanto perturbador, o
longa adapta o livro homônimo de Alasdair Gray. Destaque para a parte técnica
do filme: a direção de arte é caprichada e realça os volumes, as nuances e as
texturas de cada cena. Surrealismo e expressionismo se confundem, dando vazão a
diversos cenários e locações que parecem inspiradas em quadros ambulantes.
Telas pintadas à mão aparentam saltar do escopo. Simplesmente lindo e imersivo.
Claro que a impulsiva fotografia de Robbie Ryan
é tão deslumbrante que só reforça toda a ideia de quadros artísticos em
movimento. A sensação é de estarmos dentro do sonho, e por vezes pesadelo, dos
personagens. Os enquadramentos hipnóticos brincam com o conceito de tamanhos,
formas e cores. Caricatural, os estereótipos são bem capturados pelas lentes de
Ryan.
A já famigerada câmera com lente de "olho de
peixe", em 180º, emula uma redoma, um confinamento que a protagonista está
passando. Perceba que em ambientes fechados esse tipo de técnica mostra a sua
função narrativa. E o diretor de fotografia também se utilizou desse formato
para captar as intrigas palacianas em ‘A Favorita’.
Não menos fantástico, o figurino também auxilia nessa imersão
a um conto de fadas nada convencional. Tudo isso associado à trilha sonora de Jerskin Fendrix,
que usa sons destoantes,
desafinados e fora de ritmo para enfatizar a condição errática da protagonista,
sobretudo na primeira metade do filme. Os acordes de violinos distorcidos e
tambores desconexos não só causam desconforto ao público (de maneira proposital),
como auxiliam à narrativa. E sim, lá pelas tantas - progredindo em sincronia com
o arco de Bella - a música se ajusta harmonicamente e já passa a soar rítmica.
Assim, ‘Poor Things’ tem embalagem de drama, cheiro de suspense,
mas, na essência, trata-se de uma comédia bizarra que se sobressai através dos
risos involuntários provocados mais pelo constrangimento das cenas do que
propriamente pelos diálogos afiados. E aqui não quero desmerecer o ótimo trabalho
de Mark Ruffalo na pele de um impagável cafajeste. Pelo contrário. Bobo e
canastrão, na medida, Duncan Wedderburn me fez dar boas e genuínas risadas em
algumas sequências.
Mas, felizmente, o roteiro de Tony McNamara
é sagaz o bastante para se desvencilhar da estranheza (não seria esta a
trincheira final de Lanthimos) e aproximar o espectador. Perceba que a
expressão “polido” é utilizada de maneira recorrente no script para dar
uma ideia de termômetro social daquilo que você deseja falar, mas acaba
pensando mil vezes antes e desiste. Coisa que a protagonista já não tem desde a
sua “ressureição”. Isso torna Bella cada vez mais humana e próxima da plateia.
Outra sacada inteligente é a forma como a protagonista chama o
seu criador: Dr. Godwin, para ela, é simplesmente God. Não à toa, o diminutivo
representa a grandiosidade de um “deus” na vida/sobrevida de Bella. O
interessante é que esta alcunha surgiu naturalmente no cotidiano da menina,
durante sua criação. É o “painho” dela em forma de divindade.
No entanto, de acordo com o autor do livro, este é um filme
que demorou a sair do papel, a ser adaptado, até que algum cineasta tivesse a
coragem e o talento necessário. Vários já haviam ficado pelo caminho e desistido
no meio do processo. O próprio autor afirmou que a obra seria polêmica demais.
Nisso, entra a figura do grego Yorghos Lanthimos com o know-how suficiente para transformar o creepy perturbador em
crítica social.
O filme recebeu ‘classificação indicativa 18+’ totalmente
justificável. O final do segundo ato há uma ode ao hedonismo que depois “evolui”
para discursos políticos diretos e enfáticos sem saber para onde “atirar”. É uma
obra pronta para amealhar indicações em festivais e premiações (como de fato aconteceu),
muito mais pela técnica impecável e pelas metáforas visuais do que pelo
discurso.
3,5 Pipocas + 5,0 Rapaduras = 8,5.