segunda-feira, 21 de janeiro de 2013

EM CARTAZ - Django Livre

Uma catarse à base de suor e sangue.
Rafael Morais
21 de janeiro de 2013.

*Obs: A resenha é livre de spoiler's, como sempre. 

A filmografia de Quentin Tarantino fala por ele. Mas mesmo depois de já ter revisto todas as suas obras e sabendo o estilo e as referências desse cineasta, confesso que novamente o cara conseguiu me surpreender positivamente. 

Em Kill Bill Vol. 1 e 2, Quentin mostrou todo o seu conhecimento e admiração aos antigos filmes de artes marciais, inserindo na figura de Pai Mei e na personagem vivida por Uma Thurman uma homenagem àquelas fitas de Kung-Fu, lembrando Bruce Lee em O Jogo da Morte, dentre outras produções; já em À Prova de Morte demonstrou o seu amor pelo cinema B sploitation no projeto Grindhouse com o seu parceiro Robert Rodriguez (aqui vai um lembrete para os críticos que dizem que Tarantino não inova nem evolui por não sair da sua "zona de conforto". Lembrem-se que quem ficou no mesmo estilo, até hoje, foi o seu amigo Rodriguez que se acomodou com produções B e não consegue criar mais nada. Por outro lado, Tarantino ganhou prêmios, conquistou fãs no mundo inteiro e firmou-se como um dos diretores mais influentes e cultuados do cinema contemporâneo); desabafos à parte, finalmente em Bastardos Inglórios, o caro "simplesmente" alterou o curso da história para prestar uma modesta reverência aos filmes de guerra, além de oferecer a tão sonhada vingança que muitos sonharam: matar, ou melhor, metralhar e trucidar Adolf Hitler

Diante dessa escalada ao topo do sucesso, festejado e aclamado pela crítica e pelo público mundo afora, o cinquentão chega a Django Livre trazendo uma expectativa gigantesca em torno da nova produção. Mais uma vez alguns críticos notoriamente invejosos ou com sangue de barata - aqueles que não conseguem elogiar mesmo e não dão o braço a torcer - assim classificaram o filme: "não foi dessa vez que Tarantino fez um filme ruim". Por que não dizer que o filme é bom? Ou melhor: que o filme é FODA! Para alguns, interpretar sintetizando o pior de uma obra é sempre mais fácil do que elogiar. Essas colocações são oportunas para contextualizar o infeliz e ignorante comentário do diretor Spike Lee (Malcom X), quando disse que o filme é desrespeitoso mesmo sem ter assistido ao longa, e o pior, declarou ainda que nem tem a intenção de vê-lo. Para mim e Jamie Foxx (Django), que saiu em defesa do diretor, esse tipo de declaração é que é irresponsável e desrespeitosa, pois falar que algo não presta sem ter conhecimento é o mais puro preconceito.

Contudo, polêmica à parte, seja pela facilidade em escrever diálogos e roteiros tão afiados quanto inteligentes; seja pela forma que o diretor conduz os seus filmes, tornando cada cena importante à trama, impulsionando o filme sempre para frente e, assim, eficientemente orgânico, Tarantino é um dos poucos cineastas vivos que consegue me prender na cadeira com tanta intensidade e vibração. Quando tudo induz e conduz o espectador para se deixar levar por um possível plano "razoável" apresentado pelos personagens; quando tudo parece lógico e natural, aí vem o tempero "tarantinesco" e mostra que nem tudo é o que aparenta que não precisa ser tão bonitinho como inconscientemente desejamos. O acaso, o improviso e a vingança são temáticas-irmãs que dialogam fortemente nos roteiros de Tarantino

Na verdade, o cineasta continua mantendo o humor e as suas gags como válvula de escape em algumas determinadas sequências, sem esquecer do peso, seriedade e sobriedade nos momentos dramáticos e violentos. O polêmico sadismo "tarantinesco" só aparece quando ele bem quer e na hora exata de acontecer.    

