Por Rafael Morais
14 de janeiro de 2018
A Pixar conseguiu, novamente. Realizou uma animação que beira
a perfeição técnica, regada de muita emoção e personagens carismáticos. Não à
toa, tempos atrás, a toda poderosa Disney enxergou o potencial do estúdio e o
comprou fazendo parte do maior conglomerado de entretenimento já visto.
A história da vez é focada no México, ambientada no
tradicional feriado do Dia dos Mortos, quando o garoto Miguel tenta a aprovação
de sua família para ser músico, mas sofre com o apoio, tendo em vista traumas
do passado. Interessante destacar a diversidade cultural, de raça, credo e cor
que uma animação americana como esta resolve apostar, acertadamente, todas as
suas fichas. Talvez uma forma de criticar o Presidente que tem? Vide a campanha
política de Trump quanto à questão do muro para segregar o México dos EUA, além
dos recentes discursos xenofóbicos proferidos por este. Uma obra desse nível
não visa apenas entreter, mas colocar o dedo na ferida de forma artística e
suave. E isso a Pixar faz desde o seu primeiro longa: Toy Story.
Durante a jornada de Miguel em busca de
reconhecimento/benção, a inventividade, marca característica do estúdio, toma
conta do filme, sobretudo quando conhecemos o mundo dos mortos pela perspectiva
de um vivo. Nada escapa aos olhos atentos da dupla de diretores Lee Unkrich e Adrian Molina, inclusive quando demonstram ter referência de George A. Romero (A
Noite dos Mortos-Vivos) na sequência do cemitério. Não menos fantástica, a direção
de arte deita e rola na construção do universo místico, conferindo detalhes na
customização dos espectros que ali habitam, desde os cômodos das residências
até os figurinos utilizados, nada é escolhido por acaso, tudo passa uma
mensagem através dos simbolismos.
Perceba, por
exemplo, os falecidos que são esquecidos pelos familiares, ocasião em que no
feriado de finados não lhe prestam uma homenagem sequer, como uma foto exposta
em forma de oferenda. Estes são retratados pela película como marginalizados,
desprezados, residindo em verdadeiras favelas, vestindo trapos e debilitados de
“saúde”. Até os dentes amarelados, e por vezes ausentes, denotam a comparação
direta com a classe pobre e miserável do nosso mundo. Enquanto lá, ser lembrado
é tudo o que importa para quem já faleceu; aqui, alguns seres humanos são abandonados em vida. Em contrapartida, os que são lembrados costumeiramente,
até idolatrados, vivem em palácios e mansões suntuosas. Reparem os adornos
dourados, na abundância de comida, bebida e presentes localizados no palacete
do famoso músico Ernesto dela Cruz (uma espécie de Roberto Carlos), contrapondo o
único cômodo do barraco onde vive um senhor esquecido pela família, dormindo em
uma rede velha, suja e rasgada.
Genial, “Viva –
A Vida é uma Festa” (ou simplesmente “Coco”, seu título original) consegue transformar
esqueletos em seres animados dotados de carisma, transbordando emoção sem
flertar com o gótico, já que faz uso de uma paleta de cores vivas e intensas
para retratar a relação entre os vivos e os mortos. Na sessão que assisti, vale
ressaltar, as crianças não sentiam medo nem desconforto com a caracterização
esquelética das personas, pelo contrário. Encantadoramente coloridos, os guias
espirituais são uma atração à parte ao tempo em que revelam como a produção
entrou de corpo e alma, literalmente, nos meandros de uma cultura diversa.
Visualmente impecável, há
um notório aprimoramento na forma de animar seres e/ou objetos. São
impressionantes os detalhes da água, como sua curvatura, cristalinidade e
efeito; sem falar no balançar dos cabelos, sempre em evolução nas mãos dos
animadores; o que dizer então da textura, quase palpável, aplicada no rosto enrugado
de uma idosa ou no prazer emitido pela criança ao tocar o seu violão, sentindo
a música e passando ao público toda a carga emocional que uma canção pode
despertar na memória de quem a escuta. Assim, não menos cativantes, as canções
originais embalam o filme e impregnam nas nossas cabeças, por vezes precipitando
em forma de lágrimas, quase inevitáveis, dando a pseudossensação
que já conhecíamos aqueles acordes há um bom tempo.
Por fim, se
somos feitos de memórias, se os “mortos” só realmente se vão quando deixamos de
lembrá-los ou homenageá-los, de uma coisa tenho certeza: esta obra-prima da
Pixar, uma ode à família, estará sempre presente em minhas lembranças de
cinéfilo, certamente na minha prateleira dos filmes especiais, assim como a
reminiscência dos que já se foram. Logo, se depender de mim, estes jamais
morrerão...
*Avaliação: 5,0
pipocas + 5,0 rapaduras = nota 10,0.