segunda-feira, 24 de outubro de 2016

NOS CINEMAS - O Shaolin do Sertão

Por Rafael Morais
24 de outubro de 2016

Quando "Kung Pow" encontra a molecagem cearense! Assim poderíamos resumir este novo trabalho do cineasta Halder Gomes, o mesmo responsável pelo sucesso de "Cine Holliúdy". Homenageando os filmes japoneses de arte marcial (é chinês, mah!), ops, chineses, "O Shaolin do Sertão" parodia o gênero empregando uma linguagem regionalista, o "cearensês". Neste sentido, a falta de legenda para traduzir o nosso linguajar típico pode prejudicar outras audiências Brasil afora. Assim, em determinadas cenas, até mesmo quem é da região pode se perder tamanha a rapidez na expressão do dialeto, como na sequência em que o protagonista “dialoga” com o seu amigo inseparável, na garupa de uma bicicleta, em busca de um mestre para treiná-lo.

Desta vez, conhecemos a arrumação do padeiro Aluisio Li (Edmilson Filho), um cabra amante do Kung Fu, doidim por filmes de pêia, como aqueles do Bruce Lee. Disposto a enfrentar um valentão, "Tony Tora Pleura" (Fabio Goulart), que desafia qualquer um por cidades interioranas, Li busca aprimorar os seus conhecimentos marciais, até então restritos à imaginação, chegando ao trambiqueiro/mestre Wilson (Falcão e suas filosofias falconéticas) na pele de um chinês fajuto.

Estamos na cidade de Quixadá dos anos 80. Lugar de clima árido, poucos recursos, mas que esconde verdadeiras figuras estereotipadas com precisão por Halder. O político ganancioso, sua esposa viciada em leite condensado (naquela época essa iguaria era restrita àqueles que possuíam muito dinheiro), o assessor com jeitinho afeminado, o bêbado, o palhaço, o valente, o padeiro, a filha do padeiro... Enfim, toda aquela gama de sujeitos, que fazem parte do imaginário popular, está inserida em um roteiro fiel ao contexto histórico, sobretudo aos causos populares. Quem, por exemplo, nunca ouviu falar nesses circos itinerantes que rondavam os interiores com atrações bizarras? Ainda mais quando os lutadores de vale-tudo estavam em decadência e procuravam uma forma de se sustentar financeiramente, além de dar uma renovada na autoestima por ser o mais valente da região. Ainda sobre o script, mesmo que haja uma iniciativa em desenvolver uma crítica ao jeito de se fazer política por aqui, tentando criar mais uma camada, tal pretensão se desfaz ao longo do filme, ficando na superficialidade.

Quanto ao quesito técnico, o filme demonstra um avanço significativo com relação ao antecessor: fotografia caprichada, direção de arte afinada, montagem dinâmica e até mesmo a direção de Halder passou por um aprimoramento. O elenco, bem escolhido, também está em sintonia, porém, a utilização de muitos personagens empalideceu a participação de Dedé Santana, o eterno trapalhão, deixando de explorar a sua principal característica de servir como “escada” para as piadas prontas. Destaque para Piolho (o ator mirim Igor Jansen), assessor de Li para assuntos aleatórios, o menino acompanha o herói em todos os lugares arrancando risadas fáceis com o seu jeito espontâneo de narrar uma história ou “incentivar moralmente” o amigo nos momentos mais difíceis. Sem dúvida, um verdadeiro achado para o cinema nacional! E o que dizer do fanho interpretado por Haroldo Guimarães?! O cara simplesmente rouba a cena toda vez que surge em tela, assim como fez em Cine Holliúdy. Já Tirulipa achou melhor (não sei se por escolha própria ou do diretor) ficar na zona de conforto ao homenagear o pai, Tiririca, quando era palhaço no início da carreira, reproduzindo-o “esculpido em Carrara”, o que não deixa de ser hilário!

Deste modo, como bom cinéfilo que se preze, o diretor não perde tempo em prestigiar suas memórias afetivas quando emula a projeção do VHS sempre que Aluisio Li sonha estar dentro de algum destes filmes com o título ou subtítulo de Dragão. A metalinguagem continua sendo explorada com eficiência pelo idealizador. As referências vão de Mazzaropi a Ariano Suassuna, de Chaplin passando por Tarantino com um toque de contemporaneidade na violência gráfica. Na verdade, o tom lúdico das lutas traz frescor à película e evidencia o propósito do cineasta em fazer um filme sobre memórias, jamais puramente de ação, apesar de se sair bem neste aspecto. Observem a cena do bar: enquanto a pêia come solta, a trilha sonora diegética (construída pelo som ambiente) da sequência, é composta por uma bandinha de forró pé-de-serra com Dorgival Dantas no comando de uma sanfona. Isso traz à tona o tipo de cinema que Halder deseja fazer, e que vem dando certo: um liquidificador de guloseimas pop estrangeiras batidas com pitadas de rapadura e um punhado de baião de dois.