Mas é em Django Livre, sua obra com uma estrutura narrativa mais linear até agora, que revisitamos o velho-oeste, gênero pelo qual o cineasta é aficionado desde criança.
A trama traz Django (Jamie Foxx) como um escravo libertado pelo alemão Dr. Schultz (Christoph Waltz, soberbo), um ex-dentista eloquente e malandro que se tornou caçador de recompensas. Schultz precisa de Django para um propósito: localizar três criminosos procurados pela Justiça. Em troca, ele terá sua liberdade.
O objetivo de Django após cumprir este trato é resgatar a esposa Broomhilda (Kerry Washington) das garras do presunçoso Calvin Candie (Leonardo DiCaprio), proprietário de Candieland, uma fazenda algodoeira onde escravos são treinados para participar de lutas ferozes conhecidas como Mandingo – uma espécie de MMA ultra-violento. Aqui, Tarantino não deixa de dar uma cutucada e criticada nesse esporte que, guardada as proporções, tem a mesma conotação dos dias atuais daquela apresentada no filme, ou seja, negociar e patrocinar pessoas como mercadorias. Interpretações à parte, sentindo-se responsável pelo escravo recém-alforriado, Schultz resolve acompanhá-lo nesta perigosa jornada que guarda muitas surpresas para ambos.
O nome do personagem foi escolhido em referência a Django, produção italiana dirigida por Sergio Corbucci em 1966 estrelada por Franco Nero, que faz uma pequena, divertida e metalinguística participação no longa. Outras alusões ao faroeste spaghetti estão nos zooms forçados, letreiros com fontes características do gênero e nas deliciosas faixas musicais do grande compositor Ennio Morricone – usual colaborador de Sergio Leone, diretor que difundiu e elevou o (sub)gênero. 

Não menos interessante foi a decisão de Tarantino, que têm um gosto bem peculiar para música, em inserir hip-hops e souls na trilha sonora. A inserção e adaptação dessas levadas black music em um filme de época ficou interessantemente paradoxal. Anacrônico, contextualmente, o estilo musical constata e demonstra ao espectador o progresso, relevância e riqueza da cultura negra, bem como o seu atual status social, bem diferente, diga-se de passagem, dos tempos de outrora. Observe que em dado momento, Django cavalga imponente, ao som das batidas de hip hop, comandando alguns escravos, como se dissesse: vocês estão nessas condições porque se permitem estar.

Vencedor de dois Globos de Ouro (Melhor Roteiro e Melhor Ator Coadjuvante), Django Livre recebeu cinco indicações ao Oscar: Melhor Filme, Roteiro Original, Fotografia, Edição de Som e Ator Coadjuvante (Christoph Waltz). Embora Waltz tenha um desempenho memorável tão intenso quanto o seu Coronel Landa de Bastardos Inglórios (por qual foi premiado), Leonardo DiCaprio também merecia ser lembrado pelo seu odioso e arrogante Calvin Candie, pois de ingênuo e idiota o personagem ganha magnitude e complexidade, explodindo em atitudes inesperadas e sádicas (detalhe para a cena da mão cortada, ali DiCaprio se feriu sem querer e preferiu continuar gravando). Samuel L. Jackson no papel do subserviente e ardiloso Stephen também não fica atrás, roubando a cena no epílogo do filme. A Academia de Hollywood, infelizmente, esnobou ambos.

Outro ponto alto da projeção está na inspiradora fotografia que contrasta a bela e alvejante plantação de algodão com a vermelhidão sangrenta borrifada sobre ela. Sem esquecer que os flashbacks trazem paletas um tanto mais sombrias e cinzentas, como lembranças que Django não queria ter guardado na memória, mas que estão encrostadas lá. Ainda no quesito técnico, Tarantino nos surpreende com o uso e abuso de slow motion nas suas cenas de ação, drama ou quando cria o clima tenso para logo depois quebrá-lo ao seu estilo. O curioso é que o cineasta não tinha essa característica no seu repertório.
Dessa forma, Django Livre toca em assuntos delicados, mexe em "feridas", causa polêmica, reflexão e questionamentos. E quem disse que isso é prejudicial? Questionar e refletir faz parte do processo interpretativo-cognitivo de uma arte. Mas o fato é que no "prensar da rapadura" e no "saltitar da pipoca", o diretor está mais preocupado em fazer o que sabe de melhor: entreter a plateia com uma boa história de vingança recheada da sua já habitual violência gráfica (advinda da sua famosa e vasta cultura pop, aonde a sanguinolência dá o tom nas bem conduzidas cenas de tiroteio) e seus personagens riquíssimos, capazes de diálogos tão mordazes quanto divertidos. Tarantino, literalmente, e mais uma vez, acertou no alvo com precisão. Doa a quem doer.



* Curiosidade: debatendo e pesquisando sobre Django Livre com o amigo Tullio Dias do Cinema de Buteco, observamos que o nome Candie, personagem vivido por DiCaprio no filme, remete a doces, e em determinada cena, a câmera foca em várias balas sendo espalhadas pelo chão, inclusive ele mesmo degustando algumas. Será que os dentes podres de Candie são graças ao excesso de doces/açúcar que ele come aliado a não higiene bucal do sujeito? Sem contar que o herói é um dentista (Dr.Schultz). Interessante que há o contraste com os lindos e brancos dentes dos negros... Raça inferior com mais saúde e vigor físico? Doce ilusão, Candie, doce ilusão.

Comentários
2 Comentários

2 comments:

  1. Show de bola doutor!!! Concordo plenamente com vc, mais uma vez o Tarantino nos surpreende e ultrapassa todas as expectativas, um puta filme do começo ao fim! Indispensável!!!

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