quarta-feira, 24 de janeiro de 2024

Nos Cinemas - POBRES CRIATURAS

                                         

Por Rafael Morais

O Frankenstein, segundo Yorghos Lanthimos. Filme propõe uma fábula sobre a desconstrução de padrões sociais em prol de uma liberdade utópica.

A jovem Bella Baxter (Emma Stone, fabulosa como sempre) é trazida de volta à vida pelo cientista Dr. Godwin Baxter (o espetacular William Dafoe). Querendo ver mais do mundo, ela foge com um advogado e viaja pelos continentes. Livre dos preconceitos de sua época, Bella exige igualdade e libertação. ‘Pobres Criaturas’ é a história de uma mulher que luta contra a opressão e está pronta para questionar tudo e todos. Que nasce desamarrada das convenções, sem filtro total.

Polêmico, subversivo, controverso, e um tanto perturbador, o longa adapta o livro homônimo de Alasdair Gray. Destaque para a parte técnica do filme: a direção de arte é caprichada e realça os volumes, as nuances e as texturas de cada cena. Surrealismo e expressionismo se confundem, dando vazão a diversos cenários e locações que parecem inspiradas em quadros ambulantes. Telas pintadas à mão aparentam saltar do escopo. Simplesmente lindo e imersivo.

Claro que a impulsiva fotografia de Robbie Ryan é tão deslumbrante que só reforça toda a ideia de quadros artísticos em movimento. A sensação é de estarmos dentro do sonho, e por vezes pesadelo, dos personagens. Os enquadramentos hipnóticos brincam com o conceito de tamanhos, formas e cores. Caricatural, os estereótipos são bem capturados pelas lentes de Ryan.

A já famigerada câmera com lente de "olho de peixe", em 180º, emula uma redoma, um confinamento que a protagonista está passando. Perceba que em ambientes fechados esse tipo de técnica mostra a sua função narrativa. E o diretor de fotografia também se utilizou desse formato para captar as intrigas palacianas em ‘A Favorita’.

Não menos fantástico, o figurino também auxilia nessa imersão a um conto de fadas nada convencional. Tudo isso associado à trilha sonora de Jerskin Fendrix, que usa sons destoantes, desafinados e fora de ritmo para enfatizar a condição errática da protagonista, sobretudo na primeira metade do filme. Os acordes de violinos distorcidos e tambores desconexos não só causam desconforto ao público (de maneira proposital), como auxiliam à narrativa. E sim, lá pelas tantas - progredindo em sincronia com o arco de Bella - a música se ajusta harmonicamente e já passa a soar rítmica.

Assim, ‘Poor Things’ tem embalagem de drama, cheiro de suspense, mas, na essência, trata-se de uma comédia bizarra que se sobressai através dos risos involuntários provocados mais pelo constrangimento das cenas do que propriamente pelos diálogos afiados. E aqui não quero desmerecer o ótimo trabalho de Mark Ruffalo na pele de um impagável cafajeste. Pelo contrário. Bobo e canastrão, na medida, Duncan Wedderburn me fez dar boas e genuínas risadas em algumas sequências.

Mas, felizmente, o roteiro de Tony McNamara é sagaz o bastante para se desvencilhar da estranheza (não seria esta a trincheira final de Lanthimos) e aproximar o espectador. Perceba que a expressão “polido” é utilizada de maneira recorrente no script para dar uma ideia de termômetro social daquilo que você deseja falar, mas acaba pensando mil vezes antes e desiste. Coisa que a protagonista já não tem desde a sua “ressureição”. Isso torna Bella cada vez mais humana e próxima da plateia.

Outra sacada inteligente é a forma como a protagonista chama o seu criador: Dr. Godwin, para ela, é simplesmente God. Não à toa, o diminutivo representa a grandiosidade de um “deus” na vida/sobrevida de Bella. O interessante é que esta alcunha surgiu naturalmente no cotidiano da menina, durante sua criação. É o “painho” dela em forma de divindade.

No entanto, de acordo com o autor do livro, este é um filme que demorou a sair do papel, a ser adaptado, até que algum cineasta tivesse a coragem e o talento necessário. Vários já haviam ficado pelo caminho e desistido no meio do processo. O próprio autor afirmou que a obra seria polêmica demais. Nisso, entra a figura do grego Yorghos Lanthimos com o know-how suficiente para transformar o creepy perturbador em crítica social.

O filme recebeu ‘classificação indicativa 18+’ totalmente justificável. O final do segundo ato há uma ode ao hedonismo que depois “evolui” para discursos políticos diretos e enfáticos sem saber para onde “atirar”. É uma obra pronta para amealhar indicações em festivais e premiações (como de fato aconteceu), muito mais pela técnica impecável e pelas metáforas visuais do que pelo discurso. 

3,5 Pipocas + 5,0 Rapaduras = 8,5. 

                 

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