E se o resultado funciona, muito se deve à entrega de Edmilson Filho ao seu herói improvável. Apesar de o ator já ser um lutador, e isso ajuda nas coreografias (arquitetadas por ele, inclusive), é na expressão física/corporal, emocional e no suor, literalmente, que o protagonista ganha o público. Edmilson traz humanidade ao seu Aluisio na ânsia de ser um vitorioso, no que pese virar alvo de piada na cidade inteira. O sujeito é arengado - sofre bullying, nos termos atuais - por todos constantemente e nem por isso deixa de acreditar nos seus sonhos. Piegas, todavia uma realidade dos sertanejos forjados nas adversidades climáticas, nas desigualdades sociais, e que nem por isso deixam de driblar estas situações com o bom humor nato! Que venham mais Shaolins e Holliúdys, à la nosso cinema paradiso da Praça do Ferreira; que venham mais Aluisios e Francisgleidsons para nos fazer torar a pleura de tanto rir!

*Avaliação:5 pipocas + 4,5 rapaduras = nota 9,5.

domingo, 2 de outubro de 2016

NOS CINEMAS - Sete Homens e Um Destino


Por Rafael Morais
02 de outubro de 2016

Depois do aclamado “Dia de Treinamento” e o medíocre “O Protetor”, chegamos à terceira parceria entre o diretor Antoine Fuqua e Denzel Washington nesse “Sete Homens e Um Destino”. Remake do remake - sim, trata-se de uma regravação do filme de 1960 que, por sua vez, adaptou o clássico “Sete Samurais” de Akira Kurosawa – o longa conta a história dos habitantes de um pequeno vilarejo que sofrem com os constantes ataques de um bando de pistoleiros. Revoltada com os saques, Emma Cullen (Haley Bennett) deseja justiça e pede auxílio ao pistoleiro Sam Chisolm (Denzel Washington), que reúne um grupo de especialistas para contra-atacar os bandidos. Baseado nesta premissa, conhecemos, paulatinamente, os personagens-título através de pequenas apresentações, como a do charlatão Faraday (Chris Pratt) que surge num típico Saloon jogando o seu baralho. 

Na verdade, o recrutamento de Chisolm para reunir a trupe transforma o filme numa espécie de road movie, conferindo dinâmica à montagem, sem jamais nos deixar enfadados nas duas horas de projeção. Deste modo, dada a química entre o ator e o cineasta, ficou fácil para Fuqua enquadrar o protagonista por diversos ângulos, sobretudo na utilização de inúmeros contra-plongée (ou “câmera baixa”; posiciona a lente de baixo pra cima) demonstrando o acerto na linguagem narrativa proposta: engrandecer e dar superioridade ao “mocinho” nas telas conforta o público. 

Neste ponto, o roteiro também acerta ao apresentar um vilão alegórico, caricatural, propositalmente composto por Peter Sarsgaard. Um cara inescrupuloso, corrompido pela ganância, de olhar perturbador e cabelos meticulosamente penteados (para não dizer lambidos). É a típica antítese que a história precisava, tamanha a nocividade do sujeito e o seu exército: igrejas incendiadas, cidadãos assassinados covardemente e crianças ameaçadas são apenas alguns dos modus operandi

Outro destaque desta regravação se encontra na representação da diversidade de gêneros no grupo, principalmente das minorias. Temos um negro liderando um índio (Martin Sensmeier), um latino (Manuel Garcia-Rulfo) e até um asiático atirador de facas (Byung-Hun Lee) e, claro, todos contratados por uma mulher! Sim, a personagem feminina forte da vez não deixa de chorar um só instante que surge em tela, porém, compensa a lágrima com muita bala nos inimigos. E por falar em tiros, assistir no formato IMAX, no “ponto G” da sala de cinema, trouxe uma agradável experiência de estar no meio dos tiroteios, entre os diálogos dos personagens, nos colocando no centro do caos, como se fôssemos mais uma habitante daquela cidadezinha. Ponto para o design de som e direção de arte, impecáveis! 

Assim, ao passo que há metalinguagem na questão visual do faroeste, atendendo aos requisitos da convenção quando foca no embate de quem saca a arma primeiro, na constante utilização da câmera no chão para enfocar o duelo, até mesmo na fotografia ensolarada, o filme aborda, mesmo que superficialmente, a complexidade daqueles sujeitos que estão prestes a dar sua vida numa missão quase suicida. O personagem de Ethan Hawk (Goodnight) adiciona camadas à figura máscula e destemida do cowboy, bem como Jack Horne (vivido pelo metódico Vincent D’Onofrio), cuja mansidão na voz que, teima em recitar versos bíblicos, esconde a sua fortaleza selvagem. 

De outra parte, a concepção de uma trilha sonora que não usa os clichês esperados, tais como assobios, pássaros, entre outros, diegeticamente perfeitos neste cenário, evidencia uma inovação na forma de enxergar o “novo” velho oeste. Mesmo assim, ainda prefiro as composições de Ennio Morricone, sem dúvida! 

Enfim, este “Sete Homens e um Destino” ainda nos reserva duas sequências de ação de tirar o fôlego, com direito a ótimos dublês que despencam do telhado e tudo mais que temos direito neste gênero de filme. Vale o ingresso!

*Avaliação: 4,5 pipocas + 4,5 rapaduras = nota 9,0.