Obra-prima de Billy Wilder escancara, destemidamente,
o backstage de Hollywood em plenos anos dourados.
Por Rafael Morais
Em
plenos anos 1950, o diretor e roteirista Billy Wilder entregou um
filme extremamente crítico ao próprio método hollywoodiano de se fazer Cinema. Estamos
diante de um drama com um contexto histórico cruel, mas fascinante. Wilder conseguiu
captar a transformação da indústria cinematográfica ao narrar a decadência de
uma estrela dos filmes mudos ao tempo em que denuncia a falta de oportunidades
para muitos atores antigos do ramo.
A
transição do Cinema mudo para o falado acarretou no esquecimento de vários
astros e estrelas que foram substituídos, abruptamente, sem dó nem piedade. O olhar expressivo, as mímicas e o
estudo do corpo como forma de expressão não eram mais suficientes. Os diálogos,
as explicações das cenas e, por que não dizer, a "verborragia" passou
a ser elemento narrativo tão importante quanto o trabalho corporal.
Em 2011, “O Artista”, abordou o tema com bastante clareza, ganhando o Oscar de melhor filme naquela ocasião. Sabemos, todavia, que
a Academia tem suas escolhas politicamente corretas, como forma de se desculpar
por erros cometidos em seu passado recente, onde alguns atores estavam
condenados a cair no ostracismo. Era apenas uma questão de tempo.
Inserido nesse contexto, Sunset Boulevard, nome da rua
onde fica a mansão da estrela - e que dá nome ao filme - guarda uma
tradução que se encaixa perfeitamente com a temática: a avenida do pôr do sol,
crepúsculo, a saída de cena do sol. Nada mais apropriado.
E é nesse endereço que Norma Desmond (a
magnífica, Gloria Swanson), ex-diva dos filmes mudos, vive solitária
com seu fiel empregado Max von Mayerling (Erich von Stroheim). Sua
vida dá uma guinada quando o fracassado roteirista – e também narrador da
história – Joe Gillis (William Holden) chega à sua casa fugindo
de cobradores, utilizando a mansão como cativeiro perfeito para que ninguém o
encontre. Quando Norma descobre a profissão de Gillis, e sua
aptidão para escrever argumentos, resolve lhe mostrar o rascunho de uma
história e pede que o rapaz a melhore para que Cecil B. DeMille a
dirija no papel principal.
E é por esses bastidores da antiga Hollywood que a história
vai se desenvolvendo, mostrando todos os podres da indústria, dividindo as
opiniões e as críticas. À época, enquanto alguns aplaudiam por um longo tempo o
filme ao término das projeções, outros quase batiam (literalmente) em Wilder,
considerando-o um traidor.
Utilizando de pura metalinguagem para contar a
história, o genial cineasta faz sua arte falando sobre ela. A
verdade é que de ponta a ponta o filme é formado por frases emblemáticas. Entre tantos diálogos impactantes, destaco
aquele em que DeMille adverte Norma: "Os tempos são
outros. Tudo está diferente e mais complicado." Em outras palavras:
você não tem mais voz nem vez. Memoráveis aspas que causam empatia direta do
espectador com o conflito da protagonista: “Eu sou grande. Os filmes
é que ficaram pequenos.”; “Estou pronta para o meu close, Mr. DeMille.”, diz
Norma se relutando a aceitar o esquecimento.
As situações criadas são de uma magistralidade à parte. O
modo como a edição conecta os atos, até mesmo através da narração que vai
costurando tudo, faz com que nunca fiquemos cansados ou desinteressados pelo
que está sendo mostrado.
Um exemplo disso é quando Gillis, nosso odioso coprotagonista,
decide se livrar de toda a “escravidão” que estava vivendo, já que passara a
morar na casa da atriz, eclodindo um relacionamento obsessivo entre os dois. Ao
tentar sair da residência, o sujeito acaba, ironicamente, ficando preso pela
corrente de sua roupa à maçaneta da porta de entrada, numa clara rima visual que
ele estaria preso àquele lugar.
Não menos inesquecível é a sequência em que Norma
Desmond visita o set de filmagens de DeMille, nos estúdios
da Paramount, e ali, por poucos instantes, ela se sente imersa naquele
mundo que outrora já foi seu. A emoção é completa quando os atores,
contrarregras e produtores reconhecem a ex-estrela sentada na cadeira do
diretor e correm para contemplá-la. Nesse instante, os holofotes voltam-se para
a dama do Cinema mudo por alguns segundos, e, subitamente, repito, sem dó nem
piedade, o implacável diretor manda o iluminador retirar a luz de cima da
atriz, como forma de dizer que o tempo dela já passou.
Nesta toada, vale ressaltar a atmosfera de suspense (quase um
horror psicológico) que envolve algumas cenas, retratando a sensação inebriante
da fama e sua consequente abstinência. Quando, por exemplo, nos damos
conta que Norma já está em notório estado de demência - ou seria esquizofrenia?!
- e sua obsessão pela fama/glamour a levam por diversos e tortuosos tratamentos
estéticos, na ânsia, desmedida e em vão, pelo papel principal em um novo filme.
Mera ilusão!
Assim, a importância de “Crepúsculo dos Deuses” se reflete no
Cinema moderno em forma de referência. É fácil traçar um paralelo entre Nina (Natalie
Portman) de “Cisne Negro” (2010) e Norma. Aronofsky bebeu da fonte e
tá tudo certo. As semelhanças entre as duas protagonistas podem ser
percebidas pela busca de notoriedade, fama e sucesso; além de enfrentarem uma
concorrência desleal entre seus pares, afinal todos querem um lugar ao sol antes
que ele se ponha.
Na composição de cenário e ambientação, o clima sombrio das
residências da bailarina e da atriz também se assemelham. Mérito para a
formidável direção de arte. Mas é na obsessão compulsiva de ambas, ainda que
diametralmente opostas, que reside o maior diálogo entre esses dois filmes,
quando comparados. De um lado está uma artista que pretende, a todo custo, se
manter nos holofotes e provar algo a si mesma (Nina); e de outro, há uma
atriz esquecida pelo grande público, esmagada pelo "trem"
descarrilado da juventude, do desenvolvimento tecnológico e das suas inovadoras
formas de comunicação/mídia (Norma).
Ao final, o mais assustador é observar que mais de meio
século se passou desde a produção do longa e, guardadas as proporções, nada
mudou drasticamente. “Crepúsculo dos Deuses” é um clássico além do
seu tempo que serve de inspiração até hoje. Uma irônica homenagem à indústria
do entretenimento. Imperdível!
*Avaliação: 5,0 Pipocas + 5,0 Rapaduras = 10,0.
** A produção concorreu a 11 estatuetas no Oscar de 1951, ganhando 3 no total.