sexta-feira, 31 de outubro de 2025

Hereditário


Por Isa Barreto

Poucos filmes recentes conseguiram provocar tanto desconforto quanto Hereditário. Dirigido por Ari Aster em sua estreia no cinema, o longa transforma o luto em um ritual de horror, onde o medo não vem de fantasmas, mas da herança invisível que carregamos — nossos traumas, nossas culpas, nossas linhagens de dor.

A história acompanha Annie (Toni Collette), uma artista que constrói miniaturas de sua própria vida, como se tentar controlar o caos pudesse torná-lo suportável. Ao lado do marido Steve (Gabriel Byrne) e dos filhos Peter (Alex Wolff) e Charlie (Milly Shapiro), ela tenta lidar com a morte da mãe — uma mulher enigmática, que deixou mais do que lembranças. O que começa como drama familiar logo se transforma em algo muito mais sombrio: uma herança literal e espiritual que consome cada um dos personagens.

A câmera de Aster observa, mais do que acompanha. Mantém distância nos momentos em que o espectador quer se aproximar, e se aproxima quando o desconforto é insuportável. Os planos fixos e longos — muitas vezes dentro da própria casa — criam uma sensação de aprisionamento, como se estivéssemos dentro das miniaturas de Annie, incapazes de escapar. A fotografia é fria, quase clínica, e a iluminação parece vir de dentro do próprio pesadelo.

Há um terror que se constrói no silêncio: o barulho seco de uma língua estalando, a respiração contida, o vazio entre uma fala e outra. O filme entende que o verdadeiro horror não está no susto, mas na espera. Cada gesto da câmera é uma provocação — ela convida o espectador a olhar de novo, a questionar o que é real e o que é apenas reflexo de um trauma coletivo.

Toni Collette entrega uma atuação devastadora, que vai da contenção ao desespero absoluto. Seu corpo é o campo de batalha do luto — tenso, torto, em colapso. Alex Wolff, como Peter, traduz a culpa e a herança familiar de forma visceral, fazendo do silêncio uma forma de grito. Milly Shapiro, com seu olhar inquietante, encarna o estranhamento da infância, e Gabriel Byrne é o retrato da impotência diante do caos.

Hereditário é sobre o medo que herdamos sem perceber. Sobre como o amor pode se deformar quando misturado à perda. Sobre famílias que se desintegram tentando se manter inteiras. O filme não busca apenas assustar — ele deseja permanecer. E permanece.

O calafrio que fica não é o do sobrenatural, mas o da constatação de que às vezes o mal não vem de fora: ele é passado de geração em geração, como um segredo guardado em silêncio.

Vencedor absoluto da Lista “Especial Noites de Medo” — porque depois de Hereditário, o verdadeiro terror é olhar para dentro.

quinta-feira, 30 de outubro de 2025

Especial Halloween

NOSSA LISTA DE HALLOWEEN – Especial Noites de Medo

Por Isa Barretto e Rafael Morais

O cinema de terror é uma viagem pela nossa própria imaginação — aquilo que tememos, negamos ou fingimos não ver. Ele fala de sombras e de silêncios, mas também do que há de mais humano: o medo do desconhecido.

Nesta lista, reuni histórias que desafiam a razão e exploram diferentes formas de horror — psicológico, sobrenatural, simbólico e visceral. São filmes que marcaram época e redefiniram o gênero, cada um à sua maneira.

Prepare a pipoca (e o coração). As luzes vão se apagar.

1) Psicose (1960)
De Alfred Hitchcock, Psicose é o marco do suspense moderno. O diretor transforma o cotidiano em ameaça e cria uma das cenas mais icônicas do cinema — o chuveiro nunca mais seria o mesmo. A tensão cresce em torno de Norman Bates e seu motel isolado, onde o terror nasce não de monstros, mas da mente humana.


2) O Exorcista (1973)
William Friedkin fez história ao adaptar o livro de William Peter Blatty. O Exorcista é um retrato do mal em sua forma mais pura, envolvendo fé, desespero e sacrifício. As atuações intensas e os efeitos práticos realistas tornaram o filme uma experiência quase física — e até hoje ele provoca o mesmo arrepio.


3) A Profecia (1976)
Em épocas de exorcismos e bebês de Rosemary, 'A Profecia' chega com uma proposta já concedida: o anticristo nasceu e está entre nós. Marcado como o filme mais agourento de todos tempos, 'The Omen' vai além e se sobressai superando a superstição e as tragédias dos bastidores. Uma obra indispensável para os fãs do horror.


4) Halloween (1978)
John Carpenter cria o arquétipo do assassino mascarado com Halloween. Michael Myers é o rosto do mal que retorna sem motivo, apenas para matar. A trilha minimalista e a câmera subjetiva dão ritmo ao terror, provando que o medo pode estar logo atrás da porta.


5) Alien, o 8º Passageiro (1979)
Ridley Scott funde ficção científica e terror claustrofóbico num filme revolucionário. A tripulação da nave Nostromo é caçada por uma criatura perfeita, nascida do pesadelo e da biologia. Alien é o medo do desconhecido em estado puro — e a força feminina de Ripley tornou-se um ícone de resistência.


6) O Silêncio dos Inocentes (1991)
Jonathan Demme constrói um suspense psicológico brilhante, conduzido por diálogos afiados e pela presença hipnótica de Anthony Hopkins como Hannibal Lecter. Mais que um thriller, o filme explora o poder e o medo, a fragilidade e a inteligência em um jogo de caça e caçador.


7) A Bruxa de Blair (1999)
Com aparência de documentário, A Bruxa de Blair reinventou o gênero de terror com baixo orçamento e alta tensão. O que não é mostrado é o que mais assusta. A câmera tremida e a ausência de respostas criam uma sensação de realidade inquietante, que marcou toda uma geração.


8) Os Outros (2001)
Alejandro Amenábar transforma o suspense gótico em uma história de luto e revelações. Nicole Kidman entrega uma atuação delicada e intensa como uma mãe presa entre a fé e o medo. Os Outros é uma lição sobre atmosfera — o susto está menos no que se vê e mais no que se imagina.


9) Hereditário (2018)
Ari Aster traz o terror familiar ao extremo. Hereditário é um mergulho na dor, no luto e na herança do mal. O desconforto cresce cena a cena, até explodir em puro desespero. Toni Collette entrega uma das atuações mais intensas do gênero, transformando o trauma em horror.


10) Speak No Evil (2022)
Um filme que incomoda do inicio ao fim. Niilista, a obra nos coloca em posição indefesa diante da maldade e crueldade do próximo. Aqui, aprendemos da pior forma que ser permissivo demais pode ser muito arriscado. Perder a própria essência é apenas o começo do caos.

O medo também é uma forma de conhecer a nós mesmos.

Boo!
Feliz Halloween!

quinta-feira, 23 de outubro de 2025

Dica Netflix - Steve

 

Por Isa Barretto

Há filmes que se constroem como histórias, e há outros que se constroem como experiências. Steve pertence a essa segunda categoria. A câmera não apenas observa — ela respira dentro da escola, tropeça junto com os personagens e revela o retrato de um sistema em colapso. São poucas horas dentro daquele espaço, mas o tempo parece expandir-se, como se a rotina tivesse um peso próprio, sufocante e quase físico.

Baseado no livro Shy, de Max Porter, e dirigido por Tim Mielants, o filme acompanha um único dia na vida de Steve, interpretado com uma intensidade extremamente contida por Cillian Murphy. Diretor de uma escola para adolescentes marginalizados, ele tenta manter o controle de um ambiente que já não responde à autoridade. Entre reuniões, crises e silêncios prolongados, o que desaba diante da câmera não é apenas a instituição — é principalmente o homem que a sustenta.

A narrativa se desenvolve em tempo quase real, e é isso que dá ao filme sua força: o espectador sente o avanço das horas como se estivesse preso dentro daquela escola. A fotografia crua, os planos próximos e o som que mistura vozes e ruídos transformam o cotidiano em tensão pura. A direção não antecipa o caos com música ou truques visuais; ela o insinua. A câmera se aproxima, hesita, muda de foco — e essa inquietação faz o público pressentir o descontrole antes mesmo que ele aconteça.

Cillian Murphy carrega o filme com uma atuação que parece estar sempre ali: à beira do colapso. Cada olhar é uma tentativa de permanecer, cada gesto revela o desgaste de quem acredita demais. Há algo profundamente humano na forma como ele tenta manter a compostura enquanto o mundo à sua volta se fragmenta. Murphy não apenas atua — ele desaba em silêncio, e é nesse silêncio que o filme encontra sua alma.

A direção de Mielants evita qualquer embelezamento: corredores gastos, luz fria, conversas atravessadas, vozes que se sobrepõem. Tudo parece natural, mas nada é casual. Cada enquadramento é pensado para capturar o peso invisível da rotina, o limite da paciência, o ponto em que o humano se dissolve no dever.

O roteiro de Max Porter recusa a ilusão da redenção. Não há vilões nem heróis, apenas pessoas cansadas tentando sobreviver dentro de um sistema que exige demais e devolve pouco. A escola funciona como metáfora da própria vida adulta: um espaço onde todos fingem ter o controle, quando na verdade ninguém tem.

No fim, Steve não quer consolar — quer confrontar. Ele nos faz sentir o que é segurar o mundo com as mãos trêmulas e continuar mesmo quando não há mais força. É um filme que emociona sem melodrama, que provoca sem discurso. Ao encarar o esgotamento como matéria humana, ele pergunta — com honestidade e dor — quem cuida de quem cuida.

Steve é menos um drama e mais um espelho. Um retrato de todos aqueles que seguem, mesmo quando já não sabem mais o por quê.

quarta-feira, 22 de outubro de 2025

Invocação do Mal 4 - O Último Ritual

Por Isa Barretto

Encerrar uma franquia como Invocação do Mal é mais do que concluir uma história — é dar fim a um ciclo que ajudou a redefinir o terror contemporâneo.  

Dirigido por Michael Chaves, o quarto capítulo marca a despedida de Ed e Lorraine Warren, vividos com a habitual intensidade por Patrick Wilson e Vera Farmiga. Desta vez, o mal não habita apenas as casas de estranhos: ele invade o lar dos próprios investigadores, transformando o último caso em um confronto íntimo, onde fé e fragilidade se misturam.

O roteiro revisita os elementos que consagraram a franquia — o embate entre ciência e espiritualidade, o peso psicológico das investigações e o vínculo inabalável entre o casal. Mas há algo diferente aqui: o medo é mais humano, quase doméstico. Os Warren, que dedicaram a vida a salvar famílias assoladas por forças invisíveis, agora precisam lutar pela sua própria filha. O terror, que antes era missão, torna-se herança.

Michael Chaves demonstra segurança na condução. Ele troca o susto fácil pela tensão construída com precisão técnica — explorando o som, o enquadramento e o silêncio como recursos narrativos. A fotografia aposta em contrastes marcados: o claro-escuro traduz o limite entre o divino e o profano, enquanto a trilha sonora opera como uma extensão da angústia, sustentando a sensação de que algo maior se aproxima.

Ainda que previsível em estrutura, 'Invocação do Mal 4' é eficiente em propósito. O filme entende que o encerramento de uma saga não precisa surpreender, mas honrar o caminho percorrido. E faz isso com respeito — tanto à mitologia criada quanto ao público que acompanhou essa história por mais de uma década.

No fim, o que permanece não é o susto, mas o legado. O casal que passou a vida enfrentando o mal para proteger os outros agora luta para proteger o próprio sangue. E nessa inversão, o filme encontra sua força simbólica: a de mostrar que o amor — mesmo cercado de sombras — ainda é a arma mais poderosa contra o que não se pode compreender.

 

sábado, 18 de outubro de 2025

Na Netflix - CARAMELO


Por Isa Barretto

Há filmes que emocionam sem precisar de grandes gestos — Caramelo é um deles. Dirigido por Diego Freitas e protagonizado por Rafael Vitti, o longa encontra beleza no simples: um homem, um cachorro e o poder silencioso da convivência. O filme não tenta arrancar lágrimas; prefere tocar o espectador com leveza, mostrando que, às vezes, o afeto mais transformador nasce da presença discreta de quem apenas fica.

Pedro (Rafael Vitti) é um jovem chef que vive em ritmo acelerado, focado em chegar ao topo da carreira. Tudo muda quando um diagnóstico inesperado interrompe seus planos e o obriga a olhar a vida de outro jeito. Nesse momento, surge Caramelo, o vira-lata interpretado por Amendoim, que entra em cena não como um salvador, mas como um companheiro capaz de devolver sentido ao cotidiano. Entre os dois, nasce uma parceria verdadeira — sem heroísmo, apenas cumplicidade.

O roteiro, assinado por Diego Freitas, Rod Azevedo e Vitor Brandt, escolhe a sensibilidade em vez do drama. Não há exageros, apenas humanidade. Um passeio, uma refeição dividida, um olhar silencioso — tudo ganha peso emocional sem precisar de explicações. A direção de Freitas é segura e calorosa, conduzindo o espectador com o mesmo cuidado com que filma a amizade entre homem e cão.

A fotografia em tons suaves e a trilha sonora envolvente criam uma atmosfera acolhedora. O elenco de apoio — Carolina Ferraz, Arianne Botelho, Noemia Oliveira e Ademara Barros — reforça o tom íntimo da história, sem tirar o foco da relação central. Mesmo previsível em alguns momentos, Caramelo se destaca pela sinceridade com que trata temas como medo, recomeço, gratidão e amor — esse amor que não precisa curar, apenas estar presente.

No fim, o que fica é a paz de um encontro simples e verdadeiro. Caramelo é um filme que não promete muito — e justamente por isso entrega tanto. Ele chega de mansinho, como um amigo que se senta ao nosso lado, e nos lembra que, às vezes, viver é só isso: seguir em frente, com carinho, um passo de cada vez.