Por Rafael Morais
Imagine uma mãe raptada e mantida
presa em cárcere privado, com o seu filho, em um cômodo que serve de quarto,
banheiro, quintal e cozinha ao mesmo tempo. Pois é nesta situação que somos
apresentados à sofrida vida de Joy (Brie Larson) e Jack (Jacob Tremblay).
Baseado em fatos, o roteiro de Emma Donoghue (também autora do livro homônimo),
aborda a visão do pequeno Jack frente à dura realidade em que vive somado à
expectativa de fuga em busca do mundo novo.
Em "O Quarto de Jack", a
direção de arte ganha importância no cubículo/moradia, dando vida a cada
detalhe: repare nos desenhos do menino espalhados por todo canto, nas roupas
estendidas e nos modestos móveis que compõem o ambiente. Tudo retrata fielmente
o lugar, trazendo verossimilhança à história. Mérito também às fortes atuações
de Larson e Trambley. Demonstrando uma química sem igual, os atores se entregam
ao projeto sendo um dos responsáveis diretos pelo sucesso do filme nos
festivais em que passou - inclusive angariando importantes indicações no Oscar
daquele ano (2016).
Tremblay encarna uma carismática
criança que não sabe diferenciar fantasia de realidade, uma vez que a sua ideia
de mundo vem da televisão, único lazer disponível. Os seus únicos amigos são um
cachorro imaginário, uma aranha e um rato. Na verdade, tudo que lhe aparece é
real, sendo os demais seres e objetos partes de uma ficção: o que não está no
quarto não está no mundo. Tanto é assim, que Jack encara o lado de fora como o
espaço sideral, tamanha a sua distorção. Comovente ao retratar o desespero de
Joy na pele de uma mãe desesperada por sobrevivência, sobretudo a de seu filho,
a mulher se transforma em uma verdadeira águia protetora, e o seu sofrimento é
palpável quando decide colocar um perigoso, mas, necessário, plano de fuga em
ação, dando contornos de suspense ao drama.
Já a direção de Lenny Abrahamson é
extremamente competente ao enfocar todos os acontecimentos sob a ótica do
garotinho através de enquadramentos que remetem o seu particular universo.
Captar um “ambiente microcosmo” e tornar tudo maior em escala, conferindo vida
e importância, não é tarefa das mais fáceis, o que Abrahamson faz com maestria
no primeiro ato do filme, para desconstruir no terceiro de maneira genial
quando o enredo coloca os sobreviventes frente a frente com o quarto e revela o
seu verdadeiro tamanho, que, ainda mais diminuto e ajudado pelo uso de lentes
diferentes (grandes angulares) faz Jack pensar que o cenário encolheu. Mas não,
a sua percepção é que se alterou diante da evolução de seu personagem.
Assim, as distorções do foco durante
a presença da luz solar, além da captação de um som abafado, permitem ao
espectador experimentar o que seria a sensação de um primeiro contato com estes
elementos depois de anos enclausurado, e, no caso de Jack, nunca sentido antes.
Neste aspecto, a fotografia remete às cores vibrantes retratadas por bombons
coloridos e um vistoso café da manhã, em detrimento da paleta em tons pastel
escolhida para os objetos de cena que compõem o quarto.
Além do mais, os adultos são quase
sempre focados do pescoço para baixo, por meio de uma câmera oscilante, sendo
reforçado pelos tensos encontros do menino com o seu algoz: o “velho Nick”
(Sean Bridgers), como é chamado o homem responsável pela atrocidade de
mantê-los aprisionados. E mesmo quando, inevitavelmente, há um contato visual
com o rosto de algum personagem adulto, estranho à sua mãe, as lentes logo se
voltam para baixo, a depender do grau de intimidade do interlocutor, como se a
hesitação e o medo de Jack estivesse presente na linguagem do filme. E
realmente estão.
A narrativa fica por conta do
pequeno e reserva algumas das melhores cenas e falas do longa. O que dizer dos
momentos em que Jack é filmado deitado no chão, olhando para cima, pela
claraboia, dentro do quarto, fazendo uma interessante rima visual com outro
instante em que surge na mesma posição, em contato com o encantador "lado
de fora"? Sensível e tocante!
Fazendo referências filosóficas ao
mito/alegoria da caverna de Platão, a película traz uma sequência em que Jack
brinca com o reflexo da luz do sol que bate em sua parede, alimentando sua
curiosidade, além de desvirtuar ainda mais o mundo real que lhe espera. E não é
estranho perceber que, mesmo desacorrentados (isso não é spoiler, está nos
trailers), mãe e filho sofrem tanto com o assédio da mídia, constantemente
bombardeados por notícias, apelo e sensacionalismo, que chegam ao ponto de se
pegarem saudosistas pensando no quarto, já que o lugar, apesar de remeter às
lembranças horríveis, também era uma “bolha” que os resguardava de tudo de ruim
que o mundo real pode oferecer.
Assim, não é à toa o pesado estresse pós-traumático vivido por Joy, enquanto que a criança consegue se adaptar mais rápido, o que não os faz escapar de tomadas fechadas, tão claustrofóbicas quanto às empregadas no quarto, cuja intenção da fotografia é continuar enclausurando os personagens, que, embora “livres”, continuam presos de formas diferentes. Obra capaz de discutir com sensibilidade a complexidade da natureza humana, “O Quarto de Jack” se impõe como uma experiência emocional e sensorial pelo prisma do ineditismo, ainda inocente, de seu carismático protagonista.
*Avaliação: 4,5 pipocas + 5 rapaduras = nota 9,